De boina basca, pullover às riscas e mãos atrás das costas, ninguém entra no número 287 da Avenida dos Aliados sem passar por Júlio Amaral. Octogenário, este republicano retinto tem diante das vistas, todos os dias, a melhor sala a céu aberto do Porto ou não fosse ele o porteiro do respeitável prédio onde trabalhou, por exemplo, o advogado Miguel Veiga, nos seus tempos áureos. Ora, Júlio já viu de quase tudo – “com exceção da queda da monarquia”, precisa – e não estava propriamente extasiado com a chegada dos reis de Espanha ao Porto para uma visita que se estenderá ao norte. “Eu quero é ver o Marcelo, o Presidente mais popular que me lembro de ter conhecido”, explica, enquanto um grupo de crianças, de bandeirinha espanhola na mão, se aproxima do local de receção dos monarcas. Para ele, todo o ambiente em volta da cerimónia dá no mesmo. “Nunca na vida pensei que teríamos um Presidente assim”, continua. “Ele diz tudo ao povo. Não esconde nada e fala uma linguagem concreta, que a gente percebe. Depois dele, vai ser sempre a descer”, antecipara, quando a realeza já vinha a subir a avenida sentada no banco de trás de um Rolls Royce de 1906 que avançava ronronando.
As palmas para Felipe VI e Letizia – “ai coitadinha, que ela é tão esquelética” – são ténues, comparando com a receção a Marcelo Rebelo de Sousa, que chegara 15 minutos antes. O povo não abunda, é dia de trabalho, e alguns passam resmungando com os cortes de trânsito e a obrigação de ziguezaguear pelas adjacências para chegar ao poiso de cada dia. “Agora imagina que era o Trump”, comenta-se entre amigos, à porta do restaurante Via Garrett. “Fechavam o Porto todo!”, responde um deles.
Que bandeira é essa?
Se descontarmos os comentários à volta do vestido da rainha Letizia – casaco rosa velho por cima de um vestido cinzento “ou será bege?” – todas as conversas iam dar a Marcelo. “Quem é que está com os reis? O Presidente? Ai esse gostava de ver!”, dizia que havia saído à rua sem saber muito bem o porquê de tal aparato. Outros, de passo estugado, esbarravam depois em grupos de telemóvel ao alto tentando captar a fumarada das salvas de 21 tiros e os acenos reais e presidenciais. “Quero lá saber do rei!”, ouvia-se. “O nosso Presidente vale por dez deles!”.
Não é bem essa a opinião de Leonardo de Abreu.
Estudante de arquitetura, 22 anos, ele chegou à Baixa da Invicta com a bandeira azul e branca da Monarquia. Não só para marcar posição, mas também porque a visita dos reis de Espanha “é uma oportunidade para as pessoas se lembrarem de que outra escolha é possível, apesar de nunca ter sido permitido fazer um referendo sobre o regime”.
O atrevimento do jovem monárquico prestou-se, antes de mais, a controvérsias futebolísticas, “agora que aos nossos até lhes dói o pescoço de olhar para cima”, gracejou-se, numa referência à liderança do Benfica na Liga. Leonardo a todos acudiu, sem forçar sorrisos. Ouviu os que se lamentavam das reformas baixas, respondeu a quem lhe perguntava que bandeira era, afinal, aquela, “tão bonita”, e até se deixou fotografar à saciedade, como se um ser exótico tivesse aterrado ali de repente. Aficionado das monarquias nórdicas, Leonardo gostaria de ver Portugal representado “por um homem acima dos partidos, que desse uma boa imagem do País lá fora e fosse, cá dentro, um traço de união”. Na impossibilidade de haver um rei, Marcelo parece servir na perfeição. “Ele tem-se portado como um monarca. Pelo que se tem visto, é herdeiro das melhores tradições da monarquia”, reconhece.
Terminada a reservada sessão solene na Câmara do Porto, o casal de monarcas ainda distribuiu alguns cumprimentos debaixo de um sol morno de outono, antes de abalar para o Museu de Serralves, ao reencontro das obras de Miró. O carro da realeza seguiu, mas o Presidente da República lá deu mais uma sapatada no protocolo e foi abeirar-se de algumas dezenas de pessoas que o queriam tocar e fotografar. “Viva o Rei!”, ouvia-se, ainda, em fundo. Afinal, havia outro.