José Pinheira apresenta-se como um consumidor atento e persistente. Daqueles que acreditam que devem reclamar até ao fim, independentemente do valor em causa. Por uma questão de princípio. Mas, apesar deste hábito, nunca se tinha visto numa guerra como aquela em que entrou depois de ter comprado um pacote para duas cartas de condução de mota através do site de descontos Groupon. Um mês após ter adquirido os cupões, que deveriam ser utilizados pela mulher e pelo cunhado, José bateu com o nariz na porta, quando chegou à escola de condução Stop, em Lisboa. Ao confrontar-se com a empresa fechada, este consultor de sistemas de informação, de 36 anos, enviou de imediato um e-mail para a empresa Groupon, a pedir o dinheiro de volta. Era o primeiro de 43 e-mails que viria a escrever, ao longo de nove meses. José percebeu, entretanto, que não estava sozinho. A campanha lançada pelo site da Groupon, que oferecia as cartas de condução de mota por ¤99 por pessoa ou ¤139 para duas, atraiu 876 pessoas que acabaram por ficar sem carta e sem dinheiro. A empresa apenas se disponibilizava para converter aquele crédito em vales para compras futuras.
CONHEÇA ALGUNS CASOS
Cansado de argumentar e sem ver o seu problema resolvido, José acabou por aceitar o crédito. Mas, como tinham passado quatro meses, o respetivo cupão expirara. Por isso, já nem o dinheiro lhe quiseram entregar. “Fiquei indignado! Já tinha dito há muito tempo que queria o dinheiro de volta. Andámos semanas a trocar e-mails. Eu a mostrar-lhes os termos e condições divulgados no site, em que garantiam o reembolso em caso de fecho da empresa, eles a dizer que já não havia nada a fazer”, recorda. Só conseguiu recuperar o dinheiro a 23 de agosto, dois dias depois de ter pedido ajuda à Deco. A ausência de respostas, a dificuldade de estabelecer contactos e a inexistência de um espaço físico onde pudesse tentar resolver a situação deixaram-no ainda mais furioso. Por isso, garante que, apesar de continuar a fazer compras através da internet, nunca mais repetirá a experiência com aquela empresa.
Queixas a crescer
“Apesar de sentirmos que as empresas estão a mudar a sua conduta, em muitos casos ainda existe uma tentativa de desresponsabilização face aos problemas que surgem a propósito destas vendas”, esclarece Ana Sofia Ferreira, jurista da Deco. O negócio é, também, uma realidade diferente e difícil de entender no imediato. As duas maiores empresas dominam cerca de 70% do mercado e cada uma tem 1 milhão de pessoas registadas nas suas bases de dados, que recebem novas promoções todos os dias. Entre sites de descontos e agregadores – que reúnem, diariamente, uma seleção de propostas divulgadas por aqueles – existem, atualmente, 40 disponíveis em Portugal.
A associação de defesa do consumidor, Deco, tem vindo a registar um aumento significativo de queixas. De quatro, em 2010, passaram para 153 só nos primeiros seis meses deste ano. Em 2011, o segundo ano de existência destas empresas em Portugal, foram contabilizadas 171 reclamações. Mas este número pode estar muito longe de espelhar a realidade. Isto porque, como na maior parte dos casos se trata de valores baixos, muitas pessoas acabam por desistir de reclamar. No site do Portal da Queixa, por exemplo, os administradores registaram 145 reclamações desde setembro do ano passado. E muitas destas nem sequer chegaram a outros organismos. No topo da lista das queixas, é comum encontrarem-se relatos de compras mal sucedidas nos sites de descontos. Os casos multiplicam-se. “As situações que mais nos preocupam prendem-se com a falta de informação quanto aos produtos anunciados e a tentativa de desresponsabilização por parte destes sites. Muitas vezes as empresas dizem que são apenas intermediárias e que não têm de assumir qualquer responsabilidade”, conta a jurista da Deco. A esta associação chegam cada vez mais reclamações, grande parte relacionadas com prazos ultrapassados de entrega de produtos já pagos, outras sobre produtos que nem sequer chegam ou até sobre casos de parceiros que prestam serviços, sobretudo restaurantes e centros de estética, que fecham, sem que as pessoas consigam usufruir da sua compra. As dificuldades de estabelecer contacto com a empresa prestadora do serviço fazem também parte da lista de reclamações mais frequentes, bem como a forma de reembolso dos clientes – muitas vezes as empresas recusam-se a devolver o dinheiro, prontificando-se, quando muito, a fazê-lo através de créditos para serem utilizados em compras posteriores, demorando algumas demasiado tempo, 60 ou 90 dias, a cumprir o compromisso. Mas a responsabilidade é sempre de quem vende, neste caso dos sites de vendas de cupões. E, mesmo sem existir uma regulamentação específica para este negócio de vendas online com cupões, as leis gerais de comércio, de defesa do consumidor e das vendas à distância são, na opinião de Ana Sofia Ferreira, suficientes para assegurar os direitos dos consumidores. Razão pela qual os técnicos da Deco têm vindo a reunir-se com as empresas sempre que se verificam casos mais graves, como o que aconteceu com a escola de condução que fechou. A jurista defende ainda que se o negócio continuar a crescer e, com ele, as reclamações, a associação pode vir a exigir regulamentação específica e analisar melhor os produtos e serviços que todos os dias são oferecidos através das newsletters dos sites e agregadores de empresas de descontos.
