“Falando daquelas semanas de final de 2018, André Ventura recorda: «Não tínhamos dinheiro, não tínhamos pessoas, não tínhamos nada». As únicas bases de partida disponíveis são a sua rede pessoal de amigos de juventude e dos colaboradores conhecidos em Loures.
André Ventura volta de imediato a falar com João Gomes de Almeida, ao qual pede uma ajuda profissional para criar o partido, trabalhando a imagem e a comunicação rumo às eleições. O amigo aceita, de novo, o desafio, convencido de que existe uma janela de oportunidade para uma proposta política como o Chega. Para o publicitário, todavia, a janela é representada menos pela ausência em Portugal de um partido populista à europeia ou pelo crescente abstencionismo e mais pelo estado em que se encontra o centro-direita português neste final de 2018. Para Gomes de Almeida, a ausência de um Paulo Portas na área liberal-conservadora e a saída de cena de Pedro Passos Coelho no centro social-democrata acentuaram a moderação e o enviesamento à esquerda de uma área política desde sempre órfã de uma liderança de direita. Esta é a oportunidade que André Ventura deve aproveitar, marcando a sua identidade política oriunda da direita PSD, na linha já experimentada em Loures. Assim, a criação da marca André Ventura e da marca Chega é pensada muito em termos nacionais e não internacionais. Não houve um grupo de pessoas que se sentou à mesa para criar um partido populista de direita radical à portuguesa. Aliás, Gomes de Almeida confessa que para a construção de uma imagem moderna de direita nacional inspirou-se também no documentário «Nasceu uma estrela», realizado por Jorge Costa e Daniel Oliveira para o décimo aniversário do Bloco de Esquerda, pois o BE é o melhor exemplo de marketing político moderno em Portugal. Neste amplo processo de definição de uma nova direita portuguesa, André Ventura vai buscar inspiração a diferentes segmentos desta área polimorfa e não representada politicamente, inclusive, nos pensadores tradicionais como Jaime Nogueira Pinto. Nesta fase inicial, contudo, é menos a atenção de Ventura por estes intelectuais que a deles para com Ventura. O futuro dirigente do Chega, Salvador Posser de Andrade — com um passado no CDS e no PND de Manuel Monteiro — recorda ter sido alertado para a figura de Ventura, em Outubro de 2018, por Jaime Nogueira Pinto. Este último não conhecia pessoalmente o líder do Chega, mas seguia-lhe o desempenho político desde as autárquicas de Loures. De facto, já em Fevereiro de 2019, Jaime Nogueira Pinto declara abertamente o seu interesse em André Ventura e no seu partido como possíveis inovadores da direita portuguesa, à luz do facto de que «pelo menos, não há ali medo de rótulos nem a preocupação doentia de só falar de políticas e não de Política. Já é um princípio» (Observador, 3 de Fevereiro de 2019).
Embora seja clara a janela de oportunidade representada pela crise do centro-direita, André Ventura não quer limitar o seu campo de acção à direita do espectro político. Para ele, é evidente que o Chega, liberal na economia e conservador nos valores, se coloca à direita do CDS, devido à cedência deste último ao politicamente correcto, como demonstrado pela gestão Cristas em Loures. Contudo, o intuito de se tornar força de governo com capacidade de mudar o sistema faz com que o espectro eleitoral da direita tradicional seja demasiado pequeno. Neste sentido, Ventura tem ideias claras acerca do eleitorado potencial do Chega. Três são os segmentos que lhe interessam: a direita clássica do mundo rural e das elites mais conservadoras; as bases populares do interior do país; os subúrbios das grandes cidades. Na sua opinião, o mundo rural e as elites conservadoras, por enquanto ainda afectas ao PSD e CDS, transitarão naturalmente para o Chega, mesmo as que não gostam do seu radicalismo, quando o partido se tornar o maior competidor do PS e do Bloco de Esquerda. O grande desafio são os eleitores das zonas do interior, como Trás-os-Montes e Portalegre, dos subúrbios de Lisboa, Porto, Braga e do Algarve, abandonados pelo governo central, mas ainda ligados às promessas do PS e PSD de pensões, subsídios, aumento dos salários. O Chega deve tornar-se intérprete das insatisfações destes eleitores, porque, nas palavras de André Ventura, «aí estará a nossa vitória eleitoral. Eu digo muitas vezes aos nossos dirigentes — e sei que muitos deles às vezes não concordam comigo — no dia em que ganharmos os subúrbios ganhamos o país. No dia em que os subúrbios estiverem maioritariamente connosco, nós conseguiremos dar uma grande quebra à esquerda e ao centro esquerda».
