Os primeiros tempos em Jacarta foram exigentes. Ana Gomes passava os dias em contactos com as autoridades indonésias e com a resistência timorense. À noite, durante horas a fio, a embaixadora produzia os reports para Lisboa, em que descrevia o ambiente político que se vivia entre Timor-Leste e a Indonésia, relatava as conversas que tinha mantido com as diferentes fontes, tentava antecipar soluções para concretizar o processo de independência timorense, ao mesmo tempo que geria a diferença horária entre Lisboa e a capital indonésia nos contactos telefónicos com o governo português. “Durante semanas, dormiu três ou quatro horas por noite”, recorda um antigo colega diplomata. “Queixava-se de que a missão era esgotante, sim, mas tinha um drive louco por aquela questão, percebia o que estava em jogo, o papel que podia ter, e assumiu o cargo com garra.” Não houve outra causa como Timor naquelas duas décadas de carreira diplomática.
Passaram mais de 20 anos. Hoje, com a diplomacia arrumada e depois de uma longa passagem pelo Parlamento Europeu, o nome de Ana Gomes ganha peso para uma candidatura à Presidência da República. Depois de recusar em absoluto essa hipótese, recuou. Está a “refletir”, mas, num aspeto, pouco mudou: está sempre ligada à ficha. É comum vê-la publicar tweets até depois das duas da manhã e perceber que, a partir das sete, os seus mais de 80 mil seguidores já estão a ser bombardeados com notícias de jornais, interpelações diretas aos principais governantes europeus, recomendações – até comentários de outros utilizadores que lhe dirigem críticas diretas são partilhados pela ex-eurodeputada. “Trabalhadora”, “incansável”, uma ativista política que não abdica de lutar pelas suas causas. Alguém “sem medo”, “bem preparada”, “inteligente”. Estas opiniões cristalizaram-se, são unânimes entre amigos de longa data, antigos colegas e até adversários políticos. Menos consensuais são as armas que ela escolhe para travar os seus combates.
“É uma pessoa indiscutivelmente combativa, com uma abordagem temática quase obsessivamente ligada à corrupção, mas com um defeito”, ressalva o eurodeputado do CDS, Nuno Melo. “Afirma certezas absolutas que podem enlamear a honra de pessoas a quem ela não deu a possibilidade de contraditório”, resume o antigo adversário no Parlamento Europeu, com quem Ana Gomes travou debates intensos. E, ainda que lhe aprecie o “impulso” justiceiro, Nuno Melo considera que, “muitas vezes”, Ana Gomes “foi para lá do que devia ir”.
Isabel dos Santos, Ricardo Salgado, Paulo Portas, Durão Barroso, José Sócrates, mas também a política externa dos EUA, a conivência do governo português com práticas nebulosas de Washington – veja-se a polémica com os voos da CIA que a colocou em rota de colisão com o próprio partido: todos são um alvo possível. A crítica e a denúncia são incessantes. “Há uma dimensão lúdica na luta, ela acha piada estar contra poderes constituídos e, se os beliscar, não fica nada incomodada”, analisa Carlos Coelho, ex-eurodeputado do PSD que conviveu com Ana Gomes em Bruxelas. “Por vezes, fez coisas porque isso era útil para a agenda dela”, considera o social-democrata.
Elisa Ferreira, atual comissária europeia e ex-colega de Ana Gomes na bancada do PS no Parlamento Europeu, admite que há “matérias em que, de facto, não se pode dizer que seja uma pessoa moderada”: “Mas essa é precisamente uma das características que a Ana não pode perder.”
