Entrar no Parlamento, subir aos Passos Perdidos, participar na sessão de tomada de posse, conhecer o gabinete de trabalho, tomar o pequeno-almoço com o secretário-geral da Assembleia da República, cumprimentar um grupo de amigos que ali veio dar o apoio, voltar ao gabinete, tirar uma foto, dar uma entrevista, voltar aos Passos Perdidos, dar outra entrevista, enfrentar a primeira conferência de imprensa, tirar mais fotos, dar a terceira entrevista. Passam poucos minutos das 11 horas da manhã, pouco mais de uma hora desde que Joacine Katar Moreira entrou pela primeira vez no Parlamento como deputada eleita pelo Livre. Está em piloto automático. O assessor tenta coordenar a esmagadora agenda daquela manhã – mas é tudo novo. “Isto ainda não é bem a realidade”, diz Joacine já de olhos postos na multidão de jornalistas que esperam a sua chegada. O desabafo soa a súplica.
Pouco antes, a primeira imagem era a de mais uma manhã normal em Lisboa. Pura ilusão. São 8h15 e Joacine leva a filha pela mão até ao infantário. A criança, de três anos, para e contempla cada planta com que se cruza no caminho até ao destino habitual. “Ela adora tudo o que são flores e plantas”, conta a deputada. Essa é parte da rotina que a deputada espera poder manter nos próximos quatro anos. Mas a mudança já se vai tornando óbvia. A primeira nota de novidade é o assessor pessoal da deputada, a companhia daquela manhã.
Rafael Esteves Martins desdobra-se em chamadas telefónicas e mensagens escritas; tenta algum sucesso na complexa missão de conciliar as agendas de todos os jornalistas que querem falar com uma das novas figuras do Parlamento ao mesmo tempo que respeita a rotina habitual da deputada. Às 9 horas há um primeiro direto para a rádio. “Estamos 15 minutos atrasados, temos mesmo de acelerar”, diz pela terceira vez. O passo segue lento até a criança ser entregue, a partir dali tudo será mais rápido.
O “ódio” dos “olhares ácidos”
Joacine tem carta de condução, mas não pega no carro. Da zona dos Anjos até à baixa lisboeta, segue, por isso, de metro. É outra nota de aparente normalidade numa vida que levou uma volta radical depois de o Livre ter conquistado o seu primeiro lugar no Parlamento, a 6 de outubro.
Desde esse dia, a historiadora passou a “olhar bem para o espelho antes de sair de casa” – porque, hoje, goste-se ou não, a imagem ganhou um peso que não pode ser desprezado por quem desempenha funções públicas. Os “olhares ácidos” são outro sinal da mudança. Por enquanto, estão confinados às redes sociais e ainda não saltaram para o espaço público, mas Joacine já admite que pode ter de vir a alterar rotinas para evitar confrontos inesperados.
“O ódio é feito em comentários, de forma pública”, aponta, a caminho do edifício da Assembleia. “Mas o amor e o carinho, não”, nota. “Tenho recebido extensas mensagens de apoio que chegam sempre através de comunicações privadas, como se fosse muito mais fácil entrar nas redes sociais e fazer um comentário negativo, descontextualizado” do que manifestar publicamente esse apoio.
Um dos casos em que foi visada teve que ver com a sua gaguez. Houve quem sugerisse que tudo não passava de estratégia mediática, um truque pensado e montado para chamar a atenção dos media e, com isso, ganhar mais uns votos. A tese ganhou asas nas redes, ao ponto de a factualidade (ou não) do argumento ter sido alvo de uma avaliação jornalística. Joacine não gostou de ver.
Diálogo? Só com “os democratas” do Parlamento
Há corredores sem fim, salas que se multiplicam, umas atrás das outras, caras e mais caras – algumas reconhecíveis, outras absolutamente novas. Faltam dois minutos para as 10 horas quando Joacine entra na sala do plenário da Assembleia da República. Há muitas estreias entre os 93 deputados dos vários partidos que ali estão pela primeira vez. Isabel Moreira aproxima-se. As duas deputadas dão um longo abraço e ficam alguns minutos à conversa, de pé, junto ao lugar que a deputada do Livre vai ocupar. É na segunda fila de cadeiras, mesmo por trás da direção da bancada socialista. A sessão começa, Ana Catarina Mendes – nova líder da bancada parlamentar do PS – assume as honras da casa e convida Eduardo Ferro Rodrigues para ocupar o seu lugar na mesa da presidência. É a história de mais uma tomada de posse. A cena dura menos de 10 minutos. Mais relevante será tudo o que vier a seguir.
Na noite eleitoral, a deputada única do Livre apresentou-se como o rosto da “esquerda anti-fascista” e “anti-racista” no Parlamento. Disse mesmo – quando ainda não estava garantida a eleição de André Ventura, pelo Chega –, que “não há lugar para a extrema-direita” na Assembleia da República. Mas Ventura acabaria eleito exatamente pelo mesmo círculo de eleitores que colocou Joacine no Parlamento, os de Lisboa. E, agora, haverá margem para diálogo entre os dois deputados que partilham (também com João Cotrim Figueiredo, da Iniciativa Liberal) esse estatuto de estreantes absolutos naquela casa? “Vamos trabalhar com os partidos democratas que defendem os valores do 25 de abril”, responde.
O Livre preparou o programa eleitoral à volta de duas ideias centrais: defesa da justiça social e defesa da justiça climática. Sendo duas áreas “igualmente importantes” para delinear o trabalho dos próximos quatro anos, é preciso começar por algum lado. E a primeira proposta legislativa tem sempre essa carga simbólica; serve, de alguma forma, de luz para o caminho que se pretende percorrer daí em diante. Ora, no caso do Livre, Joacine revela que “o aumento do salário mínimo” é a prioridade, precisamente porque serve de “elemento agregador” daqueles dois planos.
Parte desse trabalho vai ser feito no gabinete reservado (temporariamente) para o Livre no primeiro piso do edifício novo. É, ainda, um espaço sem muito para contar – uma secretária, um computador, uma mesa redonda para algumas reuniões de trabalho. Essa parte da história ainda está toda por contar. Encostada a uma das paredes do gabinete, enquanto espera que uma equipa de televisão esteja a postos para começar mais uma muitas entrevistas que dará naquelas horas, o olhar de Joacine parece viajar por alguns momentos para outro lado – procura recordar-se do que está na origem de toda aquela agitação. Nos corredores do Parlamento, a deputada confessa-nos que este dia inaugural começou uma hora e meia mais cedo que o habitual.
Eram 5h30 da manhã e o despertador já tocava. Joacine Katar Moreira guardou esse tempo para “meditar” e para reler as mensagens que recebeu meses antes, quando ainda ponderava a candidatura a um lugar na Assembleia da República pelo Livre. Na manhã em que ia tomar posse como única deputada eleita pelo seu partido, o olhar de Joacine parou numa mensagem em particular. “Estamos a ser amordaçadas, se houver alguém em Portugal que nos possa representar, nós vamos sentir que temos voz”, repete à VISÃO. Combater as “políticas machistas, misóginas, homofóbicas” e para “reduzir as desigualdades sociais”, é essa a sua missão dos próximos quatro anos.