Apresenta-se como um manual de consulta rápida, mas Inimigos de Salazar, da historiadora Irene Flunser Pimentel, recentemente posto à venda (ed. Clube do Autor, €22), acaba por ser um livro com 496 páginas. Não havia volta a dar. Formam uma alargada multidão as figuras mais e menos conhecidas que arriscaram tudo contra a ditadura do Estado Novo, e cujas histórias, ainda assim, são resumidas ao essencial. Trata-se de um escrutínio minucioso que inclui um quarteto de inimigos que apanhou Salazar de surpresa. É deles que a seguir se fala, bebendo na investigação histórica de Irene Pimentel.
Comecemos por um republicano de verve acesa, Francisco da Cunha Leal, o qual esteve ao lado de Salazar no apoio ao golpe de 28 de Maio de 1926, que instaurou a ditadura militar. Era preciso acabar com o “caos” da I República, dizia. Mas, quatro anos depois, Cunha Leal afastou-se do novo regime e chamou “ditador” a Salazar. E este passou a encará-lo “como seu inimigo pessoal”. Não era para menos: Cunha Leal quase conseguiu tirar Salazar do Governo.
Entraram em rota de colisão em 1930, quando Salazar era ministro das Finanças, e Cunha Leal governador do Banco de Angola. Tinha sido fixado um montante anual de 60 mil contos de subsídio estatal a Angola, mas Salazar, ao tomar conta da pasta, anulou, com retroatividade, o decreto criador da subvenção. Indignado, o governador do Banco de Angola publicou um opúsculo no qual afirmava que Salazar considerava as colónias “um cancro e um pesadelo” sem “ativo correspondente”. Em resposta, o ministro das Finanças divulgou uma “nota oficiosa de censura”, acusando Cunha Leal de manifestar “uma incompreensível oposição à política financeira de salvação nacional”. Por causa dessa nota, o chefe do Governo, general Ivens Ferraz, deu um ‘puxão de orelhas’ ao ministro das Finanças, dizendo-lhe, numa reunião, que “qualquer ato suscetível de alcance político ficaria subordinado” à sua “prévia aprovação”.
Salazar levantou-se para abandonar a sala, declarando que se demitia do Governo. Ivens Ferraz conseguiu demovê-lo. Ficou acordado que a delicada questão de Angola seria abordada num próximo Conselho de Ministros. E aí a discussão acentuou as clivagens entre os que estavam com Salazar e exigiam a demissão do governador do Banco de Angola e os apoiantes do chefe do Executivo que se opunham à exoneração de Cunha Leal.
Contaria Ivens Ferraz que Salazar, “com ar circunstancial de solenidade”, apresentou o pedido de demissão – como fez por várias vezes. Ao retirar-se, porém, só foi acompanhado pelo colega da Justiça, Lopes da Fonseca, como ele, antigo seminarista. Mas o Presidente da República, Óscar Carmona, impôs a continuação de Salazar no Executivo, o que levou à demissão do Governo de Ivens Ferraz – e à exoneração de Cunha Leal de governador do Banco de Angola. Em julho de 1932, Salazar tomou posse da chefia do seu primeiro Governo e começou o Estado Novo, contra o qual Cunha Leal conspirou sempre, entre prisões, deportações e amnistias políticas. Até na morte, contudo, Salazar lhe ganhou. Faleceram ambos em 1970, aos 81 anos, mas o ditador sobreviveu-lhe três meses.
Salazar? Um fraco
Também em 1932, Francisco Rolão Preto, figura culta e inteligente, oriunda do radicalismo monárquico, criou o Movimento Nacional-Sindicalista (MNS), inspirado no fascismo italiano de Mussolini. E os milhares de militantes que congregou em pouco tempo, os “camisas-azuis”, assustaram Salazar. A agenda do MNS, corporativista e antiplutocrática, preocupando-se com o fosso entre ricos e pobres, levou o ditador a dizer que o movimento liderado por Rolão Preto andava “paredes-meias com os comunistas”.