Ler nas entrelinhas
Cláudia Rodrigues, 36 anos, assistente comercial, já perdeu a conta aos cupões que adquiriu. Ao longo dos últimos dois anos, tem comprado um pouco de tudo e em diferentes empresas como a Groupon, Lifecooler, Goodlife ou Planeo. Em 2010, teve uma má experiência: comprou três telas com a impressão de fotografias por ¤19, mas acabou por pagar ¤50 pelas armações, que não estavam incluídas no preço. Depois desta experiência, começou a ser muito mais cautelosa. Raramente compra produtos, limitando-se a adquirir serviços que já conhece. “Não sei se é um problema dos sites ou das empresas que prestam os serviços, mas deviam ter mais cuidado. Antes de comprar, faço uma pesquisa para perceber se o preço anunciado é um bom negócio e leio todas as condições muito bem. Quando se trata de viagens, por exemplo, ligo primeiro para o hotel para confirmar se têm vagas nas datas que me interessam”, afirma Cláudia Rodrigues. Hoje, continua a aproveitar as ofertas de estadas, restaurantes e outras atividades de lazer cujos descontos chegam aos 70 por cento. Sem problemas. “Penso que as vantagens são muito superiores às desvantagens de arriscar neste tipo de serviço”, acrescenta. No entanto, pelo meio, houve histórias mal sucedidas como a compra de três aplicações de gel para as unhas, por ¤10, tendo depois de pagar ¤19 para as retirar. Ou de um fracassado fim de semana num hotel de Reguengos de Monsaraz, através da Lifecooler: confirmou a reserva, logo no início de agosto, mas quando, há dias, tentou entrar em contacto com o hotel antes de partir de viagem, perante o silêncio da unidade hoteleira falou com a empresa de descontos, que a informou de que o hotel fechara e, por isso, estavam a reencaminhar os clientes para outra unidade, sem qualquer aviso prévio. Aguarda, agora, a restituição do dinheiro.
Uma aprendizagem
“Temos consciência de que este é um negócio recente e de que existe uma aprendizagem a ser feita quer por parte dos parceiros quer dos clientes. Somos uma empresa que atua em sete mercados da Europa e da América do Sul, estamos sempre em contacto uns com os outros para aprender com os erros e não os repetir. Trata-se de um negócio em que é essencial conseguir resolver os problemas dos clientes de forma eficiente”, assegura Ricardo Mesquita, presidente-executivo da Letsbonus em Portugal. Ao longo destes dois anos de experiência no nosso país, a empresa tem aumentado a sua equipa de apoio ao cliente, ao mesmo tempo que procura ser cada vez mais rigorosa na seleção dos parceiros de negócio. “Temos sempre a localização física e o site das empresas para que os clientes possam investigar o que está a ser oferecido. Penso que os principais erros foram cometidos durante os primeiros 12, 14 meses em que se estreou este negócio em Portugal. Surgiram diversos problemas como a venda excessiva de cupões face à capacidade de resposta das empresas. Acredito que, hoje, essas situações só acontecem em plataformas que não estão a prestar um bom serviço”, defende Ricardo Mesquita.