Encerrar um capítulo
A chegada ao Parlamento Europeu é um capítulo tardio no diário de viagem de Ana Gomes. Jacarta, onde aterrou em 1999, foi a sua primeira missão como embaixadora e o culminar de um percurso diplomático que começara em 1980. Nos quatro anos em que esteve destacada na Indonésia, travou um dos seus maiores combates, com um contributo decisivo para que Timor conquistasse a sua independência e a paz fosse restabelecida. Ana Gomes “foi uma das figuras audaciosas” naquela missão, recorda à VISÃO José Ramos-Horta, antigo Presidente de Timor-Leste e Nobel da Paz. A embaixadora “conquistou o respeito dos adversários, teve um papel fundamental e não hesitava em criticar o seu governo quando este não era coerente e ativo na questão de Timor”, recorda o antigo responsável político timorense, que conheceu a socialista anos antes da missão de Ana Gomes em Jacarta, já a causa timorense era uma constante nas intervenções da embaixadora. Numa sociedade muito “machista”, como era a da Indonésia dos anos 1990, mostrou-se uma “mulher muito dura, muito frontal, sem medos e sem prestar favor a ninguém”. Ser mulher, naquele contexto, dava-lhe margem de manobra: “Era mais difícil de atacar”, diz um antigo embaixador.
Maria Manuel Bandeira, que sabia falar e escrever fluentemente indonésio e que começou nessa altura uma longa caminhada de trabalho ao lado de Ana Gomes (trabalharam juntas durante décadas), recorda-se bem da forma como os homens acatavam as palavras da diplomata: “Quando soube que ia para lá uma mulher, pensei: ‘Lá estão os portugueses a meter a pata na poça outra vez.’ Até que a conheci. Ela dizia coisas que ditas por um homem o tornariam persona non grata, mas ela era aceite. As suas capacidades de perceber o outro e de criar empatia com as pessoas facilitaram-lhe muito a vida.”
Ana Gomes tinha 45 anos quando chegou a Jacarta, para inaugurar a secção de interesses de Portugal na Indonésia. Um posto precário, nas instalações da embaixada da Holanda, mas que era um passo em frente nas relações entre os dois Estados. Nas duas décadas anteriores, tinha sido colocada em diferentes pontos diplomáticos, mas foi em Nova Iorque, numa missão nas Nações Unidas, que recebeu a notícia de que Jaime Gama, ministro dos Negócios Estrangeiros de António Guterres, ia destacá-la para a Indonésia.
Garantir o referendo foi, talvez, a sua missão mais fácil – quase uma “prenda” do recém-chegado Presidente indonésio B. J. Habibie, após a queda de Suharto. Combater as atrocidades dos militares indonésios, depois de 80% de timorenses votarem pela independência, e conseguir que os EUA apoiassem uma missão de apaziguamento no país foram batalhas bem mais penosas. Ana Gomes desdobrou-se em entrevistas, promoveu encontros bilaterais e bateu-se para que os capacetes das Nações Unidas entrassem no país. “Ela já era mediática, e era como ter lá alguém com um megafone a falar sobre Timor”, recorda um colega diplomata. “Não se calava.”
“Sobretudo nas áreas em que é muito conhecedora, como as matérias ligadas aos direitos humanos, a Ana prestou um serviço fabuloso à Europa e à Humanidade, no caso de Timor e em todos os temas internacionais em que se empenhou com uma imensa energia, uma enorme coragem e um total desprendimento”, sublinha a comissária europeia Elisa Ferreira.
Numa entrevista, em 2018, ao recordar os quatro anos em Jacarta, Ana Gomes contava que começou a ficar “alarmada”. Preocupava-a a “promiscuidade” e os “negócios” entre a política e o desporto. Essa foi uma das razões para, em 2003, ter decidido trocar a diplomacia pelo PS. Queria “partir a loiça”. Mas houve outro motivo para a mudança: as dezenas de cartas que recebeu de mulheres que se reviam nela. Percebeu que não podia encorajá-las a avançar para a política e, ao mesmo tempo, manter-se à margem desse papel. E foi assim que assumiu funções na direção do PS, a convite de Ferro Rodrigues, pondo fim à carreira diplomática.
