(ÁUDIO DA GALERIA DE FOTOS: Sílvia Dias, 30 anos – que nasceu menino -conta-nos a sua história)
Remetidos para a gaveta das coisas estranhas, incompreendidos e maltratados durante muito tempo, os transexuais portugueses começam a procurar ajuda médica cada vez mais cedo. Histórias de quem se liberta de um corpo que não sente como seu, para encontrar o género que tem na cabeça
O ritual repetiu-se, durante anos. Antes de se deitar, ajoelhava-se na cama, segurava o terço e pedia a Deus que lhe desse outro corpo, igual ao do pai.
Não tinha mais de 3 anos quando começou a desejar ter outro sexo. Acordava e a primeira coisa que fazia era inspeccionar os genitais, à procura do milagre. À custa de muita dor e de uma determinação inabalável, João Pedro Almeida está, aos 20 anos, muito próximo de o alcançar. Com voz grave, barba feita e braços musculados, de onde saltam veias grossas como cordas, o rapaz à nossa frente tem pouco ou nada da miúda de caracóis que surge numa fotografia, com uma boneca ao colo, ou da Ana Rita que, de maiô vestido, brilhava no rinque da patinagem artística. “Olho para aqui e não me identifico”, diz, enquanto folheia o álbum de infância, catalogado com rigor. Não é por acaso que cada uma daquelas fotos conta uma história. A boneca foi “mesmo só para a câmara” e o traje da patinagem era vestido uns segundos antes da entrada para o rinque. “Transpirava só de pensar que tinha de enfiar uma saia e, quando acabava a exibição, ia a correr para trocar de roupa. Nem queria saber da pontuação”, recorda, no pequeno mas acolhedor apartamento onde vive com os pais e a irmã, no distrito de Leiria.
Aos 8, 9 anos, a filha mais velha de Vítor e Maria Almeida já só pensava em bicicletas, bolas e correrias. Coisas de rapazes! “A patinagem era a única actividade de rapariga de que gostava, mas acabei por desistir.” À conta da amaldiçoada saia.
Com a adolescência, tudo se complicou.
Uma fase que não é fácil para ninguém, torna-se numa catástrofe emocional para quem sofre, como João Pedro, de desordem da identidade de género, o jargão médico para os casos em que a pessoa se identifica com um sexo, mas o corpo apresenta o oposto. A menstruação e as formas cada vez mais arredondadas aumentaram o sentimento de rejeição. “Isto não é meu”, desesperava, certo de ser um rapaz. A revolta e a confusão perturbavam o relacionamento com os outros e, sobretudo na escola, a vida tornou-se muito difícil “Cheguei a pensar em suicídio, não percebia o que se passava comigo”, confessa João Pedro. Com o cabelo muito curto e o peito apertado por fita adesiva e disfarçado em camisolas largueironas, era obrigado a responder por Ana Rita.
Alguns professores evitavam os comentários e passavam à frente, na chamada.
Outros docentes irritavam-se, julgando que quem respondia por Ana Rita não o era, na verdade.
PROVA DE VIDA
A internet passou a ser o refúgio de João Pedro. Nos sites de conversação, assumia identidade masculina e fazia “amizade” com raparigas. Tinha 15 anos quando marcou um encontro com uma delas, que namoriscava há uns tempos. A miúda, das Caldas da Rainha, não se apercebeu de nada e João Pedro regressou a casa com a revelação: “Não sei o que se passa, mas gosto de mulheres e não sou lésbica.” Depois do baque, a mãe correu para o computador.
“Via a palavra ‘transexuais’, mas não associava”, assume Maria Almeida, de 53 anos. Só depois de uma consulta com o psiquiatra Allen Gomes é que tudo começou a fazer sentido. Ao fim de 15 minutos, o médico de Coimbra passou a tratar a então Ana Rita pelo género masculino, direccionando-a para a consulta de Psiquiatria dos Hospitais de Universidade de Coimbra, um dos quatro centros do País, além dos hospitais de Santa Maria e Júlio de Matos, em Lisboa, e Magalhães Lemos, no Porto, a atender estes casos.
O problema é do foro psiquiátrico, mas envolve uma equipa multidisciplinar que inclui a Genética, para despistar qualquer anomalia cromossómica. E a Endocrinologia, na prescrição e acompanhamento da terapia hormonal as raparigas recebem testosterona, para que lhes cresçam os pêlos, se desenvolvam os músculos e a voz se torne mais grossa; aos rapazes é receitado estrogénio, para adquirirem uma pele fina, uma voz suavizada e ancas mais generosas. O culminar do processo é a cirurgia de mudança de sexo.
“É um assunto difícil, perturbador e, quando chegam à consulta, querem logo a operação, mesmo sem o diagnóstico estar completo”, conta o psiquiatra Rui Xaxier Vieira, 59 anos, do Hospital de Santa Maria.
