Se as regras fossem seguidas à risca, a distribuição dos processos judiciais no Tribunal da Relação de Lisboa deveria ser eletrónica e aleatória. Mas, ao que a VISÃO averiguou, juízes desse tribunal superior e procuradores do Ministério Público, dentro e fora daquelas portas, têm ficado surpreendidos com o resultado de alguns sorteios e desconfiam que a distribuição dos processos naquele que é o principal tribunal superior do País está a ser manipulada. De acordo com os testemunhos de vários magistrados (que por razões profissionais pediram o anonimato), embora na teoria a distribuição seja feita através de um programa de computador, que deveria garantir resultados imparciais, será possível condicionar estes resultados. “Todas as tômbolas são falsificáveis”, remata um juiz-desembargador: “Porque esta não seria?”
Juízes que tenham em mãos um processo de excecional complexidade, por exemplo, podem pedir mais tempo para essas decisões e durante esse período saem do programa informático que funciona como uma tômbola. Juízes que acumulam o cargo de magistrado com outras funções públicas e não incompatíveis têm o direito a decidir menos 25% dos processos que os colegas, o que os deixa automaticamente de fora de alguns sorteios. E juízes de baixa médica são imediatamente excluídos.
Na Relação de Lisboa, uma vez por semana, há um sorteio dos processos cíveis e dos processos-crime. Mas há processos que pela sua natureza urgente têm de ser distribuídos diariamente. Um juiz da Relação de Lisboa dá um exemplo concreto para explicar como é possível limitar o número de juízes que vai a sorteio: “Imaginemos que se trata de um processo-crime. Em teoria, deveria poder calhar a qualquer um dos cerca de 50 juízes que estão distribuídos pelas três secções criminais do tribunal. Mas se na altura da distribuição do processo, em vez dos 50, já só estão disponíveis cinco… só pode naturalmente calhar a um desses cinco.”
Contactado pela VISÃO, o atual presidente do Tribunal da Relação de Lisboa, Orlando Nascimento, alega que desde maio de 2014 a distribuição é feita através de um programa informático e “presidida presencialmente” por si próprio, a menos que decorram férias judiciais, altura em que a distribuição “é diária” e passa a ser presidida por um desembargador de turno. Apesar de nos dar essa garantia, Orlando Nascimento decidiu mudar as regras, já depois de tomar posse como presidente. Num despacho datado de dezembro de 2016, o juiz refere que, para “acentuar a importância e a transparência” da distribuição, a partir de 16 de janeiro os sorteios passariam a ser presididos pelos presidentes das secções.
Embora diga que a distribuição é feita “pelo coletivo de todos os desembargadores”, Orlando Nascimento admite exceções e confirma que juízes “em situação de baixa médica ou que se encontrem ocupados com trabalho em processo-crime ou cível de especial complexidade não entram na distribuição” desde que essa decisão esteja sustentada por escrito pelo presidente do tribunal.
Há ainda desembargadores ouvidos pela VISÃO que alegam que Luís Vaz das Neves, juiz que foi presidente do Tribunal da Relação de Lisboa entre 2005 e 2016, por vezes distribuía em mãos determinados processos, por entender que determinados assuntos deveriam ser tratados pelos mesmos magistrados. Processos de cidadãos angolanos, por exemplo, repetidamente foram analisados pelos mesmos juízes, e isso não terá deixado de ser notado nos corredores. Sobre esta matéria, o atual presidente daquele tribunal superior, e ex-vice-presidente, diz que os processos só podem ser distribuídos diretamente a um juiz “nos casos legalmente previstos”, como quando uma sentença é declarada nula em fase de recurso e é necessária nova decisão daquele tribunal. Vaz das Neves, em conversa com a VISÃO, usou exatamente os mesmos argumentos legais que o seu sucessor para dizer que só nos casos previstos pela lei os processos eram por si distribuídos em mãos. Acrescentou apenas que, quando um juiz se jubilava, os seus processos pendentes eram redistribuídos pela sua secção, através de “um sorteio manual”.
PONTARIA
O que mais surpreendeu alguns magistrados foi que, de entre os mais de 30 recursos apresentados por José Sócrates na Operação Marquês, só em dois houve coincidência de juiz. Rui Rangel que está a ser investigado por suspeitas de receber dinheiro do ex-empresário de futebol José Veiga foi o relator do acórdão que, em setembro de 2015, decretou o fim do segredo de justiça interno naquele processo, permitindo que arguidos e assistentes tivessem acesso ao conteúdo do mesmo. Da mesma forma que também Rui Rangel foi o sorteado na distribuição de 13 de fevereiro (o recurso tinha dado entrada a 6, mas já não foi sorteado nesse dia), ficando incumbido de decidir se foram ultrapassados os prazos máximos da investigação. Até aqui, nunca a tômbola eletrónica tinha repetido o nome de um juiz nos recursos do caso que tem como principal arguido José Sócrates, e seria expectável que em sorteio isso acontecesse.
