Nuno Graciano, 52 anos, antigo apresentador das manhãs da CMTV (entretanto descartado pela estação) e depois dedicado à produção de queijos certificados da Serra da Estrela da marca “Tio Careca”, diretor comercial de uma empresa do ramo imobiliário, é a última de uma longa linhagem de figuras do audiovisual, do pequeno ao grande écrã, a dar o salto para a política: o antigo apresentador de “Contacto”, programa da TVI que tinha como rosto, além do seu, o de Rita Ferro Rodrigues (filha do atual presidente da Assembleia da República) é o candidato do Chega à Câmara Municipal de Lisboa, nas eleições autárquicas deste ano.
É verdade que se desconhece a vocação autárquica ou a pulsão executiva, no plano das políticas públicas e municipais, do (também) apresentador dos vídeos de apanhados do “Não Há Crise”, mas essas características também eram desconhecidas na ex-apresentadora de “Falar Português”, um programa da RTP dedicado à Língua Portuguesa , quando, em 1993, Edite Estrela foi candidata à Câmara de Sintra, pelo PS (com o sucesso que se conhece). No que respeita aos insuspeitos dotes parlamentares, o mesmo se pode dizer de figuras da TV (ainda que na área da informação e não do entretenimento) como são os casos das jornalistas Maria Elisa Domingues, eleita deputada, pelo PSD, em 2002, ou Manuela Moura Guedes, que também chegou ao Parlamento, em 1995, como deputada independente pelo CDS de Manuel Monteiro. Em comum, a notoriedade pública alcançada com a exposição televisiva.
Edite Estrela era conhecida por apresentar o programa “Falar Português”. Já Moita Flores era mais dado à criminologia e à ficção
Nem todos, como Graciano, chegam à ribalta do noticiário político por via do resgisto pimba: antes de se sentar na bancada parlamentar socialista, em 2009, Inês de Medeiros, realizadora de cinema com pergaminhos, já havia aparecido, como figura destacada, na campanha presidencial de Jorge Sampaio, em 1996, de quem foi mandatária, e, posteriormente, também em 2009, com as mesmas funções, na candidatura de Vital Moreira (pelo PS) ao Parlamento Europeu. Com a exposição política a juntar ao reconhecimento artístico, ela foi o trunfo certo para retirar ao PCP, nas autárquicas de 2017, o impensável bastião de Almada, criando um problema ao próprio António Costa que, aflito, tinha de gerir uma relação difícil no quadro da geringonça, e não esperaria tamanho “atrevimento”. Um tiro no escuro, por parte do eleitorado de Almada, que parecia, antes, capturado pela CDU, sem que se conhecesse algum currículo executivo à cabeça de lista do PS.
Já Francisco Moita Flores, quando foi eleito, como independnete, pelo PSD, presidente da Câmara de Santarém, nada mais, nada menos, do que uma capital de distrito – que costumava votar à esquerda -, levava na bagagem a sapiência de argumentista de séries de televisão de algum fôlego histórico e a popularidade de escritor reconhecido, sobretudo, na área do policial picaresco. Foi autor de quatro telenovelas e de 13 séries, para além de ter escrito mais de dezena e meia de livros, e era reconhecido pelo público. O crime era, salvo seja, claro, a sua profissão – ele que fora inspetor da Polícia Judiciária e era analista na área da criminologia – e o PS, a quem roubou a Câmara, tê-lo-ia, se pudesse, levado preso. Mas Moita Flores, ao contrário de Graciano, não tinha apresentado vídeos de apanhados. E já antes do 25 de abril tinha integrado listas da oposição, na CDE (Comissão Democrática Eleitoral), em 1969 e em 1973. Moita Flores juntava, por via da sua notoriedade, barra popularidade, a perninha na política aos seus (muitos) outros atributos. E depois de uma primeira eleição escalabitana, em 2005, conseguiu para o PSD, o melhor resultado jamais obtido por uma única força política, em Santarém, em 2009. O facto de, entretanto, se ter tornado suspeito de abusar do jogo dos polícias e ladrões – foi recentemente indiciado pelo Ministério Público num caso de corrupção – não invalida o que ficou para trás.
