O agricultor Luís Dias terminou a greve de fome, que levou a cabo ao longo de 30 dias em São Bento, após ter obtido a garantia de Miguel Alves, o secretário de Estado Adjunto do primeiro-ministro, de que o seu caso irá ser analisado, estando agendada uma reunião para esta segunda-feira, 10 de outubro.
Apesar de este ter sido o terceiro protesto de Luís Dias nos mesmos moldes, o agricultor e Maria José Santos, a sua ex-companheira, veem agora o Estado assumir que houve falhas muito graves no tratamento do caso que envolve a Quinta das Amoras, um projeto agrícola que os organismos da Agricultura terão tratado com displicência e que pode ter sido negligenciado até por um chefe de gabinete do Governo.
Em causa está o relatório da investigação levada a cabo pela Inspeção-Geral da Agricultura, do Mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território (IGAMAOT), a pedido do Ministério da Agricultura, em 19 de maio de 2021, e que passou a pente fino a atuação de quem gere apoios financeiros neste setor, desde técnicos a diretores.
No documento, os auditores admitem que não faltaria, “em abstrato”, gente neste processo que incorreria em “responsabilidade disciplinar”. “Porém, os factos (ou omissões) cuja comprovação faria incorrer os seus autores em responsabilidade disciplinar encontram-se prescritos“, lê-se, nas conclusões.
Estas são as conclusões do relatório do IGAMAOT, que a VISÃO dá agora a conhecer. E não; não é O Processo, do escritor checo Franz Kafka. Mas, dada a sua dimensão e pormenores, conta com todos os ingredientes que facilmente o tornariam uma obra prima do insólito. Só que é preciso folego para o ler.
O início de tudo: uma garantia bancária mal explicada
O IGAMAOT sinaliza, sobre o arranque deste caso que leva quase uma década, que Maria José Santos apresentou uma candidatura ao PRODER (Programa de Desenvolvimento Rural), a 22 de março de 2013.
O objetivo seria que o PRODER, financiado pelo Fundo Europeu Agrícola de Desenvolvimento Rural (FEADER), a apoiasse através do plano de “Instalação de jovens agricultores” a criar uma plantação de quatro hectares de amoras e dois hectares de goji, em Zebreira, no município de Idanha-a-Nova.
Apenas em novembro de 2014, o investimento elegível de mais de meio milhão de euros teve a candidatura aprovada, tendo o projeto merecido um apoio de 280 mil euros (250 mil de apoio ao investimento e outros 30 mil de prémio à instalação naquela zona do Interior).
Ora, o problema começou logo ali: a Direção Regional da Agricultura e Pescas do Centro (DRAPC) decidiu exigir uma garantia bancária de 275 mil euros à agricultora, que a contestou em março de 2015.
O IGAMAOT critica esse gesto da DRAPC, ao apontar que a garantia bancária era apenas “uma exigência especificamente direcionada aos projetos agrícolas de produção de cogumelos shitake“. Mais: registam os auditores que, apesar de terem solicitado documentação sobre o assunto, não detectaram qualquer parecer técnico da DRAPC que justificasse existir um risco no projeto, para que o Estado tivesse de ter uma garantia. Por isso, não se percebe como se deixou a agricultora sem o apoio, conclui-se.
“Trata-se de uma decisão obscura, subjetiva, arbitrária, discriminatória e materialmente não sustentada, cuja ponderação do risco (inexistente) advém apenas da percepção do técnico analista face a experiências anteriores”, lê-se no documento, que a VISÃO pediu ao Governo sem sucesso.
A descrição dos passos que tal decisão deu é um exemplo máximo de burocracia, sendo que, entre os técnicos e as chefias, ninguém assumiu aos auditores responsabilidades.
Resumido: “Não havia base legal” para exigir a garantia e “não existiu qualquer evidência ou fundamentação técnica, clara e transparente” sobre uma qualquer avaliação da direção regional.
Dito isto; a Inspeção reconhece razão a Maria José Santos, na altura representada pelo companheiro Luís Dias, por considerar “o eventual desgaste e a desconfiança na Administração Pública que tais decisões lhe terão provocado, entre 26 de novembro de 2014 e 6 de maio de 2016, para além de um manifesto atraso na normal execução do seu projeto”.
Dinheiro retido, entre ausências de técnicos e atrasos muito mal explicados
Esta historia ainda vai a menos de meia. Reconhecida a falha na exigência de uma garantia bancária, tudo tinha para correr bem e os fundos serem atribuídos. Mas a DRAPC não transferiu a última tranche de apoios, quando já havia produção de fruta na Quinta das Amoras. Esta entidade esteve mais de um ano – até 28 de junho de 2019 – para analisar o protesto de Maria José Santos e Luís Dias e decidir desbloquear a verba.
A IGAMAOT conta inúmeras mãos pelas quais passou o processo para uma suposta revisão documental, sem que de nenhuma delas tenha vindo uma explicação sobre o porquê de tal ter acontecido; mas realça-se a preocupação de uma técnica do IFAP – Instituto de Financiamento da Agricultura e Pescas por tão grande demora.
