No Irrevogável desta semana, o convidado, Manuel Soares, juiz de carreira e presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses (ASJP), diz que a ideia de acabar com os megaprocessos é pura ficção: “Ninguém percebe que um processo possa demorar 10, 15 anos, mas vou ser franco, não sei qual a solução para isso. Há processos que terão de ser sempre megaprocessos. Não vamos perceber um puzzle de mil peças só olhando para dez ou 15. Não é possível acabar com os megaprocessos enquanto houver megacriminalidade. Enquanto houver megacriminosos, mega sistemas de ocultação de riqueza, megaoffshores onde é possível fazer circular o dinheiro, vão existir megaprocessos, e depois o que é preciso? Megameios. E se não os temos a responsabilidade é da classe política.”
Se entramos na discussão sobre a demora da decisão da instrutória da Operação Marquês – a fase de instrução começou em janeiro de 2019 e, dois anos depois, ainda não se sabe qual a decisão do juiz Ivo Rosa -, o líder dos magistrados judiciais preferiu não ser tão crítico: “Não sei se é tempo excessivo ou não, sei é que o processo tem uma dimensão monstruosa e que há um juiz sozinho a decidi-lo. Deveríamos ter um sistema há muito tempo em que os juízes tivessem uma equipa. Não temos. Não é preciso saber construir um foguetão para saber que os juízes nestas situações precisam de assessorias.”
Sobre o Caso Lex – que levou à acusação dos juízes Rui Rangel, Fátima Galante e Luís Vaz das Neves -, Manuel Soares assume, em conversa com a VISÃO, que “o sistema falhou”: “Um sistema que durante 25 ou 30 anos não deteta situações que, como se veio a verificar, eram antigas, falhou. Temos de ter todos a humildade de aceitar este falhanço do sistema. Não é da pessoa A ou B. Todos somos responsáveis.” Agora, diz, é tempo de corrigir esses erros e “garantir aos cidadãos que se amanhã tivermos um caso idêntico ele será detetado e resolvido mais cedo”: “Temos de criar mecanismos mais robustos que permitam detetar que se um juiz apresentar um património superior ao que é suposto ter, o juiz tem de o explicar. Eu não posso declarar um iate, um apartamento ou uma moradia de 4 milhões de euros com o salário que tenho.”
A Associação a que preside reuniu, aliás, nove propostas para melhorar a transparência e combater a corrupção entre os juízes, como a fiscalização cerrada das declarações de rendimentos dos magistrados e a criação de canais de denúncia para que qualquer cidadão, de forma anónima, possa denunciar um juiz por corrupção. Diz que ainda nada aconteceu por culpa da inércia e da ausência de respostas do Conselho Superior da Magistratura, o órgão de gestão e disciplina dos juízes: “Pedimos uma reunião há quase dois meses e nem sequer nos respondem. Temos juízes que querem robustecer o plano e o sistema de fiscalização, e o órgão de gestão dos juízes não responde. Começo a achar isto estranho. (…) Enquanto eu aqui andar, vou ser chato. E já que o Conselho Superior da Magistratura acha que não tem de falar com os juízes, vamos falar com o Parlamento, vamos pedir ao Presidente da República quando for eleito que se interesse por isto, e estes órgãos que assumam também a sua responsabilidade. Porque se amanhã aparecer um caso Rui Rangel qualquer, o judiciário nunca mais pode dizer que: ‘ah, fomos apanhados desprevenidos’”.
Rui Rangel e Fátima Galante, recorde-se, foram afastados da magistratura judicial, por via de um processo disciplinar, antes mesmo de serem acusados num processo-crime, o que tem causado muitas discussões legais entre os juristas. Para Manuel Soares está claro “no estatuto que a apreciação disciplinar é independente da apreciação criminal”. E, mais importante: “Toda a gente percebe que não podemos ter uma pessoa dez anos a ser julgada num processo-crime por suspeitas de corrupção e estar nos tribunais a julgar os outros por atos de corrupção.”
Outra maneira de melhorar a transparência da atividade dos juízes e de outros cargos políticos, diz o presidente da Associação Sindical nesta entrevista à VISÃO, é voltar a pôr na ordem do dia o debate sobre o enriquecimento ilícito. “Se tivermos um sistema que permita punir a aquisição de riqueza durante o exercício de cargos públicos seremos capazes de em 5 minutos dizer 30 ou 40 pessoas que já teriam sido condenadas. Pessoas que sabemos que adquiriram riqueza no exercício de cargos públicos que nunca foi bem explicada.” A Associação Sindical que representa os juízes tem uma proposta para fiscalizar este enriquecimento que não põe em causa as objeções do Tribunal Constitucional. “Neste momento ninguém tem de justificar um património, mesmo que me caia 1 milhão de euros na conta. E muita gente diz: ah, mas um juiz ou um político corrupto não vai declarar esse rendimento. Claro que não, mas se amanhã for apanhado com esse rendimento vai ser punido apenas por não ter declarado. Esta medida é legítima e constitucional. É razoável e útil.” A proposta já chegou à ministra da Justiça, que disse estar interessada a discutir esta proposta publicamente. Só falta o Parlamento. “Onde se vai fazer a prova do algodão é no Parlamento. Estou convencido que se algum partido a apresentar nenhum outro terá a coragem política de ser contra ela. A questão é: quem é que a apresenta? Não me admiro que já haja aí gente a ligar e a dizer “vejam lá que isto é perigoso”.