Em Portugal, a intervenção para a mudança de sexo só poderá ser feita ao fim de dois anos de acompanhamento, em pessoas com mais de 18 anos e mediante aval de uma comissão técnica da Ordem dos Médicos. Antes disso, o paciente tem de ser avaliado por duas equipas independentes por exemplo, uma de Santa Maria e outra de Coimbra, que devem chegar à mesma conclusão: a de que se está perante um caso de transexualidade. “Temos de perceber se a intenção de mudar de sexo se mantém de forma consistente durante, pelo menos, dois anos. Uma forma de o avaliar é pôr o paciente a viver com as roupas, o género e a identidade do sexo oposto. É a prova de vida real”, esclarece Rui Xavier Lima.
João Pedro já passou por todas as etapas.
Há quase três anos que leva as injecções de hormonas masculinas a cada três semanas, uma rotina que há-de acompanhá-lo a vida toda, garantindo o aspecto masculino com que se identifica. Falta apenas ser convocado para a operação. Ou melhor, para as operações. A mudança de mulher para homem envolve, em média, dez intervenções (ver infografia), o que acaba por arrastar o processo por dois ou mais anos. É isso que mais aflige a sua mãe, Maria Almeida. “Chorei muito, em frente do computador, quando percebi tudo aquilo a que ele teria de se submeter.” Mas, ao lembrar-se das palavras da psicóloga que o acompanha em Coimbra, conforma-se: “É mais fácil adaptar o corpo à cabeça do que a cabeça ao corpo.” Afinal, o filho, que nasceu com a genitália feminina, é “cem por cento homem”. E até o marido, que teve mais dificuldade em lidar com o assunto no início, já nem estranha quando o filho lhe fala das namoradas.
CIRURGIA DE UM HOMEM SÓ
Apesar da angústia e do desnorte dos primeiros anos como Ana Rita, o caso de João Pedro é uma história feliz: o diagnóstico chegou durante a puberdade, teve o apoio dos pais e acesso à informação, iniciou a hormonoterapia logo aos 18 anos e figura na lista para ser operado.
Mas o universo da transexualidade está cheio de vidas tristes, com finais prematuros. A disponibilidade de informação, principalmente na internet, tem facilitado a divulgação da terapêutica e diminuído os preconceitos perante esta patologia muitas vezes confundida com homossexualidade. “Em alguns casos, é muito complicado ter acesso ao acompanhamento.
Quem vive no interior, sobretudo, sente-se completamente limitado.
O mais difícil é que tenham força para enfrentar os pais e a sociedade”, admite Rui Xavier Vieira. Nos últimos anos, o psiquiatra tem-se apercebido de que os doentes aparecem cada vez mais cedo, por volta dos 16, 18 anos, quando antes só procuravam ajuda aos 30, 40 anos, frequentemente já com filhos e toda uma vida construída no sexo errado. Ao fim de mais de 20 anos de experiência nesta área, Rui Xavier Vieira recorda: “Antigamente, era dramático. As pessoas não viam saída e tentavam suicidar-se. Ou, então, automutilavam-se, cortando as mamas ou os genitais.” Os primeiros portugueses a serem operados fizeram-no em Marrocos, antes de a intervenção estar disponível em Portugal. Em 1995, ficou estabelecido, na lei portuguesa, que o Serviço Nacional de Saúde (SNS) assegurava as operações de mudança de sexo. No entanto, há apenas um único médico a fazê-lo. João Décio Ferreira, 65 anos, cirurgião plástico, já está reformado, mas mantém um contrato com o Hospital de Santa Maria, onde realiza as intervenções à terça-feira, de 15 em 15 dias. Doze horas de bloco operatório para dar vazão aos pedidos de todo o País. Agora num novo emprego, como técnico de avarias, João Pedro pondera, por isso, com o apoio dos pais, recorrer ao privado, em Portugal, ainda pelas mãos de Décio Ferreira, o que seria inédito, já que o médico nunca fez esta intervenção fora do SNS. Também não está posta de parte a hipótese de ser operado no estrangeiro. “Teríamos de pedir um empréstimo, para pagar os cerca de 25 mil euros do processo, mas poupava-se tempo e os constrangimentos de interromper o trabalho repetidamente “, justifica a mãe. À VISÃO, o secretário de Estado da Saúde, Manuel Pizarro, disse estar a par do problema e atento à sua resolução, mas mostrou-se, acima de tudo, confiante nas capacidades de Décio Ferreira, sem adiantar quais as medidas a ser tomadas no dia em que o médico deixar de assegurar o trabalho.
A EXCEPÇÃO PORTUGUESA
Não se conhece com detalhe a população de transexuais em Portugal nem no mundo, de resto. Rui Xavier Vieira estima que, no nosso país, sejam uns 150, mas parte deles não terá acesso a assistência.