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Todos os futuros dirigentes do Chega recordam esta vontade de falar a um público muito mais amplo. Para Nuno Afonso, o Chega, desde o princípio, dirigiu-se ao espectro amplo do centro-direita e da abstenção, mas querendo falar também aos descontentes da esquerda, principalmente socialistas e comunistas. Para Luís Filipe Graça, o liberalismo económico do Chega pode ter atraído pessoas das classes altas, mas, dentro do partido, foi sempre entendido como uma fórmula direcionada às classes baixas, inclusive ao eleitorado de esquerda, como alternativa ao estatismo de BE, PCP e PS, que mantêm a população na pobreza crónica. O discurso de Ventura, centrado nos temas sociais e na crítica à elite política, procura este eleitorado porque, nas palavras de Graça, «é evidente que o indivíduo que vive na Expo ou aí na Lapa não é tão sensível se lhe assaltam a casa. Tem o filho no colégio privado e o papá vai buscá-lo. Quer dizer, não é tão sensível a estes problemas. […] Quem está instalado no sistema e vive com três, quatro ou cinco mil euros por mês, deste sistema que está montado, desta república, estes não votam em nós. […] Mas quem no dia-a-dia vive no bairro, percebe perfeitamente a linguagem do André. E é esse o nosso eleitorado. É do lado dessas pessoas que nós queremos estar». O testemunho de André Ventura vai no mesmo sentido: «Quem vive no centro de Lisboa, quem vive em Alvalade, quem vive na Lapa, em Belém, em Cascais, não percebe quando eu falo da insegurança que se vive nos subúrbios. À noite, a maior parte das famílias que eu conhecia [em Mem Martins] não queria sair de casa. Isso não acontece aqui no centro de Lisboa, em Cascais, no centro de Sintra, na vila mesmo, mas nos subúrbios havia muita gente, gente mais velha, e familiares meus, que não saíam à noite por receio. Este receio estava muito ligado a questões raciais, étnicas. Isso marcou muito o meu crescimento aí.» Também para Nelson Dias da Silva, um dos alvos do Chega é o eleitorado de esquerda que, nos temas da crescente carga fiscal, da abertura das fronteiras, da pressão imobiliária exercida por especuladores internacionais, foi abandonado pelos partidos progressistas, com as suas agendas pós-modernas das micro-causas, das políticas identitárias, das minorias, dos direitos dos migrantes. Na mesma linha, Manuel Ferreira realça como o futuro do Chega será representado muito pelos dois milhões de micro-empresários portugueses e suas famílias das classes média e média-baixa, preocupados com a crise económica, com os impostos e não com os temas pós-modernos das minorias, das identidades, dos racismos, pois são pessoas que partilham diariamente os lugares de trabalho com empregados de todas as etnias.
Uma leitura mais crítica do posicionamento inicial do partido é dada por um dos fundadores, posteriormente saído do partido em polémica. Para Pedro Perestrello, o Chega viu-se obrigado a colocar-se à direita do CDS devido ao facto de o espaço de centro-direita estar já apinhado de concorrentes, com os tradicionais PSD, CDS e os recém-chegados Aliança e Iniciativa Liberal. Saído do PSD, André Ventura manteve-se convictamente um social-democrata, mas entendeu que o único espaço livre era à direita do CDS, onde podia aproveitar as credenciais de radicalismo conquistadas em Loures. Este facto cria um curto-circuito no projecto Chega, desde a sua origem: por um lado, congrega elementos nacionalistas anti-sistema e, por outro, deseja integrar o sistema, com uma postura, quando muito, reformista. Este curto-circuito é gerido por André Ventura de forma pragmática, procurando evitar que esta tensão originária provoque o colapso do projecto, mas também que este resvale para o radicalismo anti-sistema.
