Jair Rattner leva mais de quatro décadas como jornalista e investigador, mas este brasileiro, radicado em Portugal desde a década de 1980 – onde foi correspondente do Folha de São Paulo e da BBC Brasil, entre outros –, talvez nunca tenha assistido a um período tão negro no Brasil democrático.
O convidado desta semana do Irrevogável, o programa de entrevistas da VISÃO, não tem ilusões e acredita que o Presidente recém-eleito, Lula da Silva, “terá de enfrentar um campo completamente minado” neste seu regresso ao Palácio do Planalto – depois de já ter liderado o país entre 2003 e 2011.
“Muita coisa mudou. Houve a destruição de todo o setor empresarial do Estado, seguindo a visão ultraliberal do [ministro da Economia] Paulo Guedes, e depois, após a chegada de Bolsonaro ao poder e a alteração da lei da responsabilidade fiscal (que definia que um governo não podia gastar mais do que aquilo que arrecadava durante o ano) ainda “não é possível saber como estão hoje as contas do país”. “Só se sabe, para já, que o Orçamento para 2023 já está a pagar benesses deste ano”, diz Jair Rattner, acrescentando que “Lula só vai ter uma noção verdadeira da situação financeira do Brasil quando chegar ao gabinete” – a partir de 1 de janeiro de 2023 .
“Estes protestos não são espontâneos, mas organizados”
Com o anúncio dos resultados das eleições, os apoiantes do ainda Presidente Jair Bolsonaro saíram à rua, com o objetivo de bloquear estradas, paralisar o país e apelar a uma intervenção militar, que voltasse a instalar no país uma ditadura militar, impedindo a transição do poder de forma democrática para Lula da Silva.
Perante as imagens que nos chegam do outro lado do Atlântico, Jair Rattner considera que “protestar contra o resultado destas eleições não faz qualquer sentido”, mas alerta que estas manifestações “não são espontâneas, mas organizadas, e isso é uma conclusão a que já chegou a Polícia Federal”.
Sublinhando que “estes protestos passam por cima da democracia”, Jair Rattner não tem dúvidas em apontar o dedo à postura de Jair Bolasonaro em todo este processo, uma vez que o silêncio que manteve, durante 45 horas após serem conhecidos os resultados eleitorais, “foi encarado como uma senha para desencadear estas manifestações”.
“O objetivo é claro. Se [o golpe] desse certo, daria; se não desse certo – como parece que não está a dar –, então, Bolsonaro não seria responsabilizado…”, afirma, acrescentando que “a democracia de cada país tem de definir, de acordo com a sua história e tradições, os limites da sua democracia… Na Alemanha, por exemplo, não é permitido às pessoas manifestarem-se pelo regresso do nazismo. Fazer uma saudação romana dá prisão…”, destaca.
Segundo o analista político, estas manifestações explicam-se com a herança deixada pela ditadura militar, pois com a transição para a democracia deveria “ter sido feita uma limpeza do aparelho do Estado”, defende. “O primeiro Presidente do Brasil democrático foi José Sarney, que era uma pessoa do partido do regime, o Arena [Aliança Renovadora Nacional], mas que no último momento mudou de posicionamento. Nada foi feito, nenhum líder foi punido. Não falo de um ajuste de contas, mas da necessidade das pessoas terem de ser responsabilizadas pelo que fizeram, pois, quando isso não acontece, as pessoas podem manter um low-profile, durante vários anos, até que reencontram o momento certo, normalmente durante uma crise, para voltarem ao poder, exatamente defendendo as mesmas ideias”, afirma.
“Risco de existirem confrontos violentos é real”
Jair Rattner não tem dúvidas: “O que está a acontecer no Brasil, neste momento, é a tentativa de criar condições para que exista um golpe militar que renegue aquilo que a democracia conquistou” desde 1985, alerta. Ainda assim, o jornalista e investigador acredita que o risco de acontecer, de facto, um golpe de Estado é “cada vez menos provável”, já que “existe um desgaste” em torno dos protestos dos últimos dias.
Os riscos da violência continuar, porém, mantêm-se como cenário realista, o que motiva preocupações acrescidas, num país polarizado, onde a posse de armas aumentou quase cinco vezes (para perto dos 700 certificados de posse) durantes os últimos quatro anos.
“Acho que é um risco real que possam existir confrontos violentos” no Brasil, diz Jair Rattner, embora considere que essa situação “vai depender muito das medidas judiciais para responsabilizar aqueles que, por estes dias, se têm colocado contra a democracia”. “Se isso não acontecer, se não houver punições, as pessoas vão sentir-se legitimadas a acreditar que o único caminho para combater as suas frustrações é recorrer à violência”, diz.
Relação entre Portugal e Brasil “vai melhorar”
O jornalista e investigador considera que Lula da Silva, para já, “não deve falar”, uma vez que teme que isso possa “levar a que as pessoas que estão descontentes com ele ganhassem mais força”. “O Lula, neste momento, não decide nada e, por isso, sinceramente, acho que se ele falasse seria prejudicial. Seria apenas mais ruído. Esta é, isso sim, a hora da polícia e da justiça atuarem. Caso a polícia não atue – e isso já aconteceu com a Polícia Rodoviária Federal –, então os tribunais têm de obrigá-la a atuar. No Brasil, aliás, fala-se muito da possibilidade do diretor da Polícia Rodoviária Federal [Silvinei Vasques, apoiante de Jair Bolsonaro] vir a ser preso por não fazer cumprir a lei”, afirma.
Depois do mandato de Jair Bolsonaro, em que as relações do Brasil com Portugal e os países lusófonos ficaram em stand-by, Jair Rattner crê que, agora, com Lula, a relação entre os dois países possam mudar (ou normalizar-se). “Durante o mandato de Bolsonaro não houve nenhuma tentativa de estabelecer uma relação com Portugal ou qualquer outro país de língua oficial portuguesa. Toda a política externa de Bolsonaro era de um seguidismo atroz em relação à presidência de Donald Trump. As relações principais que Bolsonaro tinha era com Hungria, Rússia, Israel de Benjamin Netanyahu… Enfim, com partidos e políticos que seguem uma linha anti-globalismo, anti-sisitema… Acho que , agora, as coisas agora vão mudar”, conclui.