Em Portugal ocorre, aliás, um fenómeno curioso, contrário ao que se passa na generalidade dos países: há bastantes mais casos de transformação de sexo feminino para masculino, do que de masculino para feminino. Na última reunião especializada da Ordem, avaliaram-se sete casos de feminino para masculino e dois de sentido oposto. A tendência tem vindo, pois, a inverter-se, aproximando-se do registo mundial. Isto, na explicação de Rui Xavier Vieira, é também fruto da mudança de mentalidades. “Culturalmente, é mais difícil um homem assumir-se como mulher do que o contrário.” Joana Ponte Sousa, 30 anos, sabe do que fala o psiquiatra. A penúltima de dez filhos de um casal de agricultores açorianos sofreu o martírio, a dobrar. Era um menino que queria usar vestidos, brincar às bonecas, que preferia fazer a lida da casa a ir com o pai para o trabalho na terra. E vivia numa pequena localidade, Vila Franca do Campo, na ilha de S. Miguel, onde todos se conhecem o que, numa situação de diferença, pode ser do mais claustrofóbico que há. Maltratada na escola, rejeitada pelos pais e expulsa de casa aos 17 anos, mantém a doçura e a ingenuidade de quem vive rodeada de mar. Só sai da ilha e da sua Vila Franca, para ir às consultas no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, onde é seguida há quase dois anos. Não se esquece dos caminhos que a aproximaram do sonho da mudança de sexo. Primeiro, foi uma revista, guardada até hoje, em que leu a história de vida de Roberta Close, famosa transexual e modelo brasileira.
Depois, foram o médico de família, em Vila Franca, e outro, no Hospital de Ponta Delgada, que a encaminharam para o Santa Maria. O Governo Regional paga-lhe as viagens e o alojamento, sempre que se desloca às consultas, a cada dois meses.
“Quando cheguei ao Santa Maria, já tinha ar de mulher e voz fi ninha. Os médicos até se admiraram”, ri-se. Vaidosa, madruga todos os dias para retirar, com pinça, os pêlos que ainda teimam em aparecer-lhe no rosto, apesar da hormonoterapia. Trabalha em limpezas, no parque de máquinas da autarquia de Vila Franca, rodeada de colegas do sexo masculino, que a vêem sempre impecavelmente feminina. “Na escola, os rapazes eram muito maus para mim, sofri um bocado”, desabafa, num falar arrastado. Mas rapidamente abre um sorriso e atira o assunto lá para trás. “O que quero, agora, é fazer a minha operação, para me entregar a uma pessoa especial e viver tudo o que não vivi até hoje.” Uma urgência em recuperar o tempo perdido comum a todos os transexuais.
“Nem sequer se preocupam com os pormenores da cirurgia, querem é fazê-la e pronto. Esta força é uma coisa única, vem de dentro”, relata Rui Xavier Vieira.
TRATAMENTO POR CONTA PRÓPRIA
Foi aquela persistência que conquistou o endocrinologista Joaquim Garcia e Costa, de 58 anos. Já reformado da Função Pública, o médico continua a dar consultas, como voluntário, uma a duas manhãs por mês, no Santa Maria, onde acompanha cerca de 30 pacientes com perturbação da identidade de género.
Quando começou a trabalhar nesta área, há mais de 20 anos, surgiam-lhe três a quatro doentes por ano. “As pessoas tinham dificuldade em aparecer.” Ao fim de tanto tempo a acompanhar esta população, aprendeu a respeitar e a admirar doentes exigentes, sempre com pressa, pouco cumpridores das indicações médicas. “Chegam-me aqui com uma lista de medicamentos, como se estivéssemos num supermercado”, conta.
Querem doses a mais de hormonas, julgando que, assim, conseguem apressar o processo. Ao médico, cabe explicar-lhes todas as contra-indicações, sobretudo o risco cardiovascular acrescido.
Sílvia Dias, 30 anos, também já está na recta final do processo que a tornará, integralmente, mulher. Apesar disso, aproveita a consulta de Endocrinologia para se queixar da demora na operação e, já agora, do tempo em que esteve na sala de espera da consulta de Psiquiatria do Santa Maria.
Vinda de Setúbal, leu metade do livro de Luis Sepúlveda O General e o Juiz, enquanto aguardava a chamada. Só se convenceu a ir ao hospital depois de desmistificadas as ideias negativas que correm nos fóruns da net acerca do seguimento clínico. A sua primeira abordagem foi por conta e risco próprios. Gastou rios de dinheiro em depilação a laser e automedicou-se com hormonas que encomendava pela internet, ou que conseguia arranjar na farmácia.
Em pequena, só queria saber de brincadeiras com as raparigas e as primeiras paixonetas foram por rapazes. O choque aconteceu quando, na puberdade, o corpo não se desenvolveu como ela queria. Tal como no caso de Joana, o clic deu-se ao ouvir falar de Roberta Close. Leu a biografia da modelo brasileira e percebeu que ali estava, também, a sua vida. A mãe foi acompanhando a transformação, sem nunca deixar de a apoiar. “É o meu pilar”, nota Sílvia, que faz animação nocturna em discotecas e actualmente vive sozinha, depois de terminada uma relação de cinco anos. “Nunca notei que o facto de ser transexual fosse um obstáculo nos relacionamentos.” Para os sobrinhos é “a tia” e já está. Admite ter passado por crises depressivas, durante as fases de definição, mas superou tudo sem mazelas.