O ex-ministro apresentou-se esta quarta-feira no Estabelecimento Prisional de Évora para cumprir uma pena de prisão efetiva por três crimes de tráfico de influência. A juíza do Tribunal de Aveiro tinha dado três dias a Armando Vara para se apresentar no Estabelecimento Prisional de Évora a fim de começar a cumprir a pena de cinco anos de prisão a que foi condenado, em 2014, no âmbito do processo Face Oculta. Mas esse processo está longe de ser a única “nódoa” na sua vida pessoal e profissional.
Na verdade, os problemas públicos de Armando Vara começaram ainda no ano 2000, quando foi apanhado numa polémica sobre alegadas irregularidades na Fundação para a Prevenção e Segurança, que criara em 1999 com recurso a fundos estatais, enquanto era secretário de Estado da Administração Interna. A polémica deu origem a um processo judicial que acabaria arquivado, e foi o seu passaporte de saída do governo de António Guterres quando titulava a pasta da Juventude e do Desporto (depois de ter sido ministro adjunto de Guterres, com os pelouros da Juventude, Toxicodependência e Comunicação Social). A oposição acusava-o de ter montado um saco azul para financiar o PS, Fernando Gomes, à data ministro da Administração Interna, criticou-o publicamente, e Jorge Sampaio, então presidente da República, ameaçava tomar medidas caso Vara não apresentasse voluntariamente a demissão.
Vara acabaria mesmo por se demitir, mas não sem antes ser protagonista de um episódio caricato: a Renascença avançou que estava em ruptura com António Guterres e tencionava demitir-se e, quando o ministro desmentiu a notícia, a Renascença não teve pudores em divulgar que a fonte da notícia tinha sido o próprio Armando Vara.
O transmontano de Vinhais que chegou a dirigente socialista quando era um simples empregado bancário numa agência da Caixa Geral de Depósitos (CGD) de Trás-os-Montes, acabaria por ter um regresso badalado à vida pública quando, em 2005, passou de um cargo anónimo de diretor na CGD a administrador do banco público. Para ocupar esse cargo, precisava de ter uma licenciatura: concluiu-a três dias antes de ser nomeado para o cargo pelo governo de José Sócrates, na mesma universidade onde se licenciou o então primeiro-ministro (Universidade Independente).
Mas as polémicas não se ficaram por aqui. Em fevereiro de 2008, Vara regressou às páginas dos jornais, com o convite de Carlos Santos Ferreira para o acompanhar na administração do banco privado BCP. A “transferência” acabaria, em muitas publicações, por ser comentada como um verdadeiro “salto à vara”: é que, comparando com o seu salário anterior na CGD, o seu vencimento tinha triplicado; se comparado com a fase em que era um simples bancário em Trás-os-Montes o aumento foi de mais de 1000 por cento.
Ainda a opinião pública questionava esta progressão quando se tornou um dos principais protagonistas do processo Face Oculta, que investigava uma alegada rede de corrupção que visava beneficiar o grupo empresarial de um sucateiro (Manuel Godinho) nos negócios com empresas privadas e com o sector empresarial do Estado. Vara foi então interrogado por suspeitas de ter influenciado as decisões de Mário Lino e Ana Paula Vitorino. Clamou inocência, disse que apenas recebera de Manuel Godinho um equipamento desportivo do Esmoriz e uma “caixa de robalos”, mas mais uma vez viu-se forçado a demitir-se. Só que, desta vez, o fim deste processo não foi o arquivamento: em 2014, os juízes do Tribunal de Aveiro deram uma sentença inédita. Pela primeira vez um ex-ministro era condenado a uma pena de prisão efetiva por tráfico de influências. Vara saiu da sala de audiências em choque.
O ex-ministro ainda tentou todas as vias possíveis de recurso – sem êxito. Até que em 2018 o Tribunal Constitucional deu o veredicto final: Vara seria mesmo condenado por alegadamente ter movido a sua influência junto de titulares de cargos públicos a troco de 25 mil euros do sucateiro e outras contrapartidas.
