Sabia. Não podia. Devia.
Ordenou. Retirou. Beneficiou.
São estes, na generalidade, os termos que o Ministério Público usa para descrever o comportamento alegadamente criminoso de Rui Moreira no caso Selminho, no qual acusa o presidente da Câmara de ter agido de forma consciente e ao arrepio da lei para favorecer a empresa da sua família no diferendo que aquela manteve com a autarquia da Invicta durante anos. Uma argumentação contestada pelo visado. A partir da leitura do despacho em que o autarca da Invicta é acusado de prevaricação, a VISÃO faz a cronologia deste processo polémico e explica os bastidores do mesmo.
29 de março de 2001 – O terreno
Invocando usucapião, o casal Maria Irene Ferreira e João Batista Ferreira registam no Cartório Notarial de Montalegre a propriedade de um prédio urbano situado na Calçada da Arrábida, no Porto, composto por terreno para construção, com 2260 m2, no valor de quase 150 mil euros. A aquisição é também registada na Segunda Conservatória do Registo Predial do Porto, a 25 de maio do mesmo ano.
3 de julho de 2001 – Selminho compra
A Selminho Imobiliária, Lda, sociedade por quotas detida por Rui Moreira, irmãos e a mãe do atual presidente da Câmara do Porto, adquire a propriedade ao referido casal por cerca de 175 mil euros, registando-o a seu favor, no Porto, no dia 31 de julho daquele ano.
13 de setembro de 2005 – Rui Rio suspende
A Câmara Municipal do Porto, com Rui Rio a presidente, determina a suspensão dos pedidos de informação prévia de licenciamento e de autorização de operações urbanísticas que não estejam de acordo com o Plano Diretor Municipal (PDM) em fase de ratificação.
8 de novembro de 2005 – Selminho insiste
A Selminho apresenta na Câmara do Porto um pedido de informação prévia sobre a viabilidade de construção de um edifício de apartamentos multifamiliar (doze T4´s) com uma área total de 5314 m2 e um volume de construção de 48662m3.
15 e 18 de novembro de 2005 – Ação no tribunal
Inconformada com o teor da deliberação camarária de setembro, a Selminho instaura no Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) do Porto um procedimento cautelar, visando a suspensão da eficácia da decisão do município, e uma ação tendo em vista a anulação da mesma.
4 de junho de 2010 – Câmara ganha
Após sucessivas decisões judiciais, a sentença do Tribunal Central Administrativo Norte dá razão à Câmara do Porto no diferendo com a Selminho, considerando válida a deliberação tomada a 13 de setembro de 2005.
15 de setembro de 2010 – Selminho reage
A Selminho intenta uma ação contra a autarquia do Porto no TAF, argumentando a ilegalidade de dois artigos do PDM ratificado em Conselho de Ministros e reivindica uma indemnização mínima superior a 1,5 milhões de euros por danos causados, caso as referidas normas sejam consideradas válidas e legais e, como tal, impeditivas de construção.
24 de janeiro de 2011 – Ação suspensa
Rui Rio, à época presidente do município do Porto, constitui procuradores da edilidade no processo o advogado Pedro Neves de Sousa e o solicitador Marco Almeida. Nessa mesma data, a Selminho e a Câmara requereram a suspensão da ação por cinco meses, uma vez que se vislumbrava a possibilidade de um acordo.
24 de outubro de 2011 – À espera do PDM
A pedido das partes, e suportada por despacho judicial nesta data, a suspensão temporária é renovada até ao termo do processo de alteração do PDM do Porto, então em curso.
Março de 2012 – LNEC “chumba”
Na sequência de um pedido de parecer da Câmara do Porto, o Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC) elabora um relatório preliminar no qual considera que a área do terreno onde a Selminho pretendia construir fazia parte da chamada “escarpa da Arrábida” e, como tal, não era edificável.
5 de junho de 2012 – Construção negada
No âmbito da discussão pública do PDM, em face de nela se ter pronunciado a Selminho, a Direção Municipal de Urbanismo da Câmara do Porto emite uma informação na qual se considera que o terreno daquela sociedade se insere na Estrutura Ecológica Municipal, integrando a qualificação de áreas verdes e de proteção de recursos naturais, impeditivo de qualquer construção. Só tendo por base estudos específicos no decurso da revisão do PDM é que se poderia reavaliar a hipótese de edificar algo naquela zona.
24 de julho de 2012 – Alterações ao PDM
A Câmara submete à apreciação da Assembleia Municipal a proposta de alteração do PDM do Porto, mas as alterações não interferem na parte judicialmente impugnada pela Selminho.
3 de setembro de 2012 – Selminho ataca
Inviabilizado qualquer acordo com a autarquia, a Selminho requer a “prossecução dos autos, com todas as demais consequências”.
