Em entrevista exclusiva à VISÃO em julho de 2012, Duarte Lima quebrava um silêncio de quase dois anos sobre o crime de Saquarema e a Herança Feteira. Juntava novos dados e dizia que a filha de Feteira, Olímpia, conduzira a acusação “dentro e fora do processo” e que a polícia brasileira tinha investigado “por encomenda”. Recorde essa entrevista, no dia em que o Ministério Público acusou Duarte Lima de abuso de confiança, por apropriação indevida de mais de cinco milhões de euros de Rosalina Ribeiro
Porquê tanto tempo de silêncio?
Desde cedo percebi que a investigação era dirigida por encomenda e tudo aquilo que dissesse seria virado contra mim. O silêncio foi para me defender melhor quando fosse concluída a investigação. A investigação no Brasil é meramente policial, sem controlo do Ministério Público ou do magistrado judicial. Só em determinados atos escutas telefónicas ou levantamento do segredo bancário é que há uma intervenção do magistrado. Os abusos nas investigações que, no Brasil, são muito conhecidos não são travados ad initium. Esta investigação foi conduzida contra mim de uma forma surpreendente.
Quando percebeu isso?
Logo no início, na conversa telefónica com o comissário Aurílio Nascimento. Ele é conhecido no Brasil como comissário blogueiro. Tem atitudes de muita espetacularidade no exercício da sua função e apareceu em fotografias no Globo, com umas algemas na mão, contestando uma medida do Supremo Tribunal Federal.
É useiro e vezeiro nessas atitudes e faz, no seu blogue, uso das informações dos processos.
A primeira notícia sobre o caso sai no Correio da Manhã, utilizando a edição online do jornal brasileiro Extra, onde o comissário escreve de 15 em 15 dias. Era fácil perceber como o inquérito estava a ser conduzido. O comissário Nascimento tem ainda uma empresa de segurança privada.
Não digo que alguém com interesse no processo tenha recorrido a esses serviços, mas sei que, todos os anos, um conjunto de agentes da Polícia Civil do Rio de Janeiro são presos ou expulsos por utilização abusiva das informações dos inquéritos.
O comissário disse ao DN que uma fonte essencial da investigação foi uma figura próxima de si, a que deu o nome de código Apache. Faz ideia de quem seja?
Acho que é inventado. O comissário fezse fotografar em Paris para mostrar que havia uma espécie de encontro novelesco num café mítico da cidade, mas na notícia não há nada relacionado com a investigação.
Era impensável uma história destas acontecer com a polícia portuguesa.
Que comentário faz ao relatório policial?
A acusação é destituída de qualquer prova factual. É fértil em imaginação, deduções e especulações, mas não existe um facto concreto que aponte uma relação direta entre mim e o crime. É dito que o motivo se relaciona com os honorários que me foram pagos pela minha cliente. Porque iria atentar contra a vida dela pelo facto de me ter pago honorários? Segundo a TVI, os honorários pagos pela contraparte deste processo serão maiores do que aqueles que recebi. Ultrapassam 7 milhões de euros.
O doutor José Miguel Júdice disse que lhe pareciam valores excessivos, embora tivessem sido arbitrados antes da intervenção dele no processo. Olímpia Feteira teve três advogados importantes no Brasil.
Em Portugal vai no terceiro, também.
Estávamos a falar do relatório policial.
A polícia deturpou o facto principal da prova. Os relatórios periciais dizem ser impossível determinar o local e as circunstâncias da morte da minha cliente. Num primeiro momento, e isso está escrito, a própria polícia considerou muito credível o relato de uma testemunha dizendo que ouviu disparos entre as 22 e 30 e as 22 e 40, na zona em que Rosalina foi morta. A polícia pensava que bastava fazer a imputação do crime com base no carro e nas multas de trânsito, mas quando descobriu o carro em que fui transportado, percebeu que a essa hora, no regresso, eu estava a quase 40 quilómetros de distância. Era impossível estar no local do crime. No relatório final, e sem que haja testemunhos nesse sentido, a polícia desloca o horário dos disparos para as 22 horas, pois essa hora já permite aproximar-me do local do crime.
