A VI Convenção Nacional do Chega permitiu conhecer o guião que André Ventura escolheu para a campanha eleitoral das próximas legislativas. O recém-eleito presidente do Chega usou (e abusou) de ideias e palavras-chave, identificou os alvos, ignorou outros, numa coreografia montada aso som das ovações de cerca de 800 delegados.
A VISÃO dá-lhe as pistas para seguir a narrativa política que André Ventura vai adotar até às legislativas de 10 de março. Em 10 mandamentos (e um 11.º de bónus, mas esquecido), o Chega confirma a sua natureza radical e populista, apesar do aparente amadurecimento que a reunião magna do passado fim-de-semana.
1. O adversário Pedro Nuno Santos
André Ventura já escolheu o seu adversário: Pedro Nuno Santos. O líder do Chega dedicou ao recém-eleito secretário-geral do PS grande parte do seu discurso que encerrou a VI Convenção Nacional do partido radical e populista, realizada, no passado fim-de-semana, em Viana do Castelo. “Que autoridade tem um homem que governava instituições por WhatsApp, que atribuiu uma indemnização de meio milhão de euros a quem não o merecia [Alexandra Reis], que fez negociatas com o BE e o PCP para comprar os CTT, que não vale nada…”. “As mentiras e a manipulação não cabem neste congresso, mas cabem que nem uma luva a si [Pedro Nuno Santos] e ao PS”, afirmou Ventura perante a sua “família”.
As críticas ferozes ao “neto de sapateiro”, como André Ventura, por várias vezes, se referiu ao adversário, foram uma constante nos discursos das principais figuras do partido.
2. Luís Montenegro. Quem?
O nome de Luís Montenegro foi praticamente ignorado durante os dois dias e meio que durou a Convenção Nacional do Chega. Por acaso? Nada do que se ouviu no palanque, durante a reunião magna do Chega, foi por acaso – justiça seja feita.
A estratégia de André Ventura é clara: assumir-se como “a verdadeira” e “a melhor” alternativa de direita ao PS e ao socialismo. O líder do PSD mereceu apenas (alguma) atenção durante o discurso do (entusiasmado) embaixador António Tânger Corrêa, “vice” do partido, que criticou ferozmente a nova AD, para voltar a “colar” a figura de Sá Carneiro ao Chega. “Quem já foi do PSD? Quem já foi do CDS?”, questionou os delegados. “A verdadeira AD está aqui!”, concluiu, depois que vários braços se terem levantado.
3. O “vírus” da corrupção
“Corrupção”, “corrupção, “corrupção”. A palavra-chave para a campanha do Chega está escolhida. André Ventura insiste no argumento, associando o fenómeno, quase em exclusivo, ao PS e às causas do socialismo.
“O governo de António Costa caiu por ‘corrupção’, caiu por causa do dinheiro em envelopes e livros”. “A queda do governo [de António Costa] é o fim do vírus que se espalha pela sociedade portuguesa, muito mais do que a Covid-19 se espalhou”, referiu Ventura na Convenção. Com base num estudo – denominado “The Costs of Corruption Across the European Union” – que o Grupo dos Verdes/Aliança Livre Europeia divulgou, no Parlamento Europeu, no final de 2018, o presidente do Chega afirmou que a corrupção “custa 20 mil milhões de euros por ano aos portugueses”, números que carecem de confirmação.
Como habitualmente, o líder do Chega prometeu acabar com “a corrupção” e “o compadrio que tomou conta deste país”. “Se for governo, todos os políticos condenados por corrupção ficarão impedidos, para sempre, de exercerem qualquer cargo públicos; e nenhum governante ou autarca poderá trabalhar em empresas a quem adjudicou obras ou teve outras relações”, prometeu.
4. Os aliados: polícias e militares
E por falar em promessas: embora os discursos mais radicais tenham ficado à porta da Convenção, André Ventura não largou a narrativa securitária, sempre presente no guião populista dos partidos da direita radical, a nível global. As forças de segurança (PSP, GNR e guardas prisionais) – onde Ventura terá uma significativa base de apoio – estiveram sempre presentes nos discursos, com o presidente do Chega a aproveitar os protestos, que, por coincidência, começaram na semana deste encontro, para garantir que, se for governo, vai ‘abrir os os cordões à bolsa’ para este universo profissional.
“O governo decidiu discriminar, espezinhar e humilhar propositadamente [as forças de segurança]. Fazer isto é dizer que este é um país onde é melhor ser bandido do que polícia. A primeira coisa que a direita vai fazer, se chegar ao poder [no dia 10 de março] é equiparar os subsídios da PSP e da GNR aos da PJ”, afirmou.