Estas coincidências não passaram despercebidas ao Ministério Público junto da Relação de Lisboa que, a 22 de fevereiro, de forma inédita, decidiu pela primeira vez levantar um incidente de suspeição sobre um juiz. Normalmente, os pedidos de recusa são feitos pelos arguidos ou pelos próprios juízes. Numa nota enviada às redações, a Procuradoria-Geral da República não usou palavras leves para justificar o pedido de recusa. Disse existir “motivo sério e grave”, “adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade” de Rui Rangel.
O juiz da Relação de Lisboa terá agora de dar o seu parecer sobre se é ou não imparcial para decidir no processo de Sócrates. Depois, e até ao final do mês, um juiz-conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça terá de decidir se o recurso continua nas mãos de Rangel ou se deve ser novamente distribuído.
Questionado sobre se o incidente de suspeição levantado pelo Ministério Público era o primeiro na história da Relação de Lisboa, o juiz-presidente daquele tribunal, Orlando Nascimento, disse apenas ser um recurso raramente utilizado pelas partes “e ainda de mais rara procedência”. E vincou que o juiz “é determinado aleatoriamente”, não podendo a parte “escolher, sugerir ou influenciar a escolha” do magistrado.
SÓCRATES QUIS NOVA DISTRIBUIÇÃO
Os motivos para o Ministério Público desconfiar da imparcialidade de juízes e de uma distribuição de processos menos aleatória do que mandam as regras não se encerram aqui. Também passam por outras coincidências suspeitas e detalhes curiosos. Ao que a VISÃO averiguou, em meados de agosto de 2016, deu entrada no Tribunal da Relação de Lisboa mais um recurso de José Sócrates, em que o ex-primeiro-ministro já alegava estarem ultrapassados os prazos do inquérito. O recurso viria a ser distribuído rapidamente, porque uma escrivã da secção central assumiu que o processo teria natureza urgente. Nessa distribuição, foi sorteada Maria Elisa Marques, juíza da 3ª secção daquele tribunal.
João Araújo, advogado de defesa de José Sócrates, não gostou. E numa atitude que causaria surpresa no Tribunal da Relação de Lisboa, e também ao Ministério Público, por entrar em contradição com os seus constantes pedidos de maior rapidez à investigação, o advogado pediu a anulação daquela distribuição, alegando que o processo não deveria ter subido em época de férias judiciais, não tinha natureza urgente e, como tal, não devia ser decidido pelos juízes que estão de turno, devendo aguardar até 1 de setembro para ser distribuído.
Quando esse dia chegou, a juíza em causa admitiu ter sido um erro categorizar o processo como um processo urgente, mas chegou-se à frente na mesma, dizendo ser competente para continuar a analisar aquele recurso. No final de março, Maria Elisa Marques viria a tomar uma decisão desfavorável a José Sócrates, concluindo que os prazos do processo não estavam ultrapassados. Um recurso seguinte de Sócrates, que também incide sobre a questão dos prazos, foi o que calhou em sorteio ao juiz Rui Rangel.
Além de tudo isto, no pedido de recusa por “motivo grave e sério”, o Ministério Público não terá esquecido a investigação que corre contra o juiz-desembargador no processo Rota do Atlântico [ver texto Transportava papéis para Veiga, nesta página]. Nem tão–pouco o processo disciplinar de que Rangel foi alvo por ter proferido declarações públicas, precisamente sobre o caso de Sócrates.
Uns dias depois de o Ministério Público levantar o incidente de suspeição sobre Rangel, a secção de contencioso do Supremo Tribunal de Justiça decidiu, num acórdão contundente de 64 páginas, confirmar uma decisão do Conselho Superior da Magistratura que condenava Rui Rangel a 15 dias de multa por ter tecido críticas aos investigadores da Operação Marquês num programa da TVI. O Supremo entendeu que Rangel terá violado o dever de reserva ao emitir opiniões sobre outros magistrados, com a agravante de o ter feito num caso onde ainda poderia vir a ter intervenção. Como, aliás, veio a acontecer.
Artigo publicado na VISÃO 1253 de 15 de março