Surgindo num momento em que Salazar consolidava o poder e estruturava a sua União Nacional (UN), o MNS tentou penetrar nos meios operários, enquanto pugnava pela fascização do Estado. Rolão Preto concluiu que o ditador em funções era um fraco. Num opúsculo, retratou Salazar como um “formalista universitário”, longe do ideal-tipo de chefe carismático, “polarizador magnético dos homens”. Já com 30 mil apoiantes em 1933, os “camisas-azuis” eram um movimento a ter em conta – a ponto de Marcelo Caetano sugerir a Salazar que aproveitasse essa força militante. Mas o ditador preferiu outras vias: a repressão e a infiltração no MNS, para o dividir e o liquidar. E conseguiu. Logo em meados de 1933, José Cabral, líder do grupo de Coimbra, e outros organizaram-se numa linha de apoio a Salazar, dissidente da direção do MNS. Em Lisboa, mais dissidentes pró-salazaristas do nacional-sindicalismo começaram a publicar um jornal vespertino.
A 29 de julho de 1934, Salazar já se sentiu em condições de ordenar a dissolução do MNS, acusando o movimento de inspirar-se “em certos modelos estrangeiros”. A nota terminava com um apelo aos dissidentes do nacional-sindicalismo para que ingressassem “com pureza de intenções” na UN. E o Diretório Nacional-Sindicalista decretou, em agosto seguinte, o que o ditador queria – enfileirar no partido único salazarista. Rolão Preto, esse, nunca desistiu de combater Salazar, mesmo ao lado de republicanos de esquerda. Foi preso, viveu no exílio, mas quando morreu, três anos depois do 25 de Abril de 1974, era militante do Partido Popular Monárquico. Tinha 84 anos e, de certo modo, regressou às origens.
Na “mão” da PIDE
Salto no tempo. Em 1951, tudo parecia estar bem entre o general Francisco Craveiro Lopes e Salazar. O ditador escolheu o militar para suceder a Óscar Carmona, que falecera, como Presidente da República. Mas, três anos depois, já era percetível um conflito latente entre ambos. “A PIDE escutava e seguia Craveiro Lopes por todo o lado”, diz à VISÃO Irene Pimentel. Para a historiadora, a polícia política tinha o general “na mão”. Ou seja, não havia contacto do Presidente da República com militares oposicionistas que escapasse à PIDE. E cresceu no regime a suspeita de que Craveiro Lopes conspirava para afastar Salazar do poder.
Mas quem acabou afastado foi o general. Salazar antecipou-se, agradeceu de forma seca a Craveiro Lopes os “serviços prestados à Nação”, informando-o de que não seria reeleito para a Presidência da República. A escolha do ditador recaiu no almirante Américo Tomás que, mediante uma fraude em massa, foi eleito nas Presidenciais de 1958, contra o candidato da oposição, general Humberto Delgado. Este ainda escreveu uma carta muito dura a Craveiro Lopes, instando-o a “ser na verdade Comandante-Chefe das Forças Armadas e Presidente da República”. Que se saiba, não obteve resposta. Aliás, até à sua morte, em setembro de 1964, aos 70 anos, Craveiro Lopes manter-se-ia politicamente inativo.
Pouco depois, em 1961, o ministro da Defesa, general Júlio Botelho Moniz, engendrou um golpe palaciano. Em março, o general convocou o Conselho Superior do Exército e os chefes do Estado-Maior da Marinha e da Força Aérea para “apreciar a situação militar do Ultramar”. Na reunião, o ministro transmitiu o teor de uma carta enviada a Salazar, a avisá-lo de que as altas patentes das Forças Armadas desejavam uma mudança na política ultramarina do regime. Na tarde de 11 de abril, o Presidente da República, Américo Tomás, recebeu os ministros da Defesa e do Exército, que lhe sugeriram a demissão de Salazar, em nome do interesse nacional. Ficou marcada nova audiência para as 23h30, na residência de Américo Tomás, mas, antecipando-se, este informou Salazar e assegurou-lhe que recusaria o pedido de Botelho Moniz. Ao insistir na via legal, esperando que o Presidente da República fosse convencido a demitir o chefe do Governo, o ministro da Defesa levou ao fracasso a sua tentativa de golpe. E, enquanto aguardava a resposta do Chefe do Estado, Botelho Moniz retirou-se para umas curtas férias… Deu assim espaço, claro, para o contra-ataque demolidor de Salazar.