Os ex-combatentes também mereceram a atenção do líder: “Vão passar a ser respeitados e valorizados”, garantiu Ventura. Muitos estavam presentes, e aplaudiram efusivamente (houve, até, quem tenha subido para cima das cadeiras, tal o entusiasmo). O dinheiro para tudo isto viria “dos 400 milhões que o Estado gasta com a identidade de género”, diz Ventura,
5. O fim do IMI e do IUC
Foi a Pedro Pinto, líder parlamentar do Chega, a quem coube prometer baixar e acabar com um conjunto de impostos. “André Ventura será eleito o primeiro-ministro. No próximo dia 10 de março, será o Chega que vai governar o país”, garantiu o deputado eleito, em 2022, pelo círculo de Faro. Pinto prometeu uma revolução na política fiscal: acabam o IMI, “o imposto mais estúpido de todos”, descreveu, o Imposto Único de Circulação (IUC), o IVA intermédio da restauração baixa dos 13% para os 6% e mantém-se o IVA 0% para “os produtos necessários e para os produtos portugueses”.
Medidas que teriam um importante impacto nas contas do Estado: o IMI vale perto de 1,5 mil milhões por ano; o IUC 772,6 milhões (dos quais €303 milhões são transferidos para as autarquias). Só aqui estão mais de 2 mil milhões de euros anuais de receitas.
As contas do IVA são mais difíceis de serem feitas, até porque Pedro Pinto não foi claro quanto aos produtos portugueses que beneficiariam da borlas. O anúncio das alternativas – a existirem – ficaram para depois. “Cortar na corrupção”, diz apenas Ventura. Em contraciclo, o Chega quer gastar mais.
6. Promessas aos professores e pensionistas
Gastar mais, não. Muito mais.
André Ventura passou dois dias e meio a falar aos portugueses… principalmente, aos descontentes. Neste grupo, incluem-se os professores, que continuam em luta pela reposição de 6 anos, 6 meses e 23 dias de tempo de serviço. O líder do Chega continua a surfar a onda.
No discurso de encerramento da VI Convenção Nacional do Chega, Ventura prometeu que, com o Chega no poder, os professores “vão recuperar integralmente o tempo de serviço”, no espaço de apenas quatro anos (ou uma legislatura).
As carreiras da Administração Pública estiveram congeladas entre 2005 e 2007 e entre 2011 e 2017, o que perfaz um total de nove anos e quatro meses. O tempo de serviço voltou a contar a partir de 2018. O governo aceitou devolver dois anos e nove meses desse período, “com um impacto permanente anual na despesa pública estrutural de 244 milhões de euros”, segundo o Ministério das Finanças. Ir ao encontro das reivindicações dos professores, representaria gastar, anualmente, mais 331 milhões de euros, de acordo com as contas feitas pelo governo. A fatura chegaria aos 575 milhões/ano.
Os pensionistas é outro pública que Ventura tenta convencer. Tradicionalmente, acredita-se que os mais idosos não veem com ‘bons olhos’ o programa do partido, mas o Chega promete alterar essa perceção durante a campanha. “Em seis anos, nenhuma pensão vai ficar abaixo do salário mínimo nacional”, promete.
2028 está já ali ao virar da esquina.
7. Portas abertas aos “portugueses de bem”
Henrique Freitas (ex-secretário de Estado dos governos de Durão Barroso e Santana Lopes), Nuno Simões de Melo (ex-IL), Paulo Veigas (ex-CDS), Diogo Prates (ex-IL) e Fernando Silva (ex-PSD) ou António Pinto Pereira (ex-PSD). A lista já vai longa e Ventura promete mais.
André Ventura voltou a ‘alertar’ os militantes do partido que é hora de ‘abrir portas’ a “todos” os que procuram o Chega, oriundos de partidos da direita portuguesa, como PSD, CDS ou IL.
“O ADN do Chega não vai mudar (…) com a entrada de centenas, milhares de pessoas que vieram do PSD e do CDS”, assegurou. “Hoje, essas pessoas já fazem parte do nosso ADN”.
“Não devemos fechar as portas a quem nos procura. Aqueles que, hoje, dizem, ‘eu errei, estive num sitio diferente, mas agora encontrei um partido diferente’ são, sim, um símbolo do nosso crescimento”, disse.
8. Francisco Sá Carneiro, hoje e sempre
“Sinto-me tão pronto, hoje, como sei que Sá Carneiro se sentia para ser primeiro-ministro em 1979”. A frase de André Ventura foi recebida com gritos e aplausos de entusiasmo pela plateia. A presença de Sá Carneiro, como referência do partido e do líder, não é nova, e é lançada a cada oportunidade .
Antes, já o embaixador António Tânger Correa havia dito que “a AD de Sá Carneiro, Freitas do Amaral e Gonçalo Ribeiro Telles estava ali”, representado pelo Chega e seus apoiantes. No discurso de encerramento da VI Convenção Nacional do Chega, Ventura voltou a mencionar o nome do ex-primeiro-ministro e fundador do PPD/PSD.