Independentemente das interpretações, na sua alvorada, o projecto Chega está focado nas variáveis nacionais que podem determinar o seu sucesso e não na reprodução de modelos estrangeiros, nomeadamente dos populismos de direita europeus e americanos, de que será constantemente acusado. Esta constatação é bastante consensual entre os dirigentes da primeira hora do partido. Referindo-se aos modelos europeus, por exemplo, Nuno Afonso afirma: «Não há propriamente um interesse da nossa parte. Nós não vamos atrás de ninguém, nem eles vêm atras de nós.» Na mesma linha, Luís Filipe Graça reconhece que, no que toca às referências estrangeiras, «na base não há uma grande preocupação. Estamos muito mais focados nos problemas nacionais». A prevalência do factor nacional na estratégia de Ventura é testemunhada por Diogo Pacheco de Amorim, segundo o qual, nas muitas conversas tidas com o presidente do partido, o ponto central sempre foi o desgaste inevitável, nos próximos oito anos, do PSD e do CDS, porque «trazem vícios muitos antigos, trazem maneiras de pensar muito enraizadas, que não estão de acordo com a evolução das coisas do mundo de hoje. Portanto estão condenados. E nós estamos em condição de ter a plasticidade e a firmeza suficiente de ir recebendo e ir reestruturando a direita».
![O novo livro do investigador Riccardo Marchi, estudioso das direitas radicais portuguesas](https://images.trustinnews.pt/uploads/sites/5/2020/06/Capa-ANovaDireitaAntiSistema-712x1080.jpg)
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Portanto, o projecto tem um rosto, mas ainda não tem coluna vertebral. Relativamente inócua na fase inicial, protagonizada apenas pelo manípulo de fundadores, a conflitualidade interna já dá sinais de agravamento e multiplicação, tanto a nível central como local, e pode prejudicar seriamente a capacidade do Chega de atrair e fixar recursos humanos qualificados, necessários ao fortalecimento do esqueleto do partido. O problema é bastante melindroso porque absorve muitas energias da actual liderança, que deveria empenhar-se, pelo contrário, no alargamento e selecção da massa cinzenta do partido. Esta tarefa é considerada indispensável para apurar a linha política do Chega em múltiplas dimensões e orientar, assim, a base do partido, ainda demasiado formatada nas redes sociais e atraída pelas polémicas animadas pelo presidente. O fracasso na selecção da elite interna pode prejudicar, a longo prazo, o processo de transformação do Chega de partido de protesto para partido com vocação de governo, com percentagens eleitorais sólidas de dois dígitos para a refundação da República.
O processo de selecção da elite interna levanta outra questão sensível: a permeabilidade da estrutura partidária, ainda frágil às infiltrações de grupos organizados, com o intuito de colonizar as distritais e as concelhias do partido e, eventualmente, proceder à escalada da direcção nacional. O perigo percepcionado provém tanto de grupos oriundos dos partidos de centro-direita, quanto da área de extrema-direita. O primeiro caso é muito mais consistente que o segundo e os efeitos temidos na identidade do partido justificam uma certa resistência dos dirigentes da primeira hora em abrir as suas fileiras às ambições legítimas dos filiados mais recentes. O segundo caso, embora irrisório, desperta a atenção da comunicação social, com consequências na imagem do Chega e na sua capacidade de atracção de quadros qualificados. A situação alimenta duas orientações distintas: a dos que, com Ventura entre eles, encaram positivamente a multiplicação de tendências internas ao partido e a dos que preferem um controlo de vértice mais apertado e uma maior homogeneidade interna. Em qualquer dos casos, as eleições autárquicas de 2021 são consideradas uma boa oportunidade para a selecção da classe dirigente: é esperado que a mobilização para a constituição das listas autárquicas e para as campanhas eleitorais funcione como seleccionador natural, assim como a formação das distritais permitiu a emersão de quadros territoriais interessantes.”