A mão pesada da ditadura
Entrou em Direito em 1972, na Clássica de Lisboa, num período em que os corredores da universidade eram varridos pelos “gorilas” do regime – ex-militares ou polícias, ali colocados para cortar pela raiz a contestação ao Estado Novo. Foram tempos intensos, anos de amadurecimento político para uma jovem estudante que já acumulara currículo no ativismo político estudantil, no contacto com os Comités de Luta Anti-Colonial (CLAC). Ana Gomes foi reforçando a militância na defesa de causas e revelava já uma capacidade nata de liderar. Manuel Pina, militante no Movimento Reorganizativo do Partido do Proletariado (MRPP), nesse início da década de 1970, recorda esse tempo. “Estava no terceiro ano quando ela chegou” à Clássica, conta à VISÃO o antigo “controleiro” de Ana Gomes no MRPP – um dos partidos em que os membros da CLAC se inspiravam. Disputava-se a eleição para delegado de turma. “O que me chamou a atenção foi a capacidade dela para liderar uma turma em que havia três listas: uma de gente ligada ao PCP, outra de estudantes orientados pelo MRPP, e uma de extrema-direita, com filhos de ministros.” Ana Gomes venceu a eleição, para surpresa da direção da faculdade, convencida de que a lista dos alinhados iria vencer. Foi num misto de repressão e de militância que se moldou o ativismo político de Ana Gomes. “Recordo-me, numa reunião no anfiteatro, de a ver fazer a sua intervenção e a dominar a sala. Estava ali alguém com uma capacidade muito superior ao que era normal”, conta Manuel Pita.
Estava suspensa por “atividades subversivas” quando se dá o 25 de Abril. Nessa manhã, esteve no Largo do Carmo e, dias mais tarde, foi também a Caxias. Estar ali, onde tudo acontecia, foi “decisivo” para a sua vida. De resto, sem 25 de Abril, o seu nome jamais teria sido admitido nos cadernos de candidatos ao curso dos Negócios Estrangeiros – as mulheres estavam excluídas da magistratura e da carreira diplomática… A Revolução trouxe-lhe também essa liberdade, e Ana Gomes agarrou-a: ficou em primeiro lugar no concurso, integrada no departamento que preparava a adesão de Portugal à União Europeia. Dois anos mais tarde, em 1982, Ramalho Eanes chama-a para consultora do Presidente da República para a Diplomacia, ainda a jovem diplomata não tinha 30 anos. “Foi por sugestão do chefe da Casa Civil [o embaixador Fernando Reino], que referiu as suas altas qualidades, a competência, o interesse pelos assuntos que lhe eram entregues e uma certa capacidade de crítica que não escondia quando considerava que isso podia contribuir para melhorar a tomada de decisões”, explica Ramalho Eanes à VISÃO. Em retrospetiva, “a crítica era a característica mais interessante dela”, admite o antigo Presidente.
E Ana Gomes exercia-a sem olhar a destinatários. Numa viagem ao Congo, a embaixadora foi manifestando divergências com o Chefe de Estado – Eanes não se recorda ao certo do tema em causa. “Ouvi-a, considerei os argumentos e acabei por seguir a minha posição inicial, que era a mais correta”, conta. E se recupera o episódio é precisamente para destacar um dos traços mais marcantes do perfil da socialista. “Quando as pessoas trabalham em conjunto durante muito tempo, há tendência para não discordar de quem decide nem criticar, mas ela manteve essa capacidade criativa e exercia-a com oportunidade, elegância e determinação” nos anos de Belém.
Trunfo disputado ao centro
Em 2002, a missão na Indonésia estava a chegar ao fim, e Ana Gomes já planeava os passos seguintes. Era hora de interromper a caminhada. O marido, o embaixador (agora jubilado) António Franco, ex-chefe da Casa Civil aquando da Presidência de Jorge Sampaio, tinha sido colocado em Brasília, em agosto de 2001, e ela ia suspender a carreira diplomática para acompanhá-lo na sua última missão diplomática. Jacarta tinha sido a sua estreia no papel de embaixadora, mas a experiência fora tão absorvente que ela queria afastar-se e pensar no doutoramento. Era essa a mensagem que tinha preparado para levar a Durão Barroso. Mas, no final de 2002, a realidade tinha mudado radicalmente.
