A explicação oficial do PSD é esta: o Coliseu do Porto, reservado desde 9 de março para a realização do congresso social-democrata, afinal não reunia condições para receber a reunião-magna que, este fim de semana, entronizará Luís Montenegro na presidência. Das cinco visitas efetuadas pela organização do partido àquela sala de espetáculos, só na última, a 6 de junho – que já incluiu elementos da equipa do novo líder e da Imprensa – foram levantados problemas técnicos que supostamente colocariam em causa a realização do conclave no edifício histórico da Invicta. Informado da situação, Luís Montenegro tomou em mãos o assunto: comunicou à atual direção que pretendia outro local e, em 48 horas, garantiu a mudança do congresso para o Super Bock Arena (antigo Palácio de Cristal), após aferir a disponibilidade de agenda e condições contratuais junto dos responsáveis pelo espaço. José Silvano e Hugo Carneiro, secretários-gerais, trataram depois da formalização do processo junto da empresa que gere o recinto.
Pelo meio, entrou em campo Rui Moreira, a quem Montenegro terá solicitado ajuda para os contactos. O presidente da Câmara do Porto negou, através do seu gabinete, qualquer interferência no caso, mas fontes partidárias e municipais garantiram à VISÃO que o seu papel terá sido determinante para o volte-face que retirou ao Coliseu uma receita aproximada de 40 mil euros e a encaminhou, via PSD, para os cofres do Super Bock Arena.
O também chamado Pavilhão Rosa Mota fora, de resto, a primeira opção do PSD em março. Mas, nessa altura, os responsáveis pela gestão privada do edifício concessionado pelo executivo camarário alegaram indisponibilidade de datas e recusaram o pedido da direção de Rui Rio. À segunda tentativa, em cima da hora e da noite para o dia, Montenegro teve o que queria. O preço cobrado ao partido pelo aluguer do espaço é igual ao acordado com o Coliseu, apesar do Arena ter mais do dobro da capacidade de lotação. A mudança de cenário implica, porém, uma despesa extra de 20 mil euros para o PSD, preço a pagar pela quebra de contrato com a histórica sala de espetáculos do Porto. Mas nada como uma cronologia sobre os bastidores do caso para perceber os passos e interesses que se cruzam nesta decisão.

9 de março de 2022
As direções do PSD e do Coliseu do Porto fecham o acordo para a realização do congresso, de 1 a 3 de julho, na octogenária sala de espetáculos. O valor ronda os 40 mil euros para um aluguer de sete dias (incluindo montagem e desmontagem). O partido tentara, em primeiro lugar, o Super Bock Arena, mas as pretensões esbarraram nas datas: nos dois fins de semana pretendidos pelo PSD (o último de junho e o primeiro de julho), o Arena alega indisponibilidade de agenda. Foi esta, pelo menos, a versão transmitida à direção do partido, que desiste da ideia e se vira para outras opções em Matosinhos, Gondomar e Porto, escolhendo, por fim, o Coliseu. Três dias depois, a Imprensa divulga o local e as datas do conclave.
17 de março a 6 de maio
Houve quatro visitas ao Coliseu (17 de março, 20 e 28 de abril, e 6 de maio), envolvendo as equipas do PSD e da sala de espetáculos para articulação da logística, da produção e das questões técnicas. Em nenhuma foi levantada qualquer objeção impeditiva da realização do congresso, confirmou Monica Guerreiro, diretora do Coliseu, à VISÃO.
24 de maio
Rui Moreira convida Luís Montenegro, então candidato à liderança do PSD, para um almoço informal na Casa do Roseiral, situada num dos socalcos que rodeiam o Palácio de Cristal. Ambos posam para a fotografia, sorridentes. Oficialmente, o encontro à mesa serve para abordar “questões relativas ao Porto e à Região Norte, bem como temas de interesse da vida nacional”. Para lá do simbolismo do momento e da amizade entre ambos, conhecida nos meios políticos, o gesto de Moreira surge num contexto de aproximação do autarca ao PSD pós-Rui Rio.