Para a outra empresa líder de mercado, a Groupon, uma parte das queixas resulta do facto de os clientes ainda não estarem habituados a comprar cupões, o que a levou a aumentar as informações disponibilizadas. “Enquanto inventores do sistema de cupões online e líderes de mercado em Portugal, é natural que recebamos maior número de queixas que os nossos concorrentes”, justifica Boris Hageney, vice-presidente internacional para a Europa do Sul e responsável por Portugal. Quanto à pior situação que registou, o fecho da escola de condução, o gestor diz que a Groupon tem vindo a propor a mudança para outra escola, “pelo mesmo preço e nível de serviço” ou, em alternativa, a devolução da totalidade do dinheiro aos clientes.
Meses que desesperam
Embora um mesmo cliente possa passar por situações diferentes, até na relação comercial com a mesma empresa, e grande parte dos consumidores se manterem fiéis aos cupões de desconto, um caso mal resolvido pode ser o suficiente para afastar uma pessoa deste mercado. Foi o que aconteceu com Marina Messias, bancária, de 31 anos, e que, ao fim de meio ano, continua sem ver o conjunto de três soutiens que encomendou nem os ¤30 que gastou na Groupon. Um mês após a compra, começou a enviar e-mails e a telefonar para a empresa, que se limita a justificar a demora com problemas com o fornecedor ou assegura que o produto será entregue. As numerosas reclamações que já apresentou na empresa e em outros espaços como o site do Portal da Queixa foram, até agora, infrutíferas, pelo que Marina diz que não volta a fazer compras na internet. Nuno Henriques, 33 anos e técnico de planeamento, não teve melhor sorte quando, no final do ano passado, se deixou seduzir pelo anúncio de um conjunto de três T-shirts por 30 euros. Decidiu comprar dois conjuntos mas, quando tentou contactar com o site da empresa fornecedora, apareceu-lhe uma mensagem segundo a qual os códigos estavam errados. Ligou para o site dos descontos, mas os novos códigos voltaram a dar erro. Quinze dias depois, pediu o reembolso do investimento feito, mas foi-lhe dito que apenas podiam creditar esse montante na sua conta-corrente. Ao fim de uns meses, quando viu as T-shirts de novo em promoção reinvestiu o crédito e tentou de novo a sorte. Sem sucesso. Pelo que continua com dinheiro na conta-corrente da empresa, mas não recebeu nem este valor nem os produtos. “Nunca consegui comprar os produtos nem receber o dinheiro de volta. Acho que já comprei em todos os sites de desconto menos nesta empresa, que nunca mais procurarei”, garante Nuno Henriques.
De olhos bem abertos
Um ano de e-mails, telefonemas, queixas no Portal da Queixa e um pedido de intervenção dos serviços jurídicos da Câmara Municipal de Matosinhos fazem parte do longo percurso percorrido por Luís Baptista, 32 anos, coordenador de loja. Tudo para conseguir reaver os ¤15 gastos numa massagem que nunca conseguiu que lhe fizessem – a empresa informou que não aceitava marcações, por excesso de clientes, e que já tinha avisado o site para não vender mais cupões. Luís entrou de imediato em contacto com o site de descontos, que se prontificou a devolver o dinheiro, mas só o fez passados 12 meses de espera e muita insistência. “Vou continuar a aproveitar estes pequenos luxos por quantias baixas. No entanto, agora, recolho opiniões sobre as empresas, tento confirmar se existem e procuro simular uma marcação, antes de avançar com a compra. Espero não voltar a viver más experiências”, afirma.
À medida que o mercado amadurece e as empresas e consumidores vão estando mais atentos, o negócio vai ajustando-se. “Acredito que o mercado acabará por se autorregular. Até 2013, vamos assistir a fusões. Os grandes grupos manter-se-ão enquanto os mais pequenos e quase de vão de escada acabarão por derrapar. Até porque estamos perante um smart shopper para quem uma má experiência pode fazer com que não volte. E os portugueses são extremamente cautelosos”, afirma Ricardo Mesquita, da Letsbonus. Não será, pois, de admirar que, pelo menos nos próximos tempos, as reclamações continuem a crescer.