14 de setembro de 2012 – Câmara contesta
A Câmara do Porto contesta os argumentos da Selminho, impugnando o direito de construir no polémico terreno e rejeita qualquer direito indemnizatório por entender que, do ponto de vista urbanístico, não há qualquer fundamento para alterar a qualificação do solo e o estatuto de proteção.
17 de setembro de 2012 – AM aprova PDM
A Assembleia Municipal do Porto acolhe e aprova a alteração ao PDM proposta pelo executivo camarário.
22 de outubro de 2013 – Posse de Rui Moreira
Rui Moreira toma posse como presidente da Câmara do Porto. À data, é ainda sócio da Selminho, então gerida pelos irmãos.
28 de novembro de 2013 – Procuração para negociar
Rui Moreira constitui procuradores da autarquia no litígio com a Selminho os juristas Pedro Neves de Sousa, Ana Teixeira Correia e Sofia Nogueira Pinto, além do solicitador Marco Almeida. A eles concede, segundo o documento, poderes especiais para “confessar, desistir ou transigir” no âmbito do processo que corre no TAF do Porto. Segundo o despacho de acusação do Ministério Público, a emissão daquela procuração forense por parte do autarca “é contrária aos deveres de isenção e imparcialidade a que estava obrigado e que deve nortear o exercício das funções” de acordo com o Estatuto dos Eleitos Locais e do próprio Código do Procedimento Administrativo. Para o MP, “existia um conflito de interesses” e, como tal, Rui Moreira deveria ter-se “abstido de outorgar uma procuração, como representante do município, onde expressamente consta o nome da Selminho”, e declarado esse impedimento, sendo substituído pelo vereador com poderes de substituição, o que só aconteceria oito meses depois.
10 de janeiro de 2014 – Construção espera pelo PDM
No âmbito da ação que corria termos no TAF e das conversações entre as partes, os representantes do presidente da Câmara do Porto admitem a possibilidade de contemplar as pretensões da Selminho na próxima revisão do PDM, em 2016. “Embora sabendo que as pretensões da Selminho não haviam sido acolhidas no processo de alteração do 1º PDM, findo em 2012, e que a ação estava destinada a improceder”, Rui Moreira determinou, segundo o MP, que o advogado Pedro Neves de Sousa requeresse nova suspensão da ação administrativa com intenção de acolher os desejos de construção da empresa gerida pelos irmãos na futura alteração do PDM. De acordo com o despacho de acusação, esta decisão é contrária a tudo aquilo que a autarquia vinha defendendo e contestando até aí. A procuração de Rui Moreira e a ata de audiência das partes no TAF só seria junta ao processo municipal de acompanhamento em outubro de 2016.
22 de abril de 2014 – Negociações
Por ordem e de acordo com as instruções de Rui Moreira, o advogado Pedro Neves de Sousa informa o TAF de que as partes em litígio se encontram a finalizar as negociações.
18 de julho de 2014 – Rui Moreira “impedido”
Guilhermina Rego, vice-presidente da Câmara do Porto, legal substituta de Rui Moreira na sua ausência ou impedimento, emite procuração aos advogados Pedro Neves de Sousa e Sofia Nogueira Pinto, e ao solicitador Marco Almeida, no âmbito do caso Selminho que corre termos no TAF. Rui Moreira assinara um documento, sem data, invocando o seu impedimento para intervir no processo, de acordo com o Estatuto dos Eleitos Locais.
24 de julho de 2014 – Construção ou indemnização
A Selminho e a Câmara do Porto acordam a desistência da ação no TAF, uma vez que a autarquia se comprometera a acolher as pretensões da Selminho no âmbito da revisão do PDM. Caso tal não aconteça, a indemnização a atribuir à sociedade da família de Rui Moreira será decidida com um recurso a um Tribunal Arbitral, composto por três árbitros (dois escolhidos pelas partes e um por consenso).
11 de agosto de 2014 – O acordo fechado
A Selminho e a Câmara do Porto assinam uma “transação judicial”, nos termos da qual o município se compromete, em próxima revisão do PDM, a alterar a tipologia de qualificação do solo no terreno onde a sociedade dos familiares de Rui Moreira pretendia construir ou, caso seja impossível fazê-lo, a definir uma indemnização à empresa via Tribunal Arbitral. O despacho judicial é homologado a 5 de setembro e as partes desistem da ação.
O conteúdo deste acordo e o respetivo compromisso arbitral foram, sustenta o MP, “negociados e fixados” entre as duas entidades, atuando a Câmara do Porto “sob ordens e orientação” de Rui Moreira. Segundo a acusação, o presidente determinou que os funcionários do município, Anabela Ribeiro (chefe de divisão de estudos e apoio jurídico) e Raquel Matos Maia (diretora municipal da presidência e do departamento municipal jurídico e de contencioso), e o advogado Pedro Neves de Sousa “apresentassem o texto e os termos do acordo já fechado” à vice-presidente da Câmara, Guilhermina Rego, “dias antes da diligência judicial na qual esta se limitou a assinar o mesmo sem que naquele tivesse tido qualquer outra intervenção”.
