Enquanto a Procuradora-Geral da República, Lucília Gago, vai desfrutando da “paz interior” que sente “no silêncio reconfortante” da sua “consciência”, apesar do “ruído circundante, de múltiplas origens e por vezes histriónico” (como avisou no final do seu discurso na cerimónia de abertura do ano judicial de 2023), as ondas de choque da Operação Influencer já começaram a abrir algumas fraturas no interior do Ministério Público.
O primeiro a apontar disfuncionalidades na organização interna do MP foi António Cluny, antigo presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público (SMMP) e ex-membro nacional do Eurojust, para quem, hoje, perante o Estatuto dos procuradores, não é possível fazer uma “alusão genérica ao MP”. “Depois da reforma do Estatuto dos Magistrados do Ministério Público, os titulares dos processos – portanto o procurador A, B ou C – passaram a agir processualmente à margem intervenção hierárquica formal”, escreveu no “Jornal I”.
Para António Cluny, no atual contexto legal, atualmente, “os procuradores agem à semelhança dos juízes de instrução; ou seja, cada um por si”, uma vez que os respetivos superiores hierárquicos só podem, na sua opinião, intervir na fase final do inquérito (investigação) – “A intervenção hierárquica processual permitida cinge-se, no essencial, à revisão das decisões de arquivamento de processos findos” – ficando sem qualquer margem para uma intervenção a meio do caminho: “Por absurdo que pareça, de acordo com este regime, quem pode o mais – o superior hierárquico que, no final, pode mandar e reabrir um inquérito e ordenar novas diligências de prova – não pode o menos; intervir antes e tempestivamente no processo”.
António Cluny concluiu ainda que, perante o atual quadro legal de atuação dos procuradores, “só por demagogia – e noutros casos por irresponsável ignorância – é possível, assim, continuar a invocar a responsabilidade do MP, da PGR e da Justiça pelo exercício processual de procuradores concretos”. No fundo, dando razão ao antigo PGR Pinto Monteiro, que comparava o seu cargo ao da “rainha de Inglaterra”, dado não ter poderes efetivos.
“Entre nós, os procuradores não respondem, sequer, disciplinarmente, de forma direta, pelos seus atos e decisões processuais ante os seus diretos superiores hierárquicos. Respondem, apenas, perante o Conselho Superior do MP – órgão de composição plural e pluralista de governo das carreiras e disciplina dos procuradores – que, por sua vez e em contrapartida, não tem, nem deve ter, poderes de direção processual.”.
Por sua vez, no jornal Público, a procuradora-geral adjunta Maria José Fernandes parte de uma pergunta – “Ministério Público: como chegamos aqui?” – para desfiar várias críticas ao atual estado de alguma investigação criminal: “procuradores que não hesitem em meios de recolha de prova intrusivos, humilhantes, necessários ou não, são o top da competência! Outros magistrados de elevado escalão que seguem esta linha argumentativa e a verbalizando no discurso público também têm o elogio garantido. Pelo contrário, quem se opõe à estridência processual é rotulado protetor dos corruptos!”
A procuradora defende, sobretudo para o Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP), onde têm decorridos várias investigações com forte acompanhamento mediático, como a “Operação Influencer”, mais “pensamento crítico”, “discussão interdisciplinar, nomeadamente com colegas de outras jurisdições tocantes ou conexas”. Porém: “Temo que se tornem cabines herméticas, onde pontuam algumas prima donnas intocáveis e inamovíveis e onde a “falta de meios”, de peritos disto e daquilo é sempre a velha razão para os passos de tartaruga a que se movem as investigações”.
“Acontece haver quem entenda a investigação criminal como uma extensão de poder sobre outros poderes, sobretudo os de natureza política. Daí que sejamos surpreendidos, de vez em quando, com buscas cuja utilidade e necessidade é nenhuma, pese embora quem as promove sempre se escude no argumento de opacidade: “Eu é que sei o que está no processo, eu é que sei se são necessárias ou não!” E a sorte é que até há pouco tempo o DCIAP dispunha de um tribunal de instrução privativo, com um juiz de instrução igualmente privativo por ser o único durante largos anos. O perfil decisório desse JIC era conhecido, não há constância de contrariedade ao MP. Maus hábitos”, acrescentou em tom crítico Maria José Fernandes, para quem “permitiu-se a criação de uma bruma de auto-suficiência totalmente nefasta e contrária ao que deve ser a qualidade e a excelência desta profissão”.
Maria José Fernandes anotou ainda que, nas últimas semanas, pelo menos, “uma coisa é certa: ver um certo político populista de extrema-direita monopolizar a defesa da atuação do MP, dá muito que pensar!”
Num registo pontuado por alguma ironia, o atual presidente do SMMP, Adão Carvalho, saiu em defesa dos procuradores João Paulo Centeno, Hugo Neto, Ricardo Lamas e também da própria Procuradora-geral, escrevendo na VISÃO que todo este “vendaval” à volta do Ministério Público tem por base um “único erro”: os procuradores cumpriram a “função que constitucionalmente e legalmente lhe está atribuída, isto é, ter determinado que se instaurasse um inquérito perante a suspeita da prática de um crime”.
Adão Carvalho recorda que os chamados meios intensivos, como escutas telefónicas, buscas em residências e detenções “estão sempre dependentes de autorização ou validação por um juiz”. O presidente do SMMP afirma não admitir que “a propósito de pretensos erros num despacho meramente indiciaria” se pretenda “condicionar a atuação” dos procuradores “através da exigência de uma inspecção”.
“Sempre que uma investigação tem como visadas determinadas pessoas, logo assistimos a uma espécie de terrorismo judiciário contra os magistrados do Ministério Público que conduzem o inquérito, o que constitui uma intolerável forma de os condicionarem e amedrontarem”, concluiu.
Crise começou a 7 de novembro
A “Operação Influencer” tornou-se pública a 7 de novembro, com a realização de 42 buscas e a detenção de cinco pessoas: Vítor Escária, Diogo Lacerda Machado, os administradores da empresa Start Campus Afonso Salema e Rui Oliveira Neves, e o presidente da Câmara de Sines, Nuno Mascarenhas.
No total, há nove arguidos no processo, incluindo o agora ex-ministro das Infraestruturas, João Galamba, o presidente da Agência Portuguesa do Ambiente, Nuno Lacasta, o advogado, antigo secretário de Estado da Justiça e ex-porta-voz do PS João Tiago Silveira e a empresa Start Campus.
O processo está relacionado com a exploração de lítio em Montalegre e de Boticas (ambos distrito de Vila Real), com a produção de energia a partir de hidrogénio em Sines, Setúbal, e com o projeto de construção de um centro de dados (Data Center) na zona industrial e Logística de Sines pela sociedade Start Campus.
O primeiro-ministro, António Costa, que surgiu associado a este caso, foi alvo da abertura de um inquérito no MP junto do Supremo Tribunal de Justiça, situação que o levou a pedir a demissão, tendo o Presidente da República marcado eleições antecipadas para 10 de março de 2024.