Ao fim de seis anos no governo, António Guterres demitira-se após um desastre eleitoral nas autárquicas de 2001. Ferro Rodrigues sucede-lhe aos comandos do PS e enfrenta Durão Barroso nas legislativas, com o objetivo de manter o Partido Socialista no governo. Missão falhada. No dia seguinte às eleições, “preocupada com o que aí vinha”, a embaixadora compromete-se com a nova liderança socialista: preenche a inscrição e entrega-a no Largo do Rato. “Quando Ana Gomes aceitou interromper a carreira diplomática e estar comigo no secretariado nacional do PS, tive uma grande alegria”, conta à VISÃO o agora Presidente da Assembleia da República.
A 11 de novembro de 2002, Durão convocara-a a São Bento dando-lhe carta-branca para escolher o próximo posto. O sucesso da missão em Timor transformara Ana Gomes numa estrela mediática que o líder social-democrata não queria perder. Mas essa fase estava concluída – mais nenhuma missão poderia dar-lhe o que Jacarta lhe dera. Durão não desarma. No seu gabinete, na residência oficial do primeiro-ministro, o social-democrata lança o desafio: “Vem para o PSD.” A resposta foi imediata: “Não tenho nada que ver com o teu partido.” Na mesma semana, sem saberem, os dois líderes disputavam o mesmo trunfo. Dias antes, durante um almoço, Ferro Rodrigues convidara Ana Gomes para entrar pela porta grande: queria tê-la como dirigente nacional do PS, seria um dos rostos da renovação. A decisão estava tomada. Em fevereiro de 2003, a embaixadora inicia as suas novas funções. “Uma diplomata, com enorme influência na emancipação de Timor-Leste, estava disponível para as grandes batalhas que tínhamos pela frente”, recorda o ex-líder socialista à VISÃO.
Pioneira dos “Luanda Leaks”
Ferro Rodrigues recorda que Ana Gomes “foi indicada por três secretários-gerais muito diferentes” – ele próprio, José Sócrates e António José Seguro – para fazer parte do grupo parlamentar do PS no Parlamento Europeu. Começou o primeiro mandato como eurodeputada em 2004, muito centrada nas questões externas, nos direitos humanos e na segurança e defesa, com o episódio dos voos da CIA a ser o mais emblemático – Sócrates jamais sonharia que a mulher que tinha sugerido para o cargo haveria de ser uma das suas principais opositoras dentro do partido. Mas, a pouco e pouco, Ana Gomes foi mudando o chip. Quando chega ao terceiro mandato, os direitos humanos não ficam esquecidos – diz quem com ela trabalhou que tem essa capacidade “cansativa” de trabalhar em várias frentes –, mas o seu principal foco passa a ser o combate à corrupção, a luta contra o crime fiscal, o branqueamento e as contas offshore. “Depois dos tempos da Troika, a Ana perguntava-se como podia haver gente a passar dificuldades e empresários que fugiam aos impostos em Portugal”, conta Miguel Carapeto, que foi seu assistente em Bruxelas, durante sete anos.
A revolta cresce com as revelações do LuxLeaks e dos Panama Papers, e a agenda da eurodeputada passa a estar sobrecarregada com estes temas. Devido às suas intervenções públicas, começam a chegar cada vez mais denúncias ao seu email. Às vezes, processos inteiros em bruto. A equipa desdobra-se em trabalho e a primeira dar o exemplo é a própria chefe: “Todos os dias levava pilhas de papéis para casa. E lia-os, efetivamente. A Ana não é só muito inteligente; lê muito e apreende muito rapidamente o que lê. O mais difícil é conseguir acompanhá-la, porque está sempre um passo à frente.”
