Um logo ao seguir ao outro; Mariana Mortágua e Pedro Soares assumiram, este sábado, na convenção nacional do BE, sobre como querem o Bloco de Esquerda a partir de amanha, quando Catarina Martins sair da coordenação do partido. E por algum motivo, os dois lideram duas moções candidatas diametralmente opostas. É que se a dirigente apostou em convencer os delegados da reunião magna com um discurso mobilizador exclusivamente focado no País, e na contestação à governação socialista; o seu opositor, o ex-deputado de Braga, apelou a um três em um – que haja consequências para os recentes resultados eleitorais do partido, o fim dos lamentos internos pelo fim da gestão da Gerigonça e que o BE regresse aos carris do passado.
Para Mortágua, num momento de crise política, e também institucional, “o dever da esquerda é recuperar forças, unir as vontades sociais que não desistem de lutar por uma vida boa”. Ou seja, naquela que parece ter sido uma (única) mensagem clara para o partido, a deputa salientou que “o dever da esquerda é ser unitária e combativa, é falar claro e mobilizar o povo”.
De resto, a dirigente decidiu apontar a mira ao cenário de “repetidos hará kiris do Governo” e ao “espetáculo horroroso”, que “é o desfecho de uma sucessão ininterrupta de “irresponsabilidades” que começaram com a forma como o PS precipitou o fim da solução parlamentar de esquerda na governação, em 2021.
“Os tempos não estão para discursos vagos do tipo ‘uma vida boa para todas as pessoas’”, criticou Pedro Soares, após discurso de Mariana Mortágua
“Contra a irresponsabilidade, quero dizer-vos que o Bloco vai disputar a verdade dos impostos para proteger o povo. Venham o governo e os liberais e a direita defender os seus privilégios fiscais, que terão pela frente uma esquerda intransigente e que sabe fazer contas certas”, garantiu, acusando o Governo de ora de cumplicidade com banca e patrões, ora de mentir, principalmente aos “pensionistas, dizendo-lhes que se não abdicassem do valor real da pensão o sistema perderia 13 anos de vida”.
Em suma, disse Mariana Mortágua, têm sido tempos de “irresponsabilidade sobre irresponsabilidade”, um “calvário que nos trouxe aos enredos tenebrosos das últimas semanas”.
Sob o lema de uma “vida boa” para jovens, trabalhadores e pensionistas, a deputada argumentou que, sob sua liderança, o “Bloco de Esquerda sabe o que quer e com quem vai”: “A vida boa é o que merece cada pessoa que ganha a vida a trabalhar: habitação, saúde, educação, salário, justiça nos impostos, e tempo para tudo o resto”.
Viúvas da Gerigonça e maquilhagem de votação, acusa crítico
Após ter começado por sinalizar que houve quem no BE “não pôde apresentar moções a esta Convenção, não porque não tivesse ideias e propostas, mas porque foi confrontado com a imposição de limitações que diminuíram a participação e a riqueza do debate plural”, Pedro Soares fez igualmente um retrato do estado do País e da governação PS, mas para chegar aonde queria (e que não era o mesmo foco que Mortágua): “Os tempos não estão para discursos vagos do tipo ‘uma vida boa para todas as pessoas’”.
“A luta de classes não se esvaiu por milagre, os tempos são fraturantes, exigem a clareza do compromisso político, e não ficar por declarações de princípio de largo espectro que não polarizam e só podem ter como desfecho a diluição da nossa identidade e do nosso papel”, disse, apontando baterias às palavras de Mortágua.
O ex-parlamentar criticou assim quem lamenta pelo fim do acordo com Costa: “esta foi a consequência de anos de troca do programa do BE pela procura de acordos com o PS, sem qualquer base real de possibilidade a não ser com o abandono das nossas bandeiras. A geringonça acabou, mas perdura e marca a orientação política do Bloco. Basta olhar para algumas entrevistas recentes“.
Pedro Soares disse que a Moção E está contra uma reunião magna “que seja um muro de lamentações” e criticou o facto de a atual direção do partido ter maquilhado a adesão a estas eleições internas: “Pela primeira vez depois do ciclo de perdas eleitorais, o Bloco foi internamente a votos há uma semana. O nível de abstenção foi o maior de sempre, 80%. Regiões houve onde foi superior a 90%. A maioria da direção divulgou de forma entusiástica a vitória da sua moção, mas escondeu o que foi uma derrota de todos e todas nós. Este começa a ser um padrão de comportamento”.
“Temos de sair urgentemente deste atalho. Precisamos de restabelecer o diálogo entre todos nós, sem sectarismos de grupo, com capacidade de cooperação total”, sublinhou, tendo apontado a formula para o futuro: “na política precisamos de transmitir confiança em torno de compromissos, polarizadores. São as nossas novas causas fraturantes”.
Ida à Ucrânia sob fogo
No final do discurso, Pedro Soares cavalgou a polémica ida da deputada Isabel Pires na comitiva da Assembleia da República à Ucrânia. Dias depois de a Moção E ter condenado tal viagem da bloquista, em substituição de um parlamentar do Chega, o ex-deputado lamentou “a perplexidade quando vimos em Kiev o Bloco integrado numa delegação da Assembleia da República, que teve como objetivo reafirmar a posição da NATO do prolongamento da guerra e da escalada militar e de convidar para vir discursar ao Parlamento português um neonazi organizador de perseguições à oposição com assassinatos nunca punidos na folha de serviços”.
O bloquista falava do presidente do Parlamento ucraniano, Ruslan Stefanchuk, conotado com a extrema-direita e com os ataques à Casa dos Sindicatos, há cerca de uma década, onde morreram dezenas de pessoas. Stefanchuk foi convidado pelo presidente do Parlamento português a vir a Lisboa. “Onde está uma palavra de solidariedade com a esquerda ucraniana, perseguida, assassinada ou presa? Afinal o que foi o Bloco fazer à Ucrânia?”, questionou.
No teste da temperatura da convenção, Mariana Mortágua acabou por levar a melhor, até porque conta com a maior parte dos delegados do seu lado, mas as quatro filas dos membros da Moção E não deixaram de se fazer ouvir de forma ruidosa, quando Pedro Soares falava.