Manuel Soares também gostava de acabar com as portas giratórias entre a Política e a Justiça e entre estas áreas e o Futebol. Recordado de que a ministra da Justiça e dois secretários de Estado vêm da magistratura, o líder sindical responde: “Não quero personalizar. A minha posição na associação vai além dessas pessoas. No contexto em que vivemos, os juízes não devem estar na política e voltar depois para os tribunais. Não é porque a política seja um foco de infecção, que uma pessoa venha dali corrupta para a magistratura. É muito importante a perceção que as pessoas têm sobre o trabalho de um juiz. Amanhã o Manuel Soares era presidente de um clube de futebol, e depois era ministro de qualquer coisa, juiz um ano ou dois, depois era secretário de estado de um governo, depois como juiz tinha de julgar um caso ligado à política. A toda a hora temos juízes que vão exercer essas funções sem qualquer controlo do interesse público. Os Conselhos tem aí um critério demasiado permissivo.”
Outra das grandes críticas feitas por Manuel Soares dirige-se ao caos dos tribunais administrativos e fiscais. E neste ponto o presidente da Associação Sindical dos Juízes não tem pudores em apontar culpas ao Governo: “É uma vergonha para os sucessivos governos e para os sucessivos parlamentos que há 20 anos não percebam que há um problema a avolumar-se e que não sejam capazes de o resolver. Os tribunais administrativos não funcionam porque o poder político não quer. O Estado tem uma posição dúbia nesses processos, porque o Estado é réu. Quanto mais vezes for condenado nesses processos, mais dinheiro gasta. O Estado é ao mesmo tempo o organizador do sistema e dos meios e o principal prejudicado se o sistema funcionar bem.”
Acontece que este problema, assegura, criou outro problema paralelo: o das arbitragens.”Se eu sou uma empresa que acha que tem um crédito de 10 ou 15 milhões por imposto que pagou a mais, o que é que eu faço? Vou esperar 10, 15 anos para reaver isto? Não, vou gastar 200 ou 300 mil euros para resolver isto num tribunal arbitral. Estamos a falar de centenas de milhões de euros por ano que já não são decididos no sistema de justiça. Nao sei se há algum lobby. O que sei é que temos um sistema do Estado que não funciona e ao lado um negócio que vive da ineficiência desse sistema.”
“Como juiz, tenho de aceitar as críticas”
Sobre o caso da vigilância a jornalistas no âmbito de um inquérito por violação do segredo de Justiça no caso E-Toupeira – que foi revelada na passada semana – Manuel Soares não é taxativo: “Não podemos ter políticos que são investigados e dizem ‘isto é uma cabala contra o PS’ e depois dizer ‘isto é uma cabala da Justiça contra a liberdade de imprensa’. Há aqui uma discussão importante sobre a validade dos meios de prova e os limites do Ministério Público. É preciso refletir sobre isso mas não me parece que seja possível nem sensato à partida usar esta tirada demagógica de que é uma investida do MP contra a liberdade de imprensa. Naturalmente percebo que as pessoas visadas queiram reagir, mas passada a poeira o que sobra é uma investigação que terá juízes a decidir se as provas são ou não válidas.”
Já sobre as trapalhadas na escolha do Procurador Europeu, Manuel Soares diz não estar convencido “nem com uma versão nem com outra”. Mas reconhece, sobretudo, o “aproveitamento político da situação”: “Não consigo dizer quem é que esteve bem. Era importante que a matéria se esclarecesse. E que no futuro com novos concursos desta natureza tenhamos um sistema mais claro e mais objetivo.”
Falando do Tribunal Central de Instrução Criminal, o líder dos juízes não segue a corrente que defende a sua extinção, mas fala da existência de um problema que precisa de ser corrigido: “A generalidade das pessoas compreende que há um problema [no Tribunal Central], que resulta da excessiva personalização das decisões e de a certa altura já não interessar o que é o que o juiz A ou B decide, só se é do juiz A ou B.” Extingui-lo, diz, seria “alienar um património de experiência adquirida na investigação de criminalidade muito complexa”. Em vez disso, defende, deveria haver “um aumento do quadro dos juízes” daquele tribunal ou transformá-lo numa secção do Tribunal de Instrução Criminal. “É preciso despersonalizar as decisões de um tribunal que tem muita importância.”
Tema que não podia faltar era a discussão à volta de sentenças e acórdãos como a do juiz Neto de Moura, que se alongou sobre o papel da “mulher adúltera”. “O meu princípio é que os juízes não podem usar a decisão judicial para fazer comícios. Ideológicos, políticos, seja de que natureza for. Quando escrevo uma decisão é o Estado a falar, não é o Manuel Soares.”
Questionado sobre uma decisão que secundou enquanto juiz desembargador no Tribunal da Relação do Porto, em que manteve uma pena suspensa a dois homens acusados de violarem uma rapariga inconsciente num bar, por tal ter acontecido num alegado contexto de “sedução mútua”, Manuel Soares responde: “Como juiz posso ser criticado, por muito que custe e por muito que me doa, tenho de aceitar a crítica porque estou numa posição pública. É como um futebolista. Quando está a jogar futebol não pode dizer ‘a mim ninguém me toca nas canelas’.” Arrepende-se de ter assinado aquela decisão: “Não, o meu nome estava lá porque concordei com a decisão da primeira à última palavra. Se fosse hoje fazia-a igual, porque achei que a decisão era justa. Esta decisão foi tomada na Relação por dois juízes – um juiz e uma juíza – na 1º instância por três juízas. A decisão pode estar errada, mas se estiver não é porque os juízes são todos machistas e misóginos. É porque fomos todos incompetentes a decidir.”
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