Sem maioria absoluta no executivo, Moreira garantira, em outubro, um acordo de governação com os sociais-democratas, graças, sobretudo, à disponibilidade assumida por Alberto Machado, líder distrital do PSD, um dos dois vereadores sem pelouro eleitos pelo partido. Apoiante de Montenegro nas “diretas” do PSD, dentista de profissão e antigo presidente da junta de freguesia de Paranhos, Alberto Machado aceitou, há algumas semanas, o convite de Rui Moreira para integrar o conselho de gerência da STCP Serviços, uma subsidiária da Sociedade de Transportes Coletivos do Porto.
25 de maio
Rui Moreira recebe Montenegro no edifício do Paços do Concelho para, na versão divulgada à Imprensa, “falar sobre as funções que o autarca portuense exerce na Câmara Municipal e sobre o futuro do PSD”. A descentralização e o recente conflito entre a autarquia e a Associação Nacional de Municípios Portugueses (ANMP) são outros assuntos abordados, mas, com a campanha interna do PSD ao rubro, o momento escolhido para o encontro é cirúrgico. Os dois desfazem-se em elogios públicos mútuos: para Montenegro, a relação entre o seu partido e o autarca independente “pode simbolizar uma nova abertura do PSD à sociedade”. Moreira, por seu lado, lembrou que “o PSD é um grande partido” e mantém “uma fortíssima relação” com o Porto.
Um antigo governante “laranja” do tempo do primeiro-ministro Passos Coelho, amigo de ambos, lê nestas aproximações algo mais: “À margem da amizade, o que os une são as agendas pessoais. O Luís sabe que o PSD só cresce se alargar a influência do partido aos terrenos que o Rui pisa. E o Rui sabe que o Luís pode proporcionar-lhe uma saída airosa da autarquia, caso ele pretenda manter-se na política ativa. Uma candidatura a Belém pode passar pela cabeça do Rui, mas é hipótese remota, pois existem outras figuras de peso do partido na primeira fila. Já o Parlamento Europeu seria um excelente cenário para o PSD e para o próprio Rui Moreira, caso ele decida sair do Porto antes do final do mandato”, refere.
28 de maio
Luís Montenegro vence as eleições internas no PSD, derrotando Jorge Moreira da Silva, que fica a larga distância.

6 de junho
Última visita técnica do PSD ao Coliseu. Desta vez, e por cortesia da atual direção, participam elementos da equipa de Montenegro. Jornalistas e técnicos dos órgãos de Imprensa acreditados também marcam presença. No final da visita, o staff do novo líder alerta-o para a falta de condições da sala de espetáculos: falam de espaço insuficiente para a segurança dos participantes e para o cumprimento das regras de distanciamento da DGS relativas à pandemia, aludem a queixas de canais de TV sobre lugares para os carros de exteriores e referem ser complicada a instalação de um plateau e dos próprios delegados e observadores.
“Só o PSD poderá responder quanto aos motivos desta alteração, mas o Coliseu tem condições para acolher o congresso”, rebate Mónica Guerreiro, em declarações à VISÃO. “Organizam-se aqui eventos de todo o género e até com maior dimensão do que este. Nos últimos anos, o Coliseu recebeu dois Prémios Nobel, altamente mediatizados: Barack Obama, na conferência Climate Change Leadership Porto Summit 2018 e, no ano seguinte, o concerto de Bob Dylan. Em termos de dispositivo de segurança e complexidade técnica, foram ocasiões exigentes, às quais o Coliseu respondeu com toda a qualidade”, explica.
A diretora da octogenária sala de espetáculos nega que as questões relativas à pandemia tenham sido levantadas. “O Coliseu sempre cumpriu, e cumprirá, com as regras impostas pela DGS”. No resto, o espaço “tem condições adequadas como fornecimento de corrente elétrica, locais para passagem de cablagens, etc., dedicadas a carros de exteriores que, habitualmente, se instalam no recinto. Exemplo disso são as inúmeras transmissões televisivas que têm ocorrido desde sempre. Obviamente, o espaço não é ilimitado, pelo que foi sugerida a solução de ocupar parte da via da Rua Formosa com alguns dos carros. Essa via encontra-se já vedada à circulação, sendo destinada a cargas e descargas”. Quanto ao espaço e instalação dos congressistas e outros participantes, sempre lhe foi dito, garante, que tudo estava “à medida” das necessidades.