Como se não bastasse, é conhecida por devorar informação nos média. “Quando vinha de fim de semana, já sabíamos o que nos esperava. Entrava no gabinete cheia de recortes de jornais nas mãos e a dizer: ‘Temos de fazer alguma coisa em relação a isto.’” E quando alguém da equipa respondia “Ó Ana, mas isto não vai dar em nada…”, a então eurodeputada não baixava os braços: “Mas temos de chatear, temos de chatear!” Miguel Carapeto reconhece em Ana Gomes características que a tornam “única”: “Talvez a coisa mais importante nela seja essa capacidade de se indignar.”
Este sentido de dever de incomodar leva-a a apresentar queixas a um ritmo imparável – o que pode facilmente ser comprovado numa visita ao seu site anagomes.eu. Envia perguntas para várias entidades, faz queixas para o Ministério Público e para as entidades de supervisão portuguesas e europeias. Muitas não dão quaisquer frutos – servem apenas para exasperar pessoas, como o governador Carlos Costa; outras dão à equipa o prazer das pequenas vitórias. Foi o que aconteceu, por exemplo, com o caso da Tecnoforma, quando a sua queixa às instâncias europeias sobre um alegado esquema fraudulento de utilização de fundos levou o Organismo Europeu de Luta Antifraude da União Europeia (OLAF) a abrir uma investigação.
Num dia, Ana Gomes luta contra o arquivamento do processo dos submarinos, noutro denuncia o que aconteceu no BES Angola e, noutro, começa um longo trabalho de investigação relativo à riqueza de Isabel dos Santos. Ana Gomes faz denúncias sobre a origem do dinheiro com que a filha do ex-Presidente angolano compra a Efacec, depois sobre o Eurobic, pisa os calos de Teixeira dos Santos, enche a caixa de correio do Banco de Portugal, recebe respostas, envia mais perguntas. Muita da informação do Luanda Leaks que chocou o mundo, no início deste ano, já tinha sido por ela denunciada. Sem o mesmo impacto, sem resultados. Mas nada disso a demove. “Ela é muito teimosa e otimista. Creio que ela tem noção de que muitas vezes só vai conseguir provocar, mas não se vai abaixo”, diz Miguel Carapeto. A atitude combativa, que muitos interpretam como atos persecutórios ou provocações gratuitas, traz os seus dissabores. Processos judiciais por difamação, insultos, emails desagradáveis. “Creio que o pior momento foi antes de o governo tomar posse, em 2011, quando a Ana fez umas declarações sobre Paulo Portas, questionando a sua idoneidade para ser ministro”, conta o seu antigo funcionário.
É neste contexto de missão contra a corrupção que Ana Gomes se torna, em 2010, um dos membros honorários da associação Transparência e Integridade, o ramo nacional da Transparency International. Em comum hão de ter várias causas, entre elas os vistos gold. Ana Gomes é convidada para um painel da organização sobre o tema, em Copenhaga, em outubro de 2018. A conferência coincide com um plenário em Estrasburgo, onde tinha mesmo de estar presente. “Ela desdobrou-se para ir de Estrasburgo a Copenhaga e para voltar a tempo. Recordo que depois nos contou que, apesar da correria, alguém comentou que estava com ar refrescado e que ela respondeu que era porque já estava a vislumbrar o regresso a Portugal, para se dedicar em força ao combate à corrupção”, lembra João Paulo Batalha, presidente da Associação Transparência e Integridade. “Nas reuniões era quase cansativo estar na mesma sala do que ela. Creio que se alimenta deste ativismo, desta missão, na máxima de quem corre por gosto não cansa.”
