Num meme que tem corrido as redes sociais, vê-se o ex-dirigente e ex-ministro do PSD, Dias Loureiro, ilibado no processo do BPN, a dirigir-se a Armando Vara, ex-dirigente e ex-ministro do PS, condenado no processo Face Oculta: “Estudasses…” Dias Loureiro, jurista, formado em Coimbra, um dos homens mais influentes do cavaquismo, foi levado ao colo, até ao limite, pelo Presidente Cavaco Silva, quando, já envolvido no processo do BPN, ainda resistia como conselheiro de Estado. Armando Vara, que tirou, já depois de ter sido ministro, um curso de Relações Internacionais numa universidade privada, foi varrido do Governo de António Guterres por exigência do Presidente Jorge Sampaio. Os dois episódios talvez fossem o prenúncio de um karma que estabeleceu destinos diferentes, nas complicações de um e de outro com a Justiça: na mesma semana em que Dias Loureiro via o seu processo arquivado pelo Ministério Público (MP), o Tribunal de 2ª instância do Porto confirmou a pena de cinco anos a Vara. Mas nem o azar nem os estudos de cada um explicam tudo. Afinal, porque é que o social-democrata se safou e o socialista se tramou?
Nestas personagens, há muitos pontos em comum. Ambos são oriundos da província: de Aguiar da Beira, Dias Loureiro, de Vinhais, Armando Vara, e os dois têm origens familiares modestas. Ambos se impuseram nos corredores da política, em Lisboa, também sob a orientação de líderes vindos de fora: o primeiro, tendo por chefe um algarvio – Cavaco Silva. O segundo, um beirão – António Guterres. Dias Loureiro foi essencial nos bastidores do congresso social-democrata de 1985, na Figueira da Foz, para a vitória de Cavaco Silva no partido. Armando Vara, depois de ter pertencido à ala do PS alinhada com Jaime Gama, foi um dos “sub 40” de Guterres, após a ascensão do atual secretário-geral da ONU à liderança, em 1992. Os dois representaram uma lufada de renovação política: o primeiro fez parte de uma equipa lançada por Cavaco, com Fernando Nogueira, Durão Barroso, Ferreira do Amaral, Duarte Lima, Mira Amaral, Silva Peneda, Miguel Cadilhe, Álvaro Barreto, Leonor Beleza. O segundo foi proeminente na revoada socialista de Guterres, com António José Seguro, António Costa, Laurentino Dias, Carlos Zorrinho, Maria de Belém, Jorge Coelho e José Sócrates. No epílogo da semana passada, Vara acaba culpado de três crimes de tráfico de influências. E Dias Loureiro sai sob suspeita, mas sem provas, a propósito das supostas comissões, nomeadamente, na operação do BPN em Porto Rico.
Armando Vara, além de 25 mil euros de luvas, e presentes como um decantador Herdade Prata no valor de 685 euros e uma caneta e um relógio da marca Montblanc, recebeu do empresário do ramo da sucata, Manuel Godinho, uma caixa… de robalos frescos. Já sobre as culpas de Dias Loureiro, nos quase 40 milhões de euros “desaparecidos” no negócio da compra da empresa tecnológica porto-riquenha Biometrics, não se reuniu prova. Afinal, em Porto Rico, não há robalos.
Levantai-vos, ó vítimas…
Manuel Dias Loureiro, 65 anos, acaba por sair como vítima de oito anos de investigação e suspeição. No despacho de arquivamento, por falta de provas, o MP não aceita a derrota e mantém as suspeitas sobre o “enriquecimento ilícito” do ex-administrador do BPN e do seu colega Oliveira e Costa. Um libelo, que condena, perpetuamente, na praça pública, alguém que não pode ser condenado em tribunal. Quebrando anos de silêncio, Dias Loureiro insurgiu-se contra esse despacho eivado de “insinuações”. Já Armando Vara, 63 anos, sai como vítima de um caso maior do que ele. O caso Face Oculta, que começa como uma simples questão de cunhas para favorecimento de uma empresa de sucata, a O2 de Manuel Godinho, revela tentáculos que darão origem a outro processo que o investigador da PJ de Aveiro, Teófilo Santiago, classifica,em 2009, como “crime de atentado ao Estado de Direito”. Em causa, declarações acidentalmente recolhidas em escutas, onde Vara se refere à intenção da compra, por parte da PT, de 30% da TVI, para “tomar conta da estação e limpar o gajo” – leia-se, o seu diretor de Antena, José Eduardo Moniz e, depois, a jornalista Manuela Moura Guedes que, no Jornal Nacional das sextas-feiras, fustigava o então primeiro-ministro, José Sócrates, com sucessivas revelações sobre o caso Freeport. Mais tarde, na administração da Caixa Geral de Depósitos, Vara terá tido influência em créditos que se revelariam ruinosos e que se cruzam com operações que, segundo os investigadores, estariam na origem, dos indícios de corrupção atribuída a Sócrates.
