“Na falta de elementos, o Ministério Público permitiu-se construir uma estória baseada em suposições: a suposição da existência de um pacto criminoso, a que se junto a suposição do altruísmo” de Vítor Escária, “que nada pediu ou aceitou para si como contrapartida para se pôr a cometer crimes”. É esta a pedra de toque do recurso contra a medida de coação – proibição de se ausentar para o estrangeiro com entrada do passaporte – aplicada, em novembro, pelo juiz Nuno Dias Costa, no âmbito da Operação Influencer.
Inicialmente, indiciado pelo Ministério Público por um crime de tráfico de influência e dois de prevaricação, o juiz de instrução acabaria, a 13 de novembro, por deixar cair o segundo, mantendo apenas o primeiro. Porém, no recurso apresentado esta semana, o advogado Tiago Rodrigues Bastos contesta a posição do magistrado judicial, considerando, em resumo, que nem este crime se encontra verificado.
“O recorrente ‒ sugere o Ministério Público ‒ há de ter aceitado as solicitações de Diogo Lacerda Machado para abusar da sua influência junto de decisores públicos. E reveladora disso parece ser ‒ pelo menos a referência a ela na decisão recorrida só pode ser interpretada como elemento (único) de prova, ainda assim indireta ‒ a reunião de 22.12.2022 (que se diz ter ocorrido no Largo do Rato, na sede do Partido Socialista, tamanha foi a leviandade da investigação ou a vontade de se apimentar a estória, mas que na realidade ocorreu em São Bento , na residência oficial do primeiro-ministro”, começou por ironizar a defesa de Vítor Escária.
De acordo com o recurso, “não se vê como é que se pode considerar indiciado o pacto corruptivo com base numa reunião, desde logo pela simples circunstância de ter ocorrido, mas também porque nela foram abordadas as preocupações dos promotores, tendo Vítor Escária, alegadamente, prestado o seu apoio ao projeto”. E mais à frente: “Note-se que a referida reunião não tem qualquer elemento, anterior, contemporâneo ou posterior, que credibilize a tese de que havia um pacto corruptivo, de molde a suspeitar-se que o apoio alegadamente disponibilizado por Vítor Escária assumia contornos ilícitos”.
Citando várias passagens da indicação feita pelo Ministério Público, o advogado considera ainda que, a ser assim, o processo deveria correr no Supremo Tribunal de Justiça e não no Tribunal Central de Instrução Criminal, pedindo a declaração de incompetência desta última instância para praticar atos. “Os factos indiciados pelo Ministério Público no despacho de apresentação a primeiro interrogatório judicial para efeito de aplicação de medidas de coação descrevem condutas criminosas alegadamente praticadas, designadamente, pelo Primeiro-Ministro, António Costa”, refere o defensor de Vítor Escária.
“É por demais evidente que a investigação visava também o primeiro-ministro”, acrescentou Tiago Rodrigues Bastos, citando uma expressão do Ministério Público, na qual os procuradores do Departamento Central de Investigação e Acção penal referiram que uma reunião entre os promotores do centro de dados e a secretária de Estado da Energia e Clima, Ana Fontoura Gouveia, decorreu da “realizações de pressões (…) exercidas pelo primeiro-ministro ou por Vítor Escária, mas necessariamente com o conhecimento e concordância do primeiro”.
“O tribunal praticou atos jurisdicionais no âmbito de um inquérito em que a competência para tanto, relativamente a todos os atos jurisdicionais e a todos os visados, na medida em que a qualidade de primeiro-ministro de um deles comporta implicações para todos (…), era do Supremo Tribunal de Justiça”, concluiu o advogado.
Ministério Público “à míngua”
Num registo semelhante, falta de provas, também a defesa de Diogo Lacerda Machado contestou a existência de fortes indícios do crime de tráfico de influências, que lhe foi apontado pelo juiz de instrução, que deixou cair os restantes que lhe eram imputados pelo Ministério Público: corrupção ativa e prevaricação., contenado também a aplicação das medidas de coação: caução de 150 mil euros e entrega do passaporte.
Para Magalhães e Silva, advogado deste arguido, foi o facto de, nos últimos anos, ter sido apontado publicamente como o “melhor amigo do primeiro-ministro” que levou o seu cliente a estar envolvido neste caso. Só que, sublinhou, “não há nos autos qualquer indício de que o arguido tenha falado alguma vez com o primeiro-ministro sobre o projeto de construção” do centro de dados, em Sines. “A única referência ao Data Center teve lugar, como o arguido referiu, aquando do seu interrogatório, apenas, para chamar a atenção do PM para o problema urbanístico que se iria colocar em Sines, perante a iminência de as grandes empresas aí instaladas, incluindo a Data Center, criarem, nos próximos 5 anos, mais de 5 000 postos de trabalho, com um acréscimo habitacional de 15 000 pessoas, atenta a realidade familiar dos trabalhadores”, acrescentou o advogado.
O recurso contesta a indiciação por tráfico de influência no que diz respeito ao licenciamento da construção do Datacenter de Sines numa Zona Especial de Conservação (ZEC), falando em “impossibilidade cronológica” descrita nos autos.
Segundo o recurso, Lacerda Machado não teve “intervenção sobre este tema junto de qualquer entidade pública, fosse do secretário de Estado João Galamba ou do presidente da APA [Agência Portuguesa do Ambiente] Nuno Lacasta, fosse do ministro Duarte Cordeiro e mesmo do chefe de gabinete do primeiro-ministro, Vítor Escária”, algo que “é corroborado pela reconstituição cronológica factual, se feita com correção”.
“À míngua de prova direta do pacto criminoso, o despacho a quo socorre-se” do caso da Avaliação de Impacte Ambiental (AIA), continua o advogado, “logo, prova indireta, ainda que em tese legítima, para poder concluir pelo de tráfico de influência, que teria sido emitida após 22 de dezembro de 2022, por pressão” de Lacerda Machado. Só que, sublinha Magalhães e Silva, “a decisão sobre a AIA já estava tomada em maio de 2022, logo, é cronologicamente impossível que tal pressão, única que, segundo o juiz, como reveladora do tráfico de influência, tenha ocorrido em 22 de dezembro de 2022, sete meses depois da decisão estar tomada”
Esta investigação tornou-se pública com a operação realizada em 07 de novembro pelo MP, que envolveu 42 buscas e levou à detenção de cinco pessoas: Vítor Escária, Diogo Lacerda Machado, os administradores da empresa Start Campus Afonso Salema e Rui Oliveira Neves, e o presidente da Câmara de Sines, Nuno Mascarenhas.
No total, há nove arguidos no processo, incluindo o agora ex-ministro das Infraestruturas, João Galamba, o presidente da Agência Portuguesa do Ambiente, Nuno Lacasta, o advogado, antigo secretário de Estado da Justiça e ex-porta-voz do PS João Tiago Silveira e a empresa Start Campus.
O processo está relacionado com a exploração de lítio em Montalegre e de Boticas (ambos distrito de Vila Real), com a produção de energia a partir de hidrogénio em Sines, Setúbal, e com o projeto de construção de um centro de dados (Data Center) na zona industrial e Logística de Sines pela sociedade Start Campus.
O primeiro-ministro, António Costa, que surgiu associado a este caso, foi alvo da abertura de um inquérito no MP junto do Supremo Tribunal de Justiça, situação que o levou a pedir a demissão, tendo o Presidente da República marcado eleições antecipadas para 10 de março de 2024.