Maria Manuel Bandeira, que foi sua assistente em Portugal nos 15 anos em que Ana Gomes esteve no Parlamento Europeu, bem se recorda destas correrias. “Eu tratava das viagens e, muitas vezes, tive de lhe dizer ‘tem de ter presente que não se pode clonar’.” Também Miguel Carapeto se lembra dos pequenos milagres para encaixar todos os planos da eurodeputada que não sabia dizer não. Este talvez seja o melhor exemplo: durante uma conferência no Parlamento Europeu, quando discutiam o caso de Zainab al-Khawaja, ativista que estava preso no Bahrein e sobre quem já não conseguiam saber informações, a representante em Bruxelas da Human Rights Watch sugeriu que o melhor “era alguém ir lá”. Em poucos dias, Ana Gomes estava no Bahrein, onde viria a ser barrada no aeroporto. “É muito difícil mudar a agenda de um eurodeputado em dois dias.”
O presidente da Transparência e Integridade admira a forma como Ana Gomes não desiste de levar as suas causas avante – “não é habitual termos insiders com este espírito reformista” – e como influenciou que fossem votadas no Parlamento Europeu causas que tinha há anos na sua agenda, como as diretivas comunitárias contra o branqueamento de capitais.
Terror na Ilha de Man
A sua fama de “caçadora de offshores” acompanha-a muito para além de Portugal. Miguel Carapeto já não trabalhava com Ana Gomes, mas como assistente da Comissão Tax3 (sobre evasão fiscal e branqueamento de capitais), quando foi agendada uma visita à Ilha de Man, conhecida como um paraíso fiscal. “Lembro-me de que um elemento do Parlamento Europeu me contou que as autoridades lá da ilha só queriam saber se a Ana Gomes ia. Não perguntavam por mais ninguém”, recorda o seu antigo assistente, entre risos. “Ela causava algum temor. E não era só em Portugal.”
Ana Gomes está habituada a mexer com os extremos. Uns veem-na como corajosa e lutadora; outros, como populista e inimputável. “Aqui, é mais conotada com a esquerda radical, mais pelo estilo pessoal. Há um estilo assertivo que é mais perdoado aos homens do que às mulheres. Muitas pessoas podem não gostar do estilo do Paulo Morais, mas ninguém o chama histérico”, comenta João Paulo Batalha que fala de Ana Gomes como uma mulher com uma carreira política “interessante, mas rara”: “Não foi uma diplomata ortodoxa, mas conseguiu ganhos de causa. Também nunca foi uma política ortodoxa, nunca teve aquela cultura de corte, mas conseguiu resultados. Sobre a presença do capital angolano em Portugal, quando havia um silêncio do regime, ela não se cansava de falar. Se for a Angola, vê que a admiram muito por isso. E é também admirada em países como a Etiópia, onde chegou a receber uma condecoração.”
Apesar da correria “do querer ir a todas” e de como isso sacrificava a vida pessoal dos que com ela trabalhavam, Maria Manuel Bandeira diz: “Ninguém lhe vai dizer que é impossível trabalhar com a Ana. Porque não é.” Claro que admite haver laços de amizade que podem toldar a caracterização que faz da amiga e antiga “patroa”. Mas há coisas, diz, de que não se esquecem. Como quando a sua filha mais velha trabalhava com Ana Gomes, em Jacarta, e houve uns tiros à secção de interesses. “Durante dois ou três meses, a Ana pô-la a dormir na casa de diplomatas e só permitia que ela se deslocasse no carro diplomático.” Recorda-o, e ainda hoje, aos 67 anos, se emociona. Quando fala disso ou de como Ana Gomes nunca fez distinção entre “o corpo diplomático e o pessoal local”: “Quando tínhamos jantares, a pessoa que ela sentava sempre à sua direita era o motorista”.