Apesar de obrigada a levar à Assembleia Municipal as alterações do PDM que fossem de encontro às pretensões da Selminho (construção ou indemnização) e os termos do respetivo compromisso arbitral antes da assinatura destes documentos, o executivo de Rui Moreira não o fez.
10 de março de 2015 – Revisão do PDM prolongada
Por deliberação tomada em reunião pública de Câmara, apenas nesta data foi iniciado o processo da segunda revisão do PDM, cuja conclusão estava prevista até 31 de dezembro de 2016.
10 de fevereiro de 2016 – Prolongamento
Rui Moreira propôs e fez aprovar na Câmara o adiamento do prazo de conclusão da revisão do PDM para 25 de março de 2018.
30 de dezembro de 2016 – Novo prolongamento
A Câmara aceita, por carta, o pedido da Selminho no sentido de prorrogar o prazo previsto no compromisso arbitral até 31 de agosto de 2018.
10 de fevereiro de 2017 – Tribunal arbitral: nova adenda
É assinada entre as partes uma segunda adenda ao compromisso arbitral. A Selminho fica obrigada a apresentar a sua petição inicial no prazo de 60 dias a contar da entrada em vigor do novo PDM.
“Quero deixar claro que é absolutamente falso e mentiroso que alguma vez tenha tido alguma intervenção enquanto presidente do município. Era preciso ser muito tolo para que, depois de me ter candidatado e recandidatado ao cargo que hoje ocupo, me colocasse numa posição tão frágil”.
Rui Moreira, presidente da Câmara do Porto
9 de junho de 2017 – Afinal, o terreno é da Câmara
Na sequência de uma reclamação apresentada na Câmara em 2016 pelo condomínio do edifício Douro Foz relativa à limpeza de um terreno confinante, situado junto à calçada da Arrábida, a autarquia comprova que o mesmo (onde a Selminho pretende construir) é, afinal, propriedade do município, pelo menos desde que foi registado em final de 1962. Na sequência da informação, o diretor municipal dos serviços jurídicos, José Paulo Correia de Matos, elaborou e submeteu a mesma ao executivo e à Assembleia Municipal, propondo a interposição de uma ação judicial em que, de uma vez por todas, fossem dissipadas dúvidas sobre a propriedade do terreno que a Selminho também reclamava. Embora o tema já fosse objeto de tratamento na Imprensa e denúncias políticas, dias antes (29 de maio) a Selminho e a Câmara celebraram uma terceira adenda ao compromisso arbitral, optando pela designação de um único árbitro no caso, cabendo a designação ao Tribunal Central Administrativo do Porto. “Tal adenda foi motivada por pressões da opinião pública e políticas, dado que a redação anterior permitia que o terceiro árbitro fosse designado por acordo entre a Selminho e o município do Porto”, lê-se no despacho do MP.
5 de maio de 2020 – Supremo “derrota” Selminho
O Supremo Tribunal de Justiça confirma que o terreno em causa na escarpa da Arrábida onde a Selminho pretende construir nunca foi adquirido por usucapião e anula o contrato de compra e venda entre o casal supostamente proprietário do mesmo e a sociedade imobiliária da família de Rui Moreira.
26 de junho de 2020 – Tudo sem efeito
O diretor municipal de contencioso profere despacho considerando que, em face da sentença, todas as reivindicações da Selminho ficam sem efeito, incluindo as sucessivas adendas celebradas com a Câmara do Porto.
19 de novembro de 2020 – MP acusa Rui Moreira
O Ministério Público conclui o inquérito ao caso Selminho. Acusa o presidente da Câmara do Porto de prevaricação e propõe a perda de mandato. Os procuradores acusam Moreira de ter agido sempre de modo a beneficiar a empresa da família e da qual foi sócio em detrimento do património e erário públicos.
21 de dezembro de 2020 – Presidente da Câmara reage
Rui Moreira abre o período antes da ordem do dia da reunião de câmara para abordar o caso Selminho e as conclusões do inquérito. Considera o seu conteúdo “uma peça de combate político” e a acusação “ultrajante e infame”. O autarca garante que pedirá a abertura de instrução do processo e reafirma: “Quero deixar claro que é absolutamente falso e mentiroso que alguma vez tenha tido alguma intervenção enquanto presidente do município. Era preciso ser muito tolo para que, depois de me ter candidatado e recandidatado ao cargo que hoje ocupo, me colocasse numa posição tão frágil”.