Também nesse dia, por coincidência, o Coliseu foi um dos temas abordados na reunião entre Rui Moreira e os deputados do PS eleitos pelo Porto (Matos Fernandes, Tiago Barbosa Ribeiro, Carla Miranda, Carlos Brás e Maria João Castro) ocorrida na Câmara. Diz quem lá esteve que o autarca revelou desagrado com a gestão de Mónica Guerreiro e criticou, entre outras opções, os espetáculos de circo e os concertos Promenade. Assertivo, prometeu dar gás à concessão da mítica sala de espetáculos a privados, nos mesmos moldes do Super Bock Arena, quando, em março do próximo ano, a autarquia assumir a presidência rotativa da Associação Amigos do Coliseu (AAC), entidade gestora do espaço. Na verdade, a concessão já estava prevista e foi até sufragada na assembleia municipal e em assembleia geral da AAC. Mas, em abril de 2021, a Câmara e o Ministério da Cultura assumiram publicamente o custo das obras de reabilitação urgente do Coliseu, orçadas em cerca de 3,5 milhões de euros, recuando assim na intenção de concessionar a sala. Seria Rui Moreira a reavivar o tema, culpando o Governo pela falta de investimento e enquadramento legal para aquela solução.
7 e 8 de junho
Luís Montenegro liga ao secretário-geral do PSD e transmiti-lhe a vontade de escolher outro local para a realização do congresso, preocupado com o facto, segundo a versão que lhe chegara, de que o Coliseu não teria condições. “Eu não tinha essa indicação, mas ele falou-me no Pavilhão Rosa Mota e disse-lhe que já tínhamos tentado em março e não havia datas disponíveis”, recorda José Silvano à VISÃO. “Deixa-me tentar, vou ver o que consigo”, propõe-se Montenegro. “Tudo bem, desde que os custos sejam os mesmos”, responde Silvano.
É nesta altura que o líder eleito do PSD recorre à Câmara do Porto e a Rui Moreira para contactar com a empresa gestora do espaço, rebatizado Super Bock Arena. A sociedade Círculo de Cristal confirma a disponibilidade de agenda e garante até o mesmo preço que o PSD pagaria pelo Coliseu. Luís Montenegro endossa a sua pretensão ao secretário-geral e este desencadeia as formalidades contratuais. “O congresso vai mudar de lugar. O Montenegro falou com o Moreira e conseguiu o Arena”, comenta-se à boca cheia na sede do PSD.
Montenegro falou-me no Pavilhão Rosa Mota e disse-lhe que já tínhamos tentado em março e não havia datas disponíveis
JOSÉ SILVANO, SecrETÁRIO-GERAL DO PSD
Dia 8, Pedro Ferreira contacta o Coliseu, em nome da organização do congresso. Explica que o novo presidente optara por outro espaço, até porque recebera queixas em relação ao estacionamento dos carros de exteriores e que, para tal, o espaço livre do Arena seria mais adequado. O PSD frisa não estarem em causa as condições do Coliseu, mas a desistência do espaço implica o pagamento de metade dos cerca de 40 mil euros que acordara. Nesse mesmo dia, à noite, o PSD confirma oficialmente a mudança de local e justifica-a pelo facto de o Super Bock Arena apresentar “melhores condições”.
23 de junho
O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, e o líder eleito do PSD, Luís Montenegro, juntam-se a Rui Moreira nos festejos da noite de São João.

1 de julho
A realização do 40º congresso do PSD no Super Bock Arena, que hoje se inicia, acaba por proporcionar outras coincidências festivas. Mas vamos por partes.
O recinto que Montenegro escolheu à última hora tem capacidade para 5500 lugares sentados e 8000 em pé (mais do dobro do Coliseu) e a sua requalificação e reabilitação custou, oficialmente, perto de 9 milhões de euros ao consórcio Círculo de Cristal (constituído pela PEV Entertainment e a construtora Lucios).