“Sinto-me tão pronto hoje como sei que Sá Carneiro se sentia para ser primeiro-ministro em 1979, e estou tão pronto em dar a minha vida por este país como sei que ele estava”, repetiu Ventura. Recorde-se que Sá Carneiro morreu na sequência da queda, em Camarate, arredores de Lisboa, da aeronave em que viajava, em dezembro de 1980. No acidente, faleceu também Adelino Amaro da Costa, fundador do CDS, à época, ministro da Defesa Nacional.
9. A (alegada) substituição demográfica
Filipe Melo, deputado eleito por Braga, dedicou o seu discurso a atacar a imigração. Esta será uma das principais bandeiras do partido na campanha para as legislativas de 10 de março. Mas (quase) tudo o que se ouviu na VI Convenção Nacional do Chega sobre o assunto não corresponde à verdade.
Melo começou por afirmar que os imigrantes “vêm beneficiar da Segurança Social que os nosso pais e avós pagaram anos e anos”. Esta afirmação é falsa. De acordo com o Relatório Estatístico Anual 2023 sobre os Indicadores de Integração de Imigrantes, o saldo financeiro (diferença entre contribuições e benefícios) é bastante positivo, com os estrangeiros residentes no país a contribuírem, nos últimos dois anos, com 968 milhões de euros (em 2021) e 1.604,2 milhões (em 2022).
O deputado, eleito por Braga, também não disse a verdade quando afirmou que existia um milhão de imigrantes em Portugal. O número correto é de 782 mil (7,5% do total dos residentes em território nacional). E aproveitou ainda para ligar o “caos no SNS”, como designou, aos imigrantes, sem dados que justifiquem essa afirmação.
“Só deve vir quem vem por bem (…) temos de regular a imigração em Portugal, não devemos deixar entrar todos e de qualquer maneira (…) devemos ter uma imigração que nos faça mais ricos e não que nos faça mais pobres”, afirmou André Ventura no seu discurso. “A reversão do SEF” é outra promessa; “ninguém pode ser português sem saber falar a língua e conhecer a cultura [portuguesas]”.
Na intervenção de uma das moções que defendia a reversão da extinção do SEF, apresentada pela militante Raquel Pereira, voltou a falar-se de “substituição demográfica” e feita uma associação a crimes ocorridos em Portugal contra mulheres cometidos por pessoas oriundas dos países “indostânicos”. Nenhuma destas afirmações corresponde à realidade.
10. Contra a ideologia de género, marchar, marchar
Como pensa André Ventura aumentar a despesa com o crescimento das pensões, dos subsídios para as forças de segurança ou os salários dos professores, entre outras generosidades? Como fará frente ao “corte” nas receitas dos impostos e da Segurança Social, que, como se viu acima, conta com o importante contributo dos imigrantes que vivem em Portugal?
Aos militantes presentes no congresso, o líder do Chega apresentou como solução “acabar com a corrupção”. Esta ideia entusiasmou, mas houve ainda outra a provocar um autêntico êxtase nos presentes. “Eu garanto-vos uma coisa, aquele dinheiro todo que damos para as ideologias de género e para promover a igualdade de género […], vou pegar nesses milhões todos e vou dizer às associações: ‘esqueçam, não vão receber um tostão’”, declarou, admitindo que as suas afirmações podem ser consideradas polémicas.
O presidente do Chega alegou estar em causa cerca de 400 milhões de euros e prometeu usar esse valor, caso venha a ter responsabilidades governativas, na criação de “um fundo de apoio” às forças de segurança e aos ex-combatentes.
Ventura baseia-se num anúncio do governo de que o Orçamento do Estado para 2024 tem mais de 426 milhões de euros para promover a igualdade de género, mas este número diz respeito a uma “avaliação de impacto” das medidas orçamentais que, em várias áreas, contribuem “direta ou indiretamente” para o combate à desigualdade entre homens e mulheres. É falso que mais de 400 milhões de euros estejam alocados a programas de promoção da “ideologia de género”, como disse Ventura.
O 11.º mandamento (que ninguém viu ou ouviu)
André Ventura tentou conter os mais radicais. Isso nota-se para quem percorre os corredores da VI Convenção Nacional do Chega. O partido está mais polido, menos excêntrico. E apesar de tiradas anti-imigração e anti-políticas de igualdade de género, Ventura atirou para ‘debaixo do tapete’ bandeiras mais polémicas, como a castração química de pedófilos ou a pena de prisão perpétua.
Não fechando a porta a um entendimento com o PSD (e agora com a AD), o presidente do Chega insiste que a direita “só governará com o apoio Chega”. O ‘não’ de Luís Montenegro parece afastar essa possibilidade, mas Ventura continua a adotar o programa eleitoral do partido tendo em vista esse cenário.
Ao Expresso, em janeiro, André Ventura admitia que “em todas as negociações há pontos de partida e pontos de chegada, e isso obriga a um equilíbrio”. Antissistema e contracorrente, sim, senhor; mas com (o mínimo) juízo. É este o guião de André Ventura.