Nada mostrou mais a sua capacidade de ser amada e odiada do que as suas posições sobre o Benfica ou sobre Rui Pinto. Luís Filipe Vieira nunca lhe perdoou as provocações. Não deixa de ter piada que em miúda a socialista tenha sido atleta do Benfica. E meio país atacou-a por ter ido à cadeia visitar o hacker português que roubou emails e ficheiros informáticos e que expôs online alguns dos podres do mundo do futebol. Ana Gomes nunca dirá que a sua posição pública não é a correta. Sempre dirá que o mundo precisa de pessoas como Rui Pinto, para combater os crimes maiores, o poder das elites, e as movimentações de dinheiro “sujo”. É de opiniões fortes e extremadas…
Opiniões que lhe têm valido a comparação com uma personagem recente da política nacional, que já se alinhou para a corrida a Belém: André Ventura. Charles Tannock sabe bem o que são populistas, ele que foi colega de Nigel Farage no Parlamento Europeu e que é membro do Partido Conservador de Boris Johnson. Ana Gomes é populista? “Populismo é encontrar soluções demasiado simples para questões demasiado complexas, e ela nunca julgou que os problemas pudessem ser resolvidos com formulações simples”, defende. Talvez seja mais uma questão de estilo: o da crítica rápida e nem sempre tão sustentada. Mas a comparação pode até ser-lhe útil, caso avance para Belém e queira roubar votos aos descontentes do sistema – o apoio do PS, esse, é ponto fora da equação.
BI
Origens
Ana Maria Rosa Martins Gomes nasceu em Lisboa, a 9 de fevereiro de 1954, signo Aquário
Família
É casada com António Franco (embaixador e ex-chefe da Casa Civil de Jorge Sampaio) e tem uma filha, Joana, nascida em 1975, do seu primeiro casamento com António Monteiro Cardoso
Percurso académico
Licenciou-se em Direito, pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, em 1979
Percurso profissional
Ingressou na carreira diplomática em 1980 e foi eurodeputada (eleita pelo PS) durante 15 anos
Amigos
Ferro Rodrigues, Jorge Sampaio, Vieira da Silva, Edmundo Martinho, José de Freitas Ferraz
Inimigos
Isabel dos Santos, Teixeira dos Santos, José Sócrates, Luís Filipe Vieira, José Miguel Júdice, Paulo Portas, Aguiar Branco
Gostos
É admiradora de ópera, gosta de “jardinar”, ler ao sol, nadar, brincar com os netos e andar de bicicleta (comprou uma elétrica, aconselhada por Basílio Horta)
Grandes combates
1972
O início de tudo
No princípio, foi a Revolução. Ana Gomes tinha acabado de completar 20 anos quando se dá o 25 de Abril. Esteve no Largo do Carmo e, mais tarde, em Caxias. Foi um momento definidor de tudo o que ela viria a seguir. Depois de passar pelo Movimento Associativo dos Estudantes do Ensino Secundário de Lisboa, Ana Gomes integrou, logo nos primeiros meses de curso, na Faculdade de Direito da Universidade Clássica de Lisboa, os Comités de Luta Anti-Colonial, grupos de contestação ao regime que iam beber inspiração nas intervenções inflamadas do MRPP. Ali, conhece o primeiro marido, António Monteiro Cardoso (desta relação, nascerá a sua única filha, Joana); foge à PIDE, leva pancada e acaba suspensa da faculdade juntamente com um grupo de ativistas do MRPP, depois de o carro do então diretor da faculdade, Pedro Soares Martínez, aparecer virado ao contrário. A carreira diplomática, que segue a partir de 1980, só foi possível porque a ditadura chegara ao fim. Embaixadoras e juízas era um caminho vedado às mulheres até esse momento.
1999
Timor Livre
Tinha 28 anos quando Ramalho Eanes a convidou para assessora diplomática do Presidente da República e, em Belém, Ana Gomes encontra-se definitivamente com a causa timorense. “Além de Timor e Macau serem obrigações constitucionais do Presidente, ambas as questões eram um desígnio de Eanes”, lembrava ao Público, há dois anos. Chega a Jacarta em 1998, ainda o referendo à independência era uma miragem. Foi uma mulher entre homens, uma civil entre militares, mas pôs o pé na porta. Aproveitou até à exaustão o espaço mediático que tinha à sua disposição, pressionou os interlocutores diplomáticos indonésios – Ali Alatas, então ministro dos Negócios Estrangeiros, sentiu de perto essa pressão – e ensinou os timorenses a falar publicamente num sentido e a votar discretamente no oposto. “Quando os funcionários públicos timorenses eram pressionados pelos indonésios para assinarem papéis de apoio à Indonésia, a aceitarem arroz e a pôr bandeirinhas, eu aconselhava-os a dizerem que sim e, depois, no dia das eleições a votarem de acordo com a sua consciência”, contou ao Público. Foi a sua causa maior na passagem pela diplomacia.