A concessão do espaço pela autarquia à gestão privada é válida por 20 anos (até 2039) e implica um pagamento mensal de 20 mil euros à Câmara do Porto, a título de rendas, embora a liquidação desse valor tenha sido suspensa durante a instalação do “Hospital de Campanha” no pavilhão em 2020 ou isenta, em metade da mensalidade, durante quase todo o ano passado, por causa da pandemia.
Os investidores privados que gerem o recinto não podem, sequer, queixar-se da falta de contratos para eventos financiados pela autarquia. De dezembro de 2020 até 23 de maio último, de acordo com dados do portal dos contratos públicos, a Câmara do Porto e as empresas municipais Ágora e Domus Social privilegiaram o Super Bock Arena para iniciativas e ações contratualizadas por ajuste direto num valor a rondar os 97 mil euros. A organização do voto antecipado em mobilidade e a sessão solene de instalação dos órgãos do município foram dois deles.
Já antes, em julho de 2020, a Ágora celebrara um contrato de 200 mil euros com um consórcio integrado pela PEV Entertainment, sociedade gestora do Super Bock Arena, para a realização do evento “Noites do Palácio”, uma série de oito concertos de artistas portugueses. Além do financiamento público, a empresa municipal permitiu ao consórcio PEV/Everything is New ficar com as receitas de bilheteira, publicidade, patrocínios e merchandising. A 18 de junho do ano passado, o Arena foi também o local escolhido pelo movimento independente de Rui Moreira para a apresentação oficial da recandidatura à Câmara do Porto.
Este fim de semana, os congressistas do PSD que rumarem ao antigo Palácio de Cristal terão à sua espera não apenas a consagração de Luís Montenegro, mas também a possibilidade de desfrutar de momentos de descontração: distribuída pelos jardins do recinto, decorre nas mesmas datas a edição de verão da Essência do Vinho, festival de vinho, gastronomia e música apoiado pela Câmara e com o qual Rui Moreira já teve uma relação mais do que sentimental.
Até há meses, o rosto mediático da empresa e do festival era Nuno Botelho, de quem o presidente do município foi sócio na Essência do Vinho Brasil Eventos, Lda, criada em 2013 no Bairro da Tijuca, no Rio de Janeiro. Botelho sucedeu a Moreira na presidência da Associação Comercial do Porto e foi diretor da sua primeira campanha eleitoral à presidência da Câmara. Como é sabido, o Ministério Público investiga a alegada “teia de negócios” da Essência do Vinho – estarão em causa contratos públicos de 7 milhões de euros para promoção internacional de Vinho do Porto e “crimes de participação económica em negócio, corrupção e, eventualmente, branqueamento”.
Na sequência destas notícias, Nuno Botelho renunciou aos órgãos sociais da sociedade a 25 de fevereiro. Por coincidência, o mesmo dia em que a empresa municipal Ágora aprovou um financiamento de 65 mil euros à Essência do Vinho e ao seu festival, além de outros apoios relacionados com o licenciamento, meios logísticos e divulgação do evento. Na segunda, 28, a Câmara do Porto deliberou distinguir instituições e personalidades da Invicta, entre elas Nuno Botelho, que receberá a medalha de mérito municipal, grau ouro, pelo “trabalho desenvolvido em prol da cidade e da região”. A unanimidade da decisão é uma tradição, de forma a permitir que cada força política não veja contestados os nomes que sugere. Neste caso, a proposta partiu do movimento independente de Rui Moreira. O texto associado à distinção releva o projeto Essência do Vinho e atribui a Botelho uma atuação “pautada pela defesa dos interesses locais”. A sua ação, lê-se ainda, “confunde-se com os interesses do Porto”.
Para Luís Montenegro e Rui Moreira, o facto de o congresso do PSD e o festival apoiado pela Câmara coincidirem no mesmo local da cidade durante quase três dias acabou, talvez, por sair melhor do que a encomenda e colocar a cereja no topo do bolo. E ainda dizem que não há finais felizes! Tchim, tchim!