Um comediante de TV foi eleito presidente da Ucrânia. E o ator Schwarzenegger foi um ‘predador’ de votos, na Califórnia…
Os casos internacionais falam, também, por si: em 2019, um comediante ucraniano chamado Volodymyr Zelenskiy foi eleito presidente da república do seu país. Em juízo estava o seu papel como estrela no show de TV “Servo do Povo” onde o personagem principal se tornava presidente… por acidente. Assim, a ironia também ganhou, nessa disputa, em que deixou, nada mais, nada menos do que 38 adversários para trás, muitos dos quais experimentados na arena política ucraniana. Acusações de que Zelenskiy não passaria de um joguete nas mãos do oligarca dono da estação onde apresentava o programa, um tal Igor Kolomoysky, veementemente desmentidas pelo candidato, não o demoveram a ele – nem ao eleitorado – fazendo lembrar, mas com ainda mais sucesso, o percurso de um seu colega cómico, o italiano Beppe Grillo, fundador, em 2009, do Movimento 5 Estrelas, que entraria como um furacão entre os principoais partidos da política italiana.
No outro lado do Atlântico, também não faltam exemplos: Ronald Reagan, antes de ser conhecido como político, foi um ator de cinema em Hollywood, menor, mas suficientemente conhecido para os eleitores se lembrarem dele quando, em 1981, o elegeram, pela primeira vez, presidente dos EUA. E o próprio Donald Trump deve o seu reconhecimento nacional, não apenas ao mérito nos negócios – empresários há muitos – mas ao programa “The Apprentice”, produzido pela MGM Television, que lhe forjou, com fundamento ou sem ele, a aura de empreendedor bem sucedido, para além de líder carismático. Antes dele, o ator Arnold Schwarzenegger já tinha sido eleito governador da Califórnia (2004-2011) e nem o facto de não ser americano de origem (nasceu na Áustria, tem isso em comum com Inês de Medeiros…) o impediu de ser um verdadeiro… predador de votos.
Em África, o futebolista George Weah, melhor jogador do mundo em 1996, apareceu, inesperadamente, na ribalta política do seu país, a Libéria, em 2005, e logo através de uma candidatura presidencial. É verdade que a sua intervenção cívica não se limitou ao desporto: a fundação com o seu nome tinha-se destacado na ajuda às vítimas das duas guerras civis que assolaram o seu país, durante toda a década de 90. Mas o estrelato futebolítico mundial ajudou: dessa vez, perdeu, é certo. Mas, não desistindo, foi senador e voltou à carga, em 2017, tendo sido eleito presiente, derrotando o vice-presidente em exercício, Joseph Boakai.
No fundo, o Brasil é uma boa alegoria: o ministro da Cultura mais mediático de Lula da Silva foi o músico e cantor popular Gilberto Gil. Ou seja, “Se eu quiser falar com Deus”, é melhor estar no governo…
E o que dizer de um obscuro autarca dos subúrbios de Lisboa, tornado celebridade num daqueles programas hooliganistas onde se discute tudo menos futebol?
Mas se uma profissão ligada ao mundo da TV ou do cinema é o garante de notoriedade e, quiçá, de popularidade, e, portanto, meio caminho andado para uma carreira na política, os próprios políticos “de raiz” dão grandes saltos nas intenções de voto, depois de um certo período de exposição televisiva constante. E não estamos a falar de meros candidatos a políticos, como Marinho e Pinto, Pardal Henriques ou, mais recentemente, a bastonária da Ordem dos Enfermeiros, Ana Rita Cavaco. É verdade que, sem os 15 minutos de fama alguns deles não seriam notáveis. Mas nem é destes que se trata: do que se trata é que a exposição televisiva faz muito bem às carreiras de políticos… já consagrados. Que o diga o nosso Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, cuja presença, em casa dos portugueses, aos serões de domingo, durante mais de 20 anos, criou laços de afeto – lá está… – que nenhum adversário conseguiu desatar. Campanha para quê? Assim, também nós.
Mas Marcelo não foi o único, entre nós, a beneficiar desta alavanca mediática: dois ex-primeiros-ministros, José Sócrates e Pedro Santana Lopes, deram o salto definitivo, rumo a mais altos voos, depois da credibilidade conquistada a comentar a política nacional, em semi-debate, na RTP, em horário nobre, todos os domingos. Uma gaffe da produção identificou-os, certa vez, em voz alta, como “os marretas”. No entanto, todo o estrago que essa voz off provocou foi um lenho na testa de Santana quando este, furioso, se levantou e se dirigiu para o backstage, querendo pedir explicações – mas bateu com a cabeça num vidro invisível, o que o impediu de se travar de razões com o presumível ofensor.
E o que dizer de um obscuro autarca dos subúrbios de Lisboa, tornado celebridade num daqueles programas de faca e alguidar de domingo ou de segunda-feira à noite, na CMTV onde, de forma hooliganista, se discute tudo menos futebol? O lugar de vereador em Loures interessava, por Ventura?… O homem era o “representante” do Benfica – e isso chega(va).
E não será Nuno Graciano da mesma escola televisiva?