2002
A vez do PS
Timor deu-lhe o palco, Ferro Rodrigues estendeu-lhe a mão e Ana Gomes lançou-se na política partidária. Para trás ficava uma carreira diplomática de quase 20 anos. Em novembro de 2002, no final da missão em Jacarta, Durão Barroso ainda a desafiou a escolher o próximo destino, mas Ana Gomes recusou. Durão insistiu, tentou puxá-la para o PSD, e a embaixadora voltou a dizer “não”. Numa disputa ao centro por aquela que era “a” figura pública na viragem do milénio, Ferro antecipou-se e venceu a corrida. Ana Gomes entrou pela porta grande, diretamente para a direção nacional do PS. As setas, acreditam fontes próximas, apontavam para o Palácio das Necessidades, ia ser a próxima ministra dos Negócios Estrangeiros. E os planos até eram outros: a embaixadora queria suspender a carreira, acompanhar o marido, o embaixador (jubilado) António Franco, no seu novo posto, no Brasil, e ia dedicar-se ao doutoramento. Saiu tudo ao contrário. Ana Gomes deixou a Indonésia a 8 de fevereiro de 2003 e a 10 iniciou funções como dirigente nacional do PS. Bruxelas veio logo a seguir.
2008
Os voos da CIA
Os voos da CIA colocaram-na em rota de colisão com a direção do PS. Em Bruxelas, a eurodeputada socialista investigou a passagem pelo espaço aéreo nacional e a utilização da Base das Lajes, nos Açores, para o transporte de presos vítimas de tortura, em voos da agência dos EUA. Chegaram a perguntar-lhe: “Não queres ser reeleita, pois não?” Ana Gomes viu a sua candidatura à Câmara Municipal de Sintra, em 2009, como uma imposição de José Sócrates. Era a forma de afastá-la dos holofotes.
2020
A aliada de Rui Pinto
Há anos que Ana Gomes fazia denúncias sobre a origem do dinheiro com que os angolanos tinham começado a entrar nos bancos e nas empresas portuguesas. Nada aconteceu até rebentar o Luanda Leaks. A revelação de que Rui Pinto era o autor da fuga de informação que expôs os negócios suspeitos de Isabel dos Santos levou-a a visitar na prisão o hacker português que ela sempre defendeu publicamente.
2021
O último combate
Entre o “fator André Ventura” e a “rebelião contra Marcelo”.
Se Ana Gomes avançar, este poderá ser o último combate político da sua carreira. Aos 66 anos, a socialista continua a “refletir” sobre uma possível candidatura à Presidência da República, sem data marcada e “sem pressa” para anunciar a decisão. Marcelo deve estar na corrida, André Ventura já garantiu que não faltará à chamada. E é também sobre esse conjunto de figuras que Ana Gomes reflete: avançar contra o “candidato do regime” e mostrar uma alternativa a Marcelo, ao mesmo tempo que se apresenta como um contrapeso da personagem antissistema, que é também rosto da extrema-direita em Portugal? Ou ficar fora da corrida, agarrando-se ao capital político e mediático que ela acumulou para continuar a desempenhar o papel de moralizadora do sistema a partir da bancada? Uma coisa parece certa: se avançar, estará por sua conta. O PS parece pouco disponível para servir de carro de apoio a uma candidatura protagonizada pela sua ex-eurodeputada.