A figura da greve de fome, como ação de protesto, nos tempos modernos, foi inventada por Mahatma Gandhi, numa remota região da Índia, em 1917, e teve origem num conflito laboral. Mas rapidamente o histórico líder indiano adaptaria o conceito à ação política. Gandhi foi também autor de outras formas de manifestação não violenta, como a luta “dos sentados”. Quando vermos manifestantes, em todo o mundo, a fazer “corpo morto”, enquanto são transportados em braços por vários agentes de autoridade, estamos a assistir a um dos conceitos ensinados na famosa satyagraha, a palavra indí para o protesto “gandhiano” não violento, várias vezes experimentado, nos anos 1920, 1930 e 1940, nas longas décadas de luta pela independência da Índia.
Em 1917, Gandhi abraça a causa dos operários da região de Ahmedabad, que mantinham uma greve laboral. A questão era delicada: dois dos proprietários indianos das fábricas alvo do protesto eram generosos contribuintes do ashram de Sabarmati, a quinta comunitária criada por Gandhi, onde medravam discípulos de orações, meditações, reflexões políticas e jejuns purificadores. (Anos mais tarde, a este propósito, alguém observou: “Garantir que o senhor Gandhi consiga viver em pobreza custa muito dinheiro…”) Face ao lock-out dos patrões e ao fracasso das negociações com os operários, Gandhi inaugura uma nova forma de luta: faria um jejum até à morte, se necessário, ou até que chegassem a um acordo. O então advogado indiano do Guzerate, região oeste da Índia, não era, já ao tempo, uma figura qualquer. A determinação do “grande homem” em colocar em risco a própria vida deixava envergonhados patrões e trabalhadores, que, apressadamente, concordaram num aumento salarial, a meio caminho entre o reivindicado pelos operários e o zero da oferta patronal. Gandhi aumentou a sua aura de herói popular, mas a partir dessa data, percebeu que tinha descoberto uma nova forma de luta não violenta e eficaz.
Churchill desconfia do “velho sacana”
Muitos anos mais tarde, em 1943, Gandhi havia sido enclausurado, sob prisão, no Palácio do Aga Khan, em Pune, sem contacto com os seus correligionários políticos e sem conseguir impor negociações aos britânicos. Tentando fazer ouvir a sua voz manietada, anunciou, a 29 de janeiro, uma prolongada greve de fome, ação recorrente desde o célebre episódio de 1917, anteriormente descrito: o jejum prolongar-se-ia até 2 de março. E os efeitos num Gandhi já debilitado fisicamente e a sofrer de hipertensão eram imprevisíveis. Do outro lado, na capital do Império, mandava, desta vez, um opositor implacável. Sem se deixar comover, o inquilino do nº 10 de Downing Street, Winston Churchill, desejava secretamente que o “rebelde” se finasse, mas desconfiava, menos secretamente, de que isso não iria acontecer. Churchill não achava normal que Gandhi tivesse resistido a tantas outras greves de fome, no passado, e não acreditava neste novo anúncio. Gandhi recusava a assistência de médicos britânicos – e o primeiro-ministro estava convencido de que os médicos indianos que o acompanhavam lhe introduziam glicose na água, para o manter vivo. A 22 de fevereiro, ditou uma carta ao rei: “O velho impostor está a durar mais tempo do que pensávamos. Pergunto-me se o jejum será genuíno…”
No final de fevereiro, Gandhi anunciava que começara a consentir que lhe adicionassem um pouco de sumo de fruta, misturado na água. Sabia que tinha perdido o braço-de-ferro com o “velho leão imperialista”. E este não se fez rogado, no comentário: “Assim que viu que os seus disparates não resultavam, melhorou logo…” E numa carta ao vice-rei, ironizou: “Parece que o velho sacana vai sair ainda melhor do seu jejum…”
Luaty Beirão chega a Obama
É verdade que as greves de fome nem sempre resultam na satisfação das reivindicações que prosseguem – mas essa não é, normalmente, de qualquer modo, o seu principal fito. A greve de fome destina-se, na maior parte das vezes, a sensibilizar a opinião pública e os media para uma determinada causa. Se prolongada o suficiente para debilitar fisicamente os seus autores, consegue introduzir um fator de dramatismo e incerteza que tende a concitar as simpatias do público e a manter sob pressão as autoridades oponentes. Um grevista da fome que declara estar disposto a morrer passa a revelar uma aura de heroísmo que o eleva aos olhos da comunidade, nacional e internacional, lhe garante publicidade permanente e que tende a denunciar a alegada prepotência e desumanidade dos que não cedem às exigências – um governo ou um regime.
![Luaty Beirão diz que Presidente de Angola "já fez uma revolução" no país](https://images.trustinnews.pt/uploads/sites/5/2019/10/luaty-beirao-diz-que-presidente-de-angola-ja-fez-uma-revolucao-no-pais-2-1024x683.jpeg)
Geralmente, a greve termina quando esses pressupostos são atingidos – ou quando as autoridades pressionadas começam a dar explicações ou a aceitar o diálogo.
