Uma semana depois de o Governo ter aprovado um dos planos de ação da Estratégia Nacional de Combate à Pobreza, Carlos Farinha Rodrigues, um dos especialistas que contribuíram para o documento, lamenta que só dois anos depois se tenha dado este passo. Mas salienta que um dos objetivos deste plano é o de “reduzir a percentagem de crianças e jovens em situação de pobreza”, num momento em que “superior ao conjunto da população”.
Para aquele que foi um dos ideólogos do Rendimento Mínimo Garantido (o antecessor do atual Rendimento Social de Inserção – RSI), há outras medidas que constam naquela estratégia que carecem de um acompanhamento assertivo, entre as quais as que visam a população imigrante, que fica de fora “muitas vezes dos indicadores de pobreza, e a que prevê a criação de uma prestação social única, que junte várias que um agregado familiar receba atualmente.
“Apesar de a estratégia já ter sido aprovada há dois anos, só agora ser apresentado o plano significa um atraso que é pena que tenha acontecido. Há algumas razões que o podem justificar, mas já deveria ter começado a andar”, lamentou Farinha Rodrigues, no Irrevogável, o podcast de entrevista da revista VISÃO, admitindo que por a estratégia ter sido elaborada numa fase pandémica, “houve um conjunto de medidas muito grandes que não eram previstas inicialmente”, como a “proporção de trabalho informal bastante significativa” que a Covid-19 revelou e ao qual foi preciso responder.
O combate à pobreza entre as crianças é dos mais difíceis. Porquê? As crianças não são pobres em si mesmo; são pobres porque vivem em famílias pobres. Isso implica tomar medidas para as crianças e, simultaneamente, para as famílias em que essas crianças estão inseridas.
Carlos Farinha Rodrigues, professor do ISEG
“O que tem sido feito desde há 2 anos, está ou não a cumprir a estratégia? Diria o seguinte: grande parte das medidas de âmbito social que foram tomadas desde a aprovação da estratégia estão de acordo com o espírito e a ambição da estratégia. O que falta é uma integração dessas medidas. A estratégia carece de um olhar. Tivemos a nomeação de uma coordenadora da estratégia, algo que é fundamental e que permite monitorizar se os objetivos estão a ser cumpridos ou não. Espero que entre agora em velocidade de cruzeiro”, reforçou o professor do Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG), da Universidade de Lisboa, e investigador nas áreas da distribuição do rendimento, da desigualdade e da pobreza.
Pobreza infantil, um flagelo difícil de combater
Segundo Farinha Rodrigues, existe “um nível de pobreza das crianças superiores ao do conjunto da população. E isso tem consequências no curto e no longo prazo. Se nós não conseguirmos quebrar esta situação de crianças em situação de pobreza, não conseguimos reduzir a pobreza; porque a pobreza em Portugal a transmite-se intergeracionalmente – passa de gerações para gerações -, e ou conseguimos, de facto, cortar esse processo de transmissão intergeracional da pobreza ou não conseguimos reduzir de forma substantiva”.
Pode haver o risco de tentar redução de recursos e então isso seria completamente perverso em relação à intenção inicial. Espero que não seja isso que vai acontecer. Espero que esta prestação única permita maximizar o apoio que se dá às famílias, garantindo uma maior abrangência, uma maior eficácia, e que, de nenhuma forma, o objetivo seja reduzir os apoios sociais. Se isso acontecesse, seria muito mau
Carlos Farinha Rodrigues, professor do ISEG
“O combate à pobreza entre as crianças é dos mais difíceis. Porquê? As crianças não são pobres em si mesmo; são pobres porque vivem em famílias pobres. Isso, desde logo, implica tomar medidas para as crianças e, simultaneamente, para as famílias em que essas crianças estão inseridas. Depois, para quebrar este ciclo de transmissão da pobreza, não basta assegurar recursos mínimos, importa também garantirmos igualdade de oportunidades à saúde, à educação e até à habitação. Não é o mesmo uma criança que vai para a escola devidamente alimentada, que tem apoio em casa e acompanhamento escolar, ou ter uma criança que, mesmo indo à escola, vai com fome, chega a casa e não tem condições para estudar, e não tem ninguém que a apoie”, disse, frisando que, ao contrário do passado, há “um problema que não tínhamos há 15 anos – grandes dificuldades na transição dos jovens do sistema de ensino para o mercado de trabalho. E isso é algo que ainda não conhecemos o suficiente, para o qual ainda não temos medidas efetivas e que é um fator de preocupação que quem está responsável pela estratégia deve ter em conta”.
Risco de acertar contas com apoios sociais
A agregação de vários apoios sociais numa única prestação é uma das medidas que consta na Estratégia de Combate à Pobreza e que o Governo pediu à OCDE que possa estudar os moldes. Farinha Rodrigues alertou no Irrevogável para os riscos de, a reboque de tentar ter melhores contas, poder haver cortes.
“A ideia de uma prestação social única, que obviamente – nunca será única no sentido de eliminar todas as outras -, desde há muito tem sido defendida por vários investigadores nesta área. Não, porque o Estado tenha perdido a mão sobre as várias medidas, mas porque ser possível obter sinergias de uma visão integrada de cada indivíduo ou de cada família que está a ser apoiada; para poder dar de forma integrada um conjunto de apoios”, explicou.
“O que se pretende é que uma mesma família, que está no RSI e com outros componentes, possa ser auxiliada de uma forma integrada. Claro que pode haver o risco de, com isso, tentar redução de recursos e então isso seria completamente perverso em relação à intenção inicial. Espero que não seja isso que vai acontecer. Espero que esta prestação única permita maximizar o apoio que se dá às famílias, garantindo uma maior abrangência, uma maior eficácia, e que, de nenhuma forma, o objetivo seja reduzir os apoios sociais. Se isso acontecesse, seria muito mau“, concluiu, quem, há muito, analisa o impacto de medidas como o RSI.
De acordo com o especialista, “o RSI só tem sentido se tiver dois componentes: o apoio monetário às famílias – o subsídio -, mas, ao mesmo tempo, um programa efetivo de inclusão social”. “Diria que esta segunda componente, que deveria ser a mais nobre, em algum sentido, ao longo dos anos, tem tido altos e baixos, mas nunca foi cumprida integralmente. Assim, o RSI, uma medida que à partida seria altamente consensual, tornou-se altamente polémica e com uma estigmatização integrante”, critica.
“É muito fácil encontrarmos alguém a dizer mal do RSI. Mas 90% das pessoas que dizem mal do RSE não fazem a mínima ideia dos valores envolvidos. O que é que isto significa? Significa que, na avaliação ao RSI, há, claramente, uma direita que, por motivos ideológicos, ataca este tipo de medidas – tem todo o direito de fazer. Mas, a nível político, quem deveria ter responsabilidade de o defender não o fez como deveria – e defender o RSI era tornar a medida muito mais transparente, quebrar os mitos e as falsas ilusões”, apontou.
Para ouvir em podcast: