Cerca das 16 e 20 desta quinta-feira, André Ventura teve o seu “momento Marinha Grande”, quando, à saída do Auditório Charlot, em Setúbal, foi atingido por um objeto, projetado de entre o grupo de manifestantes, do outro lado da rua. Ao encaminhar-se para a viatura de campanha que o aguardava – um dos três Mercedes pretos, topo de gama, de vidros fumados que percorrem o País – o candidato apoiado pelo Chega não resistiu a fazer um aceno na direção dos que o apupavam o que, dado o contexto hostil, tem de ser visto como um gesto imprudente. De imediato, voaram duas caixas de pastilhas, uma das quais lhe acertou na cabeça, e uma pedra, uma única pedra arrancada da calçada, que passou perto. Depois, vieram isqueiros, garrafas de água, ovos e outros projéteis, incluindo mais pedras – mas o candidato já tinha sido retirado do local. A única dúvida, relativamente à dimensão dos dividendos políticos que Ventura pode extrair da agressão – e fá-lo-á, aliás, legitimamente – é se uma caixa de pastilhas chega para imitar a pancada que, em janeiro de 1986, Mário Soares levou, na cidade vidreira hostil da Marinha Grande, e que terá virado a seu favor o rumo da eleição.
A segurança de André Ventura reagiu, em vez de prevenir. “Gorilas”, mas pouco
Dos cerca de 15 metros percorridos entre a saída do recinto onde decorreu o pequeno comício e a porta do Mercedes de serviço, pode extrair-se, aliás, uma inquietante conclusão: o amadorismo e a incompetência da segurança de André Ventura é flagrantemente incompatível com o nível de risco que o candidato representa, face ao clima de radicalismo em que ele próprio mergulhou a campanha. Os “gorilas” de Ventura parecem assumir quase literalmente apenas a metáfora simiesca, sem que a inteligência ou a preparação demonstrada nesta situação abone minimamente a favor da sua competência para as funções. Quem escreve este texto teve algumas noções de Serviço de Proteção a Altas Entidades (SPAE) no curso de oficiais milicianos da Polícia do Exército. E o que se viu, no que toca à proteção de André Ventura é um manual do que não se deve fazer. No quadro vivido, esta quinta-feira, às portas do Estádio do Bonfim, em Setúbal, a segurança do candidato reagiu mas não preveniu. Não foi suficientemente expedita a transportá-lo para o carro. Não protegeu a cabeça do candidato de eventuais objetos arremessados. E não o impediu de tentar encetar a interação com uma multidão em fúria (cerca de 200 pessoas) deixando que Ventura acenasse, o que viola todos os procedimentos. É certo que a segurança reagiu prontamente, enfiando-o no carro, já com proteção sobre a cabeça, mas o mal estava feito.
Os distúrbios consequentes, com a carga dos elementos do Corpo de Intervenção da PSP que garantiam a segurança do perímetro, a perseguirem os autores dos arremessos, resultaram em mais pedradas, desta vez dirigidas aos polícias e em, pelo menos, uma detenção imediata, no local, e outras na área circundante. Um dos manifestantes pedia à comunicação social que não atribuísse a culpa à etnia cigana: “Aqui somos todos iguais e havia gente da etnia cigana e outros” – o que era óbvio. “Se calhar”, acrescentava este popular, “isto foi obra de infiltrados” – o que é menos óbvio… Na rua, com efeito, e usando a própria terminologia de André Ventura, o que se viu foram muitos marginalizados do “sistema”, e a iniciativa de campanha a ser protegida pela polícia do “sistema”. Talvez por isso, na sessão ocorrida no interior do auditório, o mandatário distrital, Rui Paulo Sousa, dissesse: “Pelo menos, conseguimos mobilizar os ciganos como nunca ninguém fez antes…”
André Ventura acusa António Costa de ter decidido hoje o encerramento das escolas para disfarçar a “humilhação” sofrida ontem em Bruxelas
O discurso, agora, é o de cavalgar a vitimização constante: os manifestantes que querem boicotar a voz de Ventura. O conteúdo da mensagem que por pressões, a comunicação social ignora, para dar relevo, apenas, às manifestações hostis. E, agora, sem dúvida, a caixa de pastilhas – ou, mais genericamente, as pedradas.
Na sessão, André Ventura repisou velhos argumentos mas trouxe um novo tema: o da “verdadeira razão” do anúncio do fecho das escolas, neste timing. “O primeiro-ministro”, referiu, “foi ontem humilhado no Parlamento Europeu, por causa da manipulação do currículo do procurador europeu”. Vai daí, acrescentou o candidato, “para desviar as atenções, escolheu o dia de hoje, e não a próxima terça-feira, como tinha dito antes, para anunciar o fecho das escolas”. Mais, “viram-se muitas mulheres de batom vermelho mas nenhuma se insurgiu contra o facto de uma mulher, que era a mais bem classificada, ter sido preterida na nomeação para o cargo de procurador europeu, por um homem, para que o Governo promovesse um amigo”. Como Presidente da República, garante o candidato “chamaria António Costa a Belém para lhe dizer que o caso da manipulação do currículo do procurador era uma linha vermelha ultrapassada e que, assim, o único caminho do primeiro-ministro seria a rua”.
Num dramático apelo ao voto, Ventura afirma que o Chega não só é já a terceira força em Portugal, mas que se aproxima muito da segunda. “E, no domingo, ninguém deve ficar em casa: se conseguirmos forçar uma segunda volta, o paradigma político, em Portugal, mudará para sempre”.
Uma das palavras de ordem dos manifestantes era uma referência a Ricardo Quaresma: “Já foste de trivela”
Cá fora, porém, entre os manifestantes, a mensagem era outra: muitos dos membros da comunidade cigana brandiam cartazes onde se lia “transparência e justiça”, com a fotografia de Ana Gomes. Da mesma comunidade, e com o seu cartaz, as ciganas Maria José e Ângela asseguraram à VISÃO que a socialista é a sua candidata. E Luís Filipe, 54 anos, que veio de Vila Franca de Xira, afirma que os seus ancestrais em Vila Franca remontam a 1843 e que desde então, a sua família sempre trabalhou.
Em alta velocidade, a fugir das pedradas, André Ventura terá sentido a adrenalina das tempestades colhidas, depois dos ventos que tem semeado. Mas é isto que lhe dará força para continuar no seu estilo blindado, imune à crítica, ao contraditório e ao escrutínio. Ramalho Eanes, quando, em 1976, enfrentou, de pé, sobre o tejadilho de um carro de campanha, de mão na anca e peito aberto, uma multidão em fúria, estava a lutar pela estabilização da democracia. Mário Soares, em 1986, quando enfrentou a fúria da turba, na Marinha Grande, estava a lutar pela tolerância. Na sua bravata, que procura imitar estes exemplos, porém, Ventura tem sido suspeito de estar a tentar subverter a democracia e, comprovadamente, tem sido agente de um projeto de intolerância. Os seus simpatizantes, presumivelmente cultores das chamadas “virtudes viris”, apreciar-lhe-ão o histrionismo – que o resto do País contempla, atónito. Não se lhe pode negar a determinação nem sequer a coragem física. Negar-lhe o voto, ou não, será outra conversa.