E há casos de sucesso absoluto: Iñaki de Juana Chaos, ex-líder do comando de Madrid da ETA, foi libertado em 2008. O nacionalista basco estava à beira da morte, depois de uma prolongada greve de fome, iniciada perante o facto de ter continuado preso depois de já ter cumprido a sua pena. O presidente do Governo espanhol José Luis Zapatero, sem ceder no ponto da “causa”, fosse ela nacionalista ou puramente jurídica, justificou a libertação por “razões humanitárias”.
Já um ativista palestiniano, Marwan Barghouti, atirado para os calabouços israelitas, fez uma greve de fome, em 2004, para exigir melhores condições de detenção. Mas uma câmara oculta, instalada na cadeia, apanhou-o a comer às escondidas…
Mais recentemente, a greve de fome de Luaty Beirão, músico e ativista pró-democracia, em Angola, apaixonou as opiniões públicas, em Portugal e no país africano. Mas a sua greve de fome de 36 dias, que o colocou às portas da morte – tendo sido transferido, pelas autoridades do regime de José Eduardo dos Santos, para uma cela hospitalar e, depois, para uma clínica privada de Luanda – foi notícia em toda a imprensa internacional e até deu origem a um apelo da administração Obama ao governo de Luanda. Luaty tinha sido preso, com outros 16 companheiros, por se terem reunido para ler e comentar literatura alegadamente subversiva – e o rapper foi condenado a cinco anos de prisão, por “malfeitoria”. Viria a terminar a greve de fome perante a nova atitude da justiça angolana que reviu o seu caso, e o dos seus companheiros, e que acabaria por libertar todos, alguns meses decorridos.
Bobby Sands, um drama global
Mas o caso que mais atraiu as atenções globais foi o de Bobby Sands, ativista republicano irlandês e dirigente do IRA. A 5 de maio de 1981, o jovem “terrorista” morreu numa prisão da Irlanda do Norte, após 66 dias sem comer. Ao fim de 54 dias, um despacho da AFP informava que o ativista do IRA não pesava mais de 44 quilos. E que havia sido envolvido por uma pele de carneiro para evitar que os seus ossos perfurassem a pele. Nos últimos dias de vida, houve várias tentativas de mediação, mesmo sabendo-se que algumas das lesões provocadas pela provação eram irreversíveis. A Comissão Europeia de Direitos Humanos e um enviado pessoal do papa João Paulo II – que entregou um crucifixo ao jovem republicano irlandês – falharam nos seus intentos, perante a posição inflexível da primeira-ministra britânica, Margaret Thatcher.
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A 5 de maio, data da morte, Bobby Sands já estava desfigurado, surdo e cego, e foi neste estado que deu o último suspiro, na enfermaria da prisão de Maze. Tinha 27 anos. O ativista reclamava contra as condições da prisão britânica, que considerava sub humanas, e reclamava o estatuto de preso político, para si e para os 450 militantes presos do IRA. Esse estatuto deixara de ser reconhecido por Londres desde que Tatcher subira ao poder. Sands não partiu sozinho: nove dos seus companheiros, também em greve de fome, deixaram-se, igualmente, morrer, sem qualquer sinal de cedência por parte do Governo Tatcher. E os casos só não aumentaram porque os restantes grevistas acabaram por ceder às pressões das respetivas famílias, para que acabassem com o protesto.
Bobby Sands não conseguiu ver satisfeita nenhuma das suas reivindicações, mas o caso, que se tornou, durante aqueles mais de dois meses, uma novela mundial, e presença constante nas manchetes de toda a imprensa ocidental, causou significativos danos reputacionais à Grã-Bretanha e ao seu Governo – embora, do ponto de vista eleitoral interno, a firmeza demonstrada pela senhora Tatcher contra aquele grupo terrorista tenha marcado pontos. Esse terá sido um dos primeiros grandes transes enfrentados por Tatcher, e que lhe granjearam o cognome de Dama de Ferro, exemplarmente confirmado pela forma como enfrentou e derrotou a Argentina, no ano seguinte, na Guerra das Falklands.
O segundo protesto contra Costa
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Com o caso de Luís Dias, o Governo de António Costa enfrenta o segundo episódio importante desta forma de luta, depois de alguns empresários da restauração terem acampando, em frente à Assembleia da República, em greve de fome contra o fecho dos restaurantes – sem apoios compensatórios considerados justos – durante o estado de emergência. Capitaneados pelo chef Lubomir Stanisic (por si só, uma garantia de cobertura mediática intensa…), o movimento “Sobreviver a Pão e Água” manteve-se irredutível, durante sete dias, até que, a 3 de dezembro de 2020, levantou a tenda. Embora tenha sido uma demonstração um tanto ou quanto “pífia”, a ação serviu, ao menos, como fator de sensibilização da opinião pública para as dificuldades por que estava a passar a restauração.
Já o caso Luís Dias acaba por denunciar o lado kafkiano de uma burocracia estatal pouco flexível e nada atenta às realidades do terreno e da vida real. E o agricultor não se ficou pelos sete dias dos homens da restauração, o que obriga o País a levá-lo a sério. Levá-lo-á, a sério, também, o Governo socialista?…