Em novembro de 2008, quando o governo nacionalizou o BPN, já se sentiam os efeitos da recessão financeira mundial, depois da queda do Lehman Brothers e da crise do subprime americano. Mas, como disse o então ministro das Finanças, Teixeira dos Santos, as dificuldades do BPN nada tinham “a ver com a crise”, mas sim com “perdas acumuladas de licitude duvidosa”, investigadas pela PGR. Ora, o processo agora arquivado configura um caso típico de “perdas acumuladas de licitude duvidosa”. Envolvia Dias Loureiro, ex-ministro da Administração Interna de Cavaco Silva, Oliveira Costa, antigo secretário de Estado dos Assuntos Fiscais do mesmo primeiro-ministro e um enigmático empresário libanês naturalizado espanhol, Abdul Al Assir. Em causa, negócios que terão provocado um prejuízo de cerca de 38,6 milhões de euros ao Grupo BPN, perante um investimento global de cerca de 57,2 milhões de euros numa empresa tecnológica de Porto Rico, chamada Biometrics. Uma gota no oceano da fatura de 5,4 mil milhões de euros que os contribuintes acabaram por ter de pagar, mas paradigmática sobre a forma como o BPN era gerido.
Ora, a procuradora Cláudia Porto, do Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP), afirma, sem subterfúgios, que “o verdadeiro objetivo da celebração dos negócios foi tão só o enriquecimento ilegítimo de terceiros à custa do prejuízo do Grupo BPN, nomeadamente e, pelo menos, de Dias Loureiro, de Oliveira Costa e de Al Assir”. Isto, sob “a forma do pagamento de comissões, ainda que através da formalização da pretensa concessão de financiamentos a entidades instrumentais, aceitando, logo à partida e deliberadamente, que tais empréstimos seriam incumpridos”. Afirmações tão taxativas, porém, nunca passaram de hipóteses ou teorias, não fundamentadas em elementos de prova, o que levou ao arquivamento. Na mesma semana, Armando Vara viu confirmada a condenação a cinco anos. Uma caixa de robalos e 25 mil euros para pagar um favor são sempre operações financeiras muito menos complexas do que as complicadas engenharias através de offshores e cruzamento de participações em empresas mais ou menos “maradas”.
A política os une e separa
Dias Loureiro foi ministro dos Assuntos Parlamentares de Cavaco, em 1987, passando, mais tarde, para a Administração Interna. Em 1994, por ocasião do bloqueio da Ponte 25 de Abril, a 24 de junho, e com Cavaco ausente do País, e o ministro das obras públicas, Ferreira do Amaral, paralisado, foi ele que coordenou o gabinete de crise, sem nunca perder a calma ou a frieza. No jogo de influências internas, reforçou a sua posição no Governo, em detrimento do seu colega das Obras Públicas que, até aí, tinha sido a grande estrela do cavaquismo. Em 1995, com a vitória do PS de António Guterres, Dias Loureiro dedicou-se aos negócios. “Quando saí da política não tinha dinheiro”, afirmou publicamente. Mas não tardou a recuperar o tempo perdido…
Armando Vara, em 2000, quando era ministro da Juventude e Desporto de António Guterres, viu-se forçado a pedir a demissão, depois de notícias sobre irregularidades cometidas pela Fundação para a Prevenção e Segurança Rodoviária, que fundara no ano anterior, quando era secretário de Estado da Administração Interna. A fundação era um instrumento para fugir ao controlo do Tribunal de Contas e contornar a obrigatoriedade de concursos públicos. Sampaio, então PR, exerceu forte pressão para forçar o pedido de demissão de Vara. O transmontano era o primeiro “sub 40” do núcleo duro do primeiro-ministro a cair. Pouco depois, com a queda da Ponte de Entre-os-Rios e a demissão do braço direito Jorge Coelho, ruiu o guterrismo.
Fim de validade
Vara também recuperou o tempo perdido. Exímio na gestão de contactos, como na música de Gabriel O Pensador, em “dois, três, quatro, cinco, meia, sete, oito”, também o seu livrinho de endereços tem, de A a Z, um monte de nomes capazes de lhe “salvarem a noite”. Esta sua mais valia de facilitador, vai desenvolvê-la no apogeu dos anos de Sócrates. Primeiro, na Caixa, a seguir, no BCP, de onde sai mais rico, depois de, só num ano, ter recebido do banco 822 mil euros e, depois, mais 562 mil de indemnização. A rede de influências tropeça no processo Face Oculta e remete, mais tarde, para o processo Marquês, em que Sócrates é indiciado por fraude fiscal, corrupção e branqueamento de capitais. Não foram só robalos: a dimensão política do caso é muito superior à do BPN, o que ajuda a explicar o que safou um e tramou o outro. Vara e Loureiro, faces de uma moeda que representa uma certa classe política emergente nos gloriosos anos da integração europeia. Quase uma década depois dos factos que mancharam a carreira de um e outro, os robalos já não estão frescos.
Artigo publicado na VISÃO 1258 de 12 de abril