A poucas horas das eleições autárquicas, Rui Rio (PSD) estava “morto” no deserto e sem o Porto por perto. Rodrigues dos Santos (CDS) também caminhava para o desterro e Carlos Moedas era um sério candidato a afundar o que restava da barcaça que uniu a direita “moderada”. Essa mesma que reivindica a arte de navegar por alianças históricas, com sabedoria e pouca pachorra para atrevimentos da jovem descendência ultraliberal (IL) ou excitações do radicalismo (Chega), muito apressado em surfar as ondas da moda e gerar “likes”.
Pois bem: tal como nas melhores séries de suspense, com uma pitada de terror à mistura, a noite eleitoral deu protagonismo aos “mortos-vivos”. Sentenciado pelas sondagens, Carlos Moedas não só se resgatou a si próprio para o futuro da direita direitinha como deu vidas suplementares aos líderes do PSD e do CDS, deixando assim os potenciais adversários, cavaleiros da desgraça, a uma longa espera no banco de suplentes. Também por isso, há agora mais moribundos do lado daqueles que já afiavam o dente com o cheiro a sangue. E alguns podem mesmo não sobreviver ao esquecimento a que foram votados até 2023.
Já que se fala de “mortos-vivos”, nunca esquecer que, por vezes, os primeiros amores são fonte de renascimento político: quando tudo indicava que Pedro Santana Lopes iria, finalmente, deixar de andar por aí, eis que ele puxa de uma das suas muitas vidas (quantas tem, afinal?) e volta para os braços da sua amada Figueira da Foz, paixão inicial antes de muitas outras conquistas e desenlaces por todos conhecidos.
Mas isto é só uma amostra da noite eleitoral.
Dentro deste espírito, há muito mais a dizer…
O QUE MOEDAS GANHOU E DEU A GANHAR
A Câmara de Lisboa é uma vitória dele e da teimosia de Rui Rio, cavaleiro andante contra as sondagens. Não se podem deixar de louvar a persistência e a atitude refratária do candidato e do líder do PSD a propósito de vitórias antecipadas nas redes sociais e nos estudos de opinião. Moedas ganhou para ele e para todos os que precisavam de um fôlego dado por uma surpresa fora de todas as palpitações e “palpiteiros”. A realidade é outra coisa. E disso parece saber Rio, habituado a desafiar as improbabilidades. Quem precisa de populismos?
O QUE MEDINA PERDEU HOJE. E PARA FUTURO?
A cara do ainda presidente da Câmara de Lisboa tinha todo o desalento e choque estampados. Mas para quem perdeu de forma trôpega algo que julgava seu por mais quatro anos, não se saiu mal na atitude de humildade democrática. O pior é o resto: depois desta derrota, quem se lembrará de Fernando Medina para potencial sucessor de António Costa? É uma boa pergunta. Mas o jogo da política ensina que se espere, mesmo tendo que recuar umas casas. Medina parecerá, durante muito tempo, desaparecido em função do combate dos “chefes” que se adivinha no PS. Mas o agora derrotado tem a galeria dos “mortos-vivos” a seu favor.
PS E PSD: GANHAS TU E GANHO EU
António Costa e Rui Rio já foram acusados de se darem demasiado bem para desespero dos mais impacientes de cada trincheira. Verdade seja dita, também se deram demasiado bem com os resultados da noite eleitoral: o PS ganhou as autárquicas pela terceira vez consecutiva e “agarrou-se” à pandemia para justificar a fatura que pagou com a perda de votos (quase 300 mil) e câmaras. Rui Rio não ganhou as eleições, mas quem se atreve a dizer-lhe isso na cara depois de arrebatar Lisboa, Coimbra e mais umas quantas autarquias emblemáticas quando se dizia que já carregava uma cruz às costas? Os dois, pelos vistos, dão-se tão bem com o instinto de sobrevivência. Se as circunstâncias fossem outras, até dariam um casal típico de bloco central. Não assumido, claro.
PCP: A LUZ E O TÚNEL
Se a CDU pensava que estas eleições poderiam ser a luz no fundo do túnel em que se meteram há quatro anos (pior resultado de sempre) eis que a escuridão se prolonga e o túnel parece não ter saída à vista. Câmaras emblemáticas (Loures, Alvito e Alpiarça, por exemplo) deixaram de ter selo comunista e quase 50 mil votos voaram em todo o País. O Alentejo é já uma manta de retalhos onde até o Chega já faz mossa. Da noite eleitoral salva-se o resultado de João Ferreira em Lisboa e a subida considerável de Ilda Figueiredo no Porto, contribuindo para retirar a maioria absoluta a Rui Moreira. Há autarquias que também voltaram às mãos dos comunistas e dos seus parceiros de coligação (Barrancos é uma delas), mas o PCP, pelo menos visto de fora, parece sempre blindado contra os ventos do avesso: “Para vosso descanso, um dia deixarei de ser secretário-geral”, ironizou Jerónimo de Sousa, ao responder à possibilidade de eventualmente abandonar o cargo, pergunta tenrinha que os comunistas mastigam à ceia, há décadas, enquanto os jornalistas esfregam um olho.