Insolitamente, esta pena de prisão não acabará com todos os seus problemas. E pode até nem ser a última. Vara é um dos acusados da Operação Marquês, que tem como principal arguido o seu amigo e ex-primeiro-ministro José Sócrates. O Ministério Público concluiu que o ex-ministro e ex-administrador da CGD e BCP recebeu 1 milhão de euros numa conta conjunta com a filha, Bárbara Vara, por ter dado o aval a um negócio ruinoso para a CGD: o financiamento bancário de 200 milhões de euros para o empreendimento Vale do Lobo, no Algarve. Chamado a interrogatório, o oitavo arguido da Operação Marquês limitou-se a isentar a filha de culpas (num segundo momento, depois de a filha ser constituída arguida), não revelando porque razão tinha recebido aquele dinheiro numa conta aberta na Suíça, em nome da Vama Holding. Para os investigadores, Vara não terá sido o único a ter uma contrapartida pela aprovação deste crédito; José Sócrates também terá recebido 1 milhão de euros. Quer uma quer outra transferência foram intermediadas por Joaquim Barroca, ex-patrão do Grupo Lena.
E este financiamento de Vale do Lobo poderá não ser o único financiamento ruinoso pelo qual Armando Vara terá de responder enquanto ex-vice-presidente do banco público: em maio de 2012, a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM) condenou-o a uma multa de 50 mil euros por negligência, por não ter impedido um conjunto de ilegalidades na rede comercial da CGD. O Ministério Público também está a investigar, num processo em que ainda não foram constituídos arguidos.
Fora dos tribunais e das considerações da opinião pública ficaram as escutas telefónicas extraídas do Face Oculta, que mostravam conversas entre Vara, Sócrates e outros intervenientes sobre um alegado plano para controlar a comunicação social. O então presidente do Supremo Tribunal de Justiça, Noronha Nascimento, mandou destruí-las.
Entretanto, novos dados constantes da Operação Marquês, e divulgados pela VISÃO, mostram que quando era administrador do BCP Vara terá sido chamado por Sócrates para intermediar uma tentativa de compra do jornal Público. As revelações foram feitas por Paulo Azevedo, quando estava a ser ouvido como testemunha naquele processo. O filho de Belmiro de Azevedo – fundador do grupo Sonae – contou que numa altura em que Sócrates lhe costumava ligar zangado com algumas notícias do Público, ter-lhe-á dito que “tinha um excelente comprador” interessado no Público. Para saber quem, Paulo Azevedo deveria ir falar com Armando Vara. Tal não foi a surpresa quando, na sede do grupo BCP, Vara lhe terá dito que o interessado era o grupo Lena – anos mais tarde visado na Operação Marquês. Também José António Saraiva, ex-diretor do Sol, já veio dizer ter certezas de que Armando Vara usou o seu poder no BCP para “decapitar” o semanário, depois de publicadas as primeiras notícias sobre o caso Freeport.
A proximidade entre Vara e Sócrates vem de longe. Ambos foram sócios, ainda nos anos 80, da Sovenco, uma empresa de importação de pneus com sede nuns escritórios da Amadora do construtor José Guilherme. Estes dados constavam de uma investigação sobre as relações entre construtores da Amadora e o poder local – que acabou arquivada.
Pelo meio destes atribulados processos em que foi ou é suspeito de crimes como tráfico de influência, corrupção ou branqueamento de capitais, Armando Vara teve ainda de gerir um processo movido por António Morais. O ex-professor de José Sócrates pedia uma indemnização a Vara e à ex-mulher por ter suportado despesas com uma filha que afinal não seria sua, mas do ex-ministro. Nem por acaso, Morais também tinha estado envolvido na primeira polémica, em torno da Fundação para a Prevenção e Segurança, quando era presidente do GEPI. Também o arquitecto Fernando Pinto de Sousa, pai de José Sócrates, foi contratado pelo GEPI, no período em que aquele era dirigido por António Morais, para fazer a fiscalização de dez obras, adjudicadas por aquele serviço do Ministério da Administração Interna.
Nos últimos meses, Vara assumiu a dianteira de um grupo de arguidos que quis afastar Carlos Alexandre da Operação Marquês. Depois disso, naquela que terá sido a sua última grande entrevista antes da prisão, foi à TVI clamar inocência e disparar novamente contra o juiz, acusando-o de vingança e perseguição, por alegadamente não o ter ajudado a ser diretor do Serviço de Informações e Segurança (SIS).