“A falha da DRAPC não reside somente no incumprimento do prazo máximo de análise […], mas também na circunstância de não informar, formal e atempadamente” a agricultora, lamenta o relatório.
Este processo de pagamento da última tranche dos apoios só conheceria novos capítulos a 21 de maio de 2021, quando Luís Dias realiza, então, a primeira greve de fome, em frente ao Palácio de Belém. Uma diretora de serviço questionou nessa altura pela falta do pagamento, tendo em conta achava que o processo já estava concluído desde o verão de 2019.
Perante este cenário, a auditoria diz ser “incompreensível este desfasamento temporal”, quando um cidadão espera uma resposta do Estado.
Chefe de gabinete achou que vento só fora destrutivo no Algarve mas Provedora Maria Lúcia Amaral provocou reviravolta
A tempestade Ana, que se abateu sobre Portugal, principalmente no Sul do País, entre 10 e 12 de dezembro de 2017, terá provocado graves estragos na Quinta das Amoras, destruindo a quase totalidade das estufas.
Maria José Santos candidata-se, poucos dias depois, a um financiamento para a reconstrução das estruturas. Na altura, os organismos da Agricultura informam-na que, para a zona de Idanha-a-Nova só há apoios no âmbito dos incêndios trágicos de 2017 – o que não é o seu caso.
Mas a agricultora não desiste e tenta sensibilizar a Direção Regional que precisa que a ajudem a repor a produção, até porque está a cumprir um plano de financiamento (o tal em que lhe tinham exigido a garantia bancária inicialmente) e vê-se, então, sem as estufas.
A IGAMAOT critica o mau funcionamento daquele organismo da Agricultura, por não ter existido logo uma transmissão da informação entre técnicos e superiores hierárquicos sobre aquele problema. A nega levou Maria José Santos a optar por pedir um adiamento na concretização do plano da Quinta das Amoras.
Em março de 2018, o Governo decidiu responder aos apelos das populações e dos autarcas do Algarve, que ainda se viam a braços com prejuízos causados pela tempestade. Maria José Santos terá visto aí uma oportunidade e candidatou-se também. O seu pedido entrou na DRAPC e motivou uma fiscalização de uma delegação da Agricultura de Castelo Branco, que confirmou a destruição de 46 dos 50 túneis de estufas, causada pela tal tempestade – o que era corroborado pelo Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA).
Conclui a IGAMAOT que na altura foi recusado o apoio à reconstrução, só que “não existe qualquer intervenção ou interferência da DRAPC na exclusão” de Maria José Santos.
“Tratou-se de uma decisão unilateral da Tutela, por parte do então chefe de gabinete do Secretário de Estado da Agricultura e da Alimentação”, que considerou não haver provas que tal tempestade tivesse passado pelo Interior de forma violenta; sendo que a Direção Regional é criticada por não ter enviado àquele responsável o relatório da delegação de Castelo Branco, para que percebesse o nível de destruição. Contudo, a própria agricultora enviou ao chefe de gabinete certidões do IPMA e da Agência Estatal de Meteorologia de Espanha a provar que sobre a sua quinta se abateu uma “ciclogénese explosiva [conhecido por ciclone-bomba]”.
Para não variar, o processo emperrou. Apesar das provas da agricultora, e de ser notória a falta de conhecimentos e a ausência de técnicos especializados para tratar do assunto na DRAPC, a IGAMAOT encontrou indícios que a então responsável pela Direção de Serviços de Investimento terá cumprido ordens da diretora da DRAPC para alterar um relatório sobre a gravidade da destruição na Quinta das Amoras, de modo a que fosse ao encontro da decisão do chefe de gabinete do Governo e se mostrasse em como o IPMA tinha dúvidas. “Constata-se que o conteúdo do (relatório) é ajustado, a posteriori”, “por solicitação da diretora regional”, “de acordo com as pretensões da Tutela”, frisa-se.
Para auditores, a “atuação da Provedoria de Justiça foi decisiva”, já que “dissipou as dúvidas”
Entretanto, quase no final do ano, na leva de uns quantos reconhecimentos de estragos resultantes da tempestade, na Póvoa do Varzim e Felgueiras, a quinta de Maria José Santos é incluída no lote, sem que alguém tenha explicado à IGAMAOT de como isso aconteceu.
Mas os auditores concluíram que, “na verdade, a atuação da Provedoria de Justiça foi decisiva”, já que Maria Lúcia Amaral “dissipou as dúvidas inicialmente existentes quanto à caracterização do fenómeno, ao conseguir o que a DRAPC e a tutela não conseguiram junto do IPMA”.
“Dos factos e prova recolhidos, considera-se que o fundamento técnico sempre existiu pelo que não é cabalmente compreensível o que levou à procrastinação da concessão do apoio. Além disso, o facto de não existirem regras ou procedimentos devidamente instituídos e de o poder de decisão estar na esfera de entidades que não possuem as necessárias competências técnicas para o reconhecimento da eficácia dos fenómenos, também não foi benéfico”, diz o IGAMAOT.
A longa espera para a reconstrução
Chegamos então a um dos motivos para a última greve de fome de Luís Dias.