BE: PROBLEMAS DE IRRELEVÂNCIA
A eleição de um vereador no Porto, feito histórico, não chega para atenuar o dramatismo existencial do Bloco de Esquerda, acentuado nestas eleições autárquicas: fora dos grandes centros urbanos, o partido é uma irrelevância no poder local, sem que isto signifique falta de empenho dos seus (poucos) eleitos. Ao nível autárquico, é, sobretudo, uma força política de faixa litoral e, mesmo assim, em municípios contados a dedo. Nestas eleições, o BE perdeu mais de 60 mil votos. E que tal uma conversa de divã do Bloco com a sua Esquerda?
CHEGA: NÃO FOI DE VENTURA EM POPA, MAS…
Parece uma derrota, mas é uma vitoria. Parece uma vitória, mas é uma derrota. Descodifiquemos: Ventura queria que o Chega fosse a terceira força política em número de votos, mas o eleitorado disse-lhe: “Toma lá 19 vereadores, mais de 207 mil votos, umas boas centenas de deputados municipais e de freguesia, e não digas que vais daqui. Cresce e aparece”. É o que ele tem feito, de facto, mas ao contrário: aparece muito, mas cresce devagarinho. Ora, 4,1 por cento sabem a pouco, embora ver o partido espalhado pelo poder local, em concelhos dos distritos de Lisboa, Braga, Santarém e Setúbal seja um bom augúrio para principiantes. A direita radical populista vai andar por aí e, mais cedo do que tarde, veremos como o Chega tentará condicionar as maiorias relativas no poder autárquico do PSD, seu parceiro fetiche. A 4ª República continua a ser um sonho húmido de André Ventura, mas uma coisa é certa: o discurso do Chega já tem rostos de norte a sul do País.
INDEPENDENTES: MAIS DO QUE MOREIRA E SANTANA
A terceira vitória do “independente” Rui Moreira na corrida à Câmara do Porto (apesar de perder a maioria absoluta) e o regresso de Pedro Santana Lopes na Figueira da Foz relevam a importância dos movimentos apartidários nestas eleições. As candidaturas abrigadas em “grupos de cidadãos” recuaram em número de votos, mas aumentaram em termos de eleitos. É já incontornável o seu peso (5,5 %) no território eleitoral e o autarca da Invicta sentiu-se à vontade, na hora do discurso da noite eleitoral, para reclamar a criação de uma federação de candidatos independentes. O caminho vai-se desbravando e, mesmo que algumas listas surjam de ressabiamentos com a casa-mãe partidária, estes movimentos já estão sentados à mesa e a reivindicar cada vez mais apetite pelo bolo.
SUZANA SEM CÂMARAS E SEIXAL SEM TINO
Nestas eleições, há duas candidaturas que deram imensas calorias mediáticas e populistas ao debate público: Susana Garcia na Amadora e Bruno Vasconcelos, ambos candidatos em listas lideradas pelo PSD. A primeira, ex-estrela televisiva com discurso de mão pesada, ficou-se pela tentativa de ganhar a autarquia, mesmo tendo, a dada altura, usado a palavra “vitória” (como, onde, quando?). O segundo, encavalitado numa campanha à Inimigo Público, com recurso a trocadilhos, ações provocatórias e a cartazes com ditadores comunistas, resultou numa anedota e, ainda por cima, sem graça nenhuma: o PSD perdeu mais de 1200 votos em relação a 2017 e a CDU reforçou a maioria que já tinha. Resultado: Susana Garcia fica sem câmaras, a da Amadora e as da TV; Quanto ao génio da lâmpada que inventou a campanha social-democrata do Seixal, é caso para dizer que vai de Mao a pior.
E JÁ SE TINHAM ESQUECIDO DESTES, NÃO?
Dois candidatos do Chega transformaram-se numa espécie de “tesourinhos” das autárquicas que, como se sabe, é a festa do poder local, uma espécie de Taça de Portugal da política. De algum modo, os cabeças-de-lista que se seguem acabaram por ser protagonistas de histórias caricatas ou popularizados por razões que lhes escaparam das mãos. Ou da boca. O que é que lhes aconteceu, perguntam então os leitores. Foi isto:
– O candidato de Ventura na Covilhã que não se lembrava do nome de todos os membros da sua lista, que não conseguiu dizer quais eram as propostas para o concelho e teve sucessivas falhas de memória durante uma entrevista radiofónica, obteve, afinal, 448 votos, um número considerável de eleitores e apoiantes que o cabeça-de-lista Carlos Curto certamente…desconhecia.
– Outro candidato do Chega que deu que falar foi Bráulio Moreira, de São Brás de Alportel, o tal que chamou “indiano vingativo” a António Costa e misturou, no mesmo discurso, Timor, Indonésia, China, pandemia e o relato breve das suas consultas com o psiquiatra. Pois bem: 146 almas daquele município algarvio deram-lhe o seu voto. Uns pândegos!