Aceite, então, o pedido de apoio de Maria José Santos, mais uma vez a análise pelos serviços borregou. Ao ponto de, apesar de o prazo para uma decisão ser de 45 a 60 dias úteis, só em novembro de 2019 houve então uma proposta de apoio à reconstrução por parte do IFAP, na ordem dos 140 mil euros.
Maria José Santos e Luís Dias avançaram para a reinstalação das estufas – cujo custo, atestaram, terá chegado aos 280 mil euros. Mas as ajudas nunca chegaram. Até hoje.
Esta fase do processo merece outras tantas críticas da IGAMAOT, pelos procedimentos usados no contacto com os cidadãos por parte dos organismos públicos envolvidos nesta história e, acima de tudo, pela demora inexplicável.
A Inspeção Geral também decidiu que os mais de dois milhões de euros exigidos pelos agricultores, a título de indemnização ,não deverão ser pagos, tendo em conta que se trata de um valor correspondente a uma produção de amoras ao longo de 10 anos e não tinha passado assim tanto tempo.
O relatório, depois de apontar que uma certa “rigidez normativa” impede um “juízo disciplinar”, dada a prescrição dos fatos, recomenda que em todas as entidades envolvidas neste processo sejam revistos os procedimentos, principalmente criando regras claras, em relação às candidaturas a apoios, e uma informação concisa e célere. Ao IPMA, especificamente, pede que passe a atestar de “forma inequívoca a ocorrência de um fenómeno climatérico adverso e a sua eficácia na devastação de casos isolados”, como o da Quinta das Amoras.
Por último, “face às falhas de análise e controlo administrativo” detectadas, a IGAMAOT considera que é pertinente a realização de uma investigação ao plano “Jovens Agricultores” do Programa de Desenvolvimento Rural 2014-2020.
Dinheiro aguarda pedido de pagamento, defende Governo
De acordo com uma resposta enviada pelo Ministério da Agricultura à VISÃO, os tais 140 mil euros estão disponíveis para pagamento, desde o verão de 2021. Porém, Maria José Santos e Luís Dias contestam a forma como, entretanto, a Tutela quer entregar o tal apoio de reconstrução da estufas destruídas há cinco anos. “Só queremos que haja uma mediação neste caso por parte do gabinete do senhor primeiro-ministro”, explicou a agricultora.
O Ministério da Agricultura frisa que “o valor do apoio de 140 mil euros aprovado para Restabelecimento do Potencial Produtivo da exploração agrícola da Quinta das Amoras continua integralmente disponível, assim a Sra. Maria José Santos, legítima beneficiária do apoio, submeta um pedido de pagamento instruído de acordo com os normativos nacionais e comunitários que se aplicam ao PDR2020″.
“Até ao momento, este apoio não foi pago à Sra. Maria José Santos porque a mesma submeteu um pedido de pagamento com base numa fatura para reposição das estufas destruídas, fatura essa que não tinha tradução física no terreno“, garante a Tutela, acrescentando que, “de acordo com a regulamentação comunitária, o IFAP enquanto organismo pagador só pode proceder ao reembolso de despesa incorrida (realizada) e paga aos fornecedores”. “A Sra. Maria José Santos foi informada em devido tempo, pelos serviços do IFAP, desta irregularidade material e nunca, até ao momento, procedeu à submissão de novo pedido de pagamento”, prossegue a resposta do Governo, que rebate a falta de isenção do atual secretário de Estado da Agricultura, Rui Martinho – que esta em funções desde meados de 2020 -, como alega Maria José Santos e Luís Dias.
Lembra a Tutela que este relatório, que a VISÃO agora revela, foi pedido pelo governante, quando solicitou “a instauração de um processo de inquérito sobre a atuação dos organismos do Ministério da Agricultura e da Alimentação”. E que, entretanto, “os organismos do Ministério da Agricultura e Alimentação deram a devida sequência às recomendações constantes no referido relatório”. “Não há incompatibilidade nenhuma por parte do secretário de Estado da Agricultura, porque não há nenhum processo decisório em curso que dependa do mesmo Secretário de Estado”, argumenta.
Refira-se que, ao Parlamento, antes da conclusão do inquérito da IGAMAOT e sobre o mesmo caso, a Tutela invocou um historial, que não aparece sequer vertido na auditoria – ou, pelo menos, os auditores nem sequer acharam pertinente para deslindar esta polémica. Nesse documento, do verão de 2021, o Ministério da Agricultura lembrava que Luís Dias, além de então companheiro de Maria José Santos, também era o fornecedor das estufas e já tinha sido ele também apoiado, em 2013, pelo programa “Jovens Agricultores”.
Por fim, ainda em 2021, o Governo assegurou que pedira “ao JurisAPP (Centro de Competências Jurídicas do Estado) […] uma análise urgente de todo o processo”. A VISÃO questionou o Ministério da Agricultura sobre esse pedido, mas não houve resposta sobre o que saiu daquela análise.
* Texto atualizado, no sábado, 8 de outubro de 2022, com a reação do Ministério da Agricultura.