Disse «fui transportado». Não ia sozinho?
Como é que eu disse?
«Fui transportado».
Não, o que digo é que a polícia procura «transportar-me» para o local do crime.
Ia sozinho, sim.
O Ministério Público brasileiro diz que é capaz de matar quem não satisfaça os seus interesses pessoais e financeiros.
É uma frase completamente vazia, não lhe dou qualquer valor. Nunca fui ouvido formalmente no processo.
Diz-se que fez tudo para não ser ouvido.
Não. A polícia tem de respeitar a lei. Enviou uma carta rogatória quando eu tinha pedido acesso aos autos, o que, no Brasil, é permitido em relação à prova que esteja documentada. O meu advogado fez esse pedido várias vezes e foi recusado.
Quando fui ouvido, aqui, pela PJ, juntei uma carta do meu advogado em que ele dizia que não devia falar, pois estavam a sonegar-me aquilo que era dado à comunicação social. É atroz. Na carta rogatória, pedem para ouvir-me como testemunha. Ora, quando é concluído o inquérito, o delegado de polícia disse às televisões que eu tinha sido o principal suspeito desde a primeira hora. Se foi assim, porque nunca fui ouvido na qualidade de suspeito? Enganaram o meu advogado e mentiram às autoridades portuguesas.
A versão policial para sustentar a autoria do crime é a de que Rosalina se recusou a assinar um documento pedido por si sobre uma transferência de 5,2 milhões de euros, a provar que o senhor «nada lhe devia nem era depositário de qualquer quantia».
É ridículo. Os pagamentos da minha cliente foram sempre feitos por transferência bancária e estão registados. Foram até levados ao processo no Brasil pela própria Olímpia. É Armando Carvalho, o afilhado de Rosalina, quem diz no inquérito que eu estava a pedir à minha cliente essa declaração, mas, quando foi ouvido pela primeira vez, nada disse. É quase no fim do inquérito, em 2011, que se lembra disso, alegando ter ouvido essa versão das amigas de Rosalina.
Ora, as amigas foram ouvidas três vezes pela polícia e nunca o disseram.
É um depoimento forçado.
A polícia diz que Rosalina nunca lhe telefonou a marcar um encontro. Todas as chamadas telefónicas são de si para ela.
Não é verdade. A polícia não fez o escrutínio de todos os telefones pelos quais falei com Rosalina.
Há mais telefones do que aqueles que foram identificados no processo?
Há. Mas mesmo nos que vêm nos apensos do processo é fácil mostrar chamadas de Rosalina para mim.
Usou um telemóvel suíço para falar com ela?
Até podia usar um telemóvel australiano.
Esse telemóvel suíço foi-lhe oferecido pela Akoya [sociedade gestora de fortunas da Suíça, da qual foi cliente e cujo cérebro é Michel Canals, detido na Operação Monte Branco]?
A Akoya não me ofereceu telemóvel algum.
A polícia diz que fez sete chamadas em dois dias para o telefone fixo de Rosalina a fim de combinar o encontro.
Não. Alguns dos telemóveis dos quais se diz que fiz chamadas para Rosalina não são meus.
Quantos eram os seus telemóveis nessa altura?
Dois. Falei com Rosalina através dos telemóveis pelos quais habitualmente falava com ela. E ela tinha mais telemóveis do que aqueles que foram apreendidos.
Porque se deslocou à região onde foi cometido o crime na véspera de Rosalina ser assassinada?
Para responder a uma solicitação da minha cliente. Ela estava em negociações com duas pessoas para vender a posição na herança. Em relação a uma das propostas, havia uma componente negocial que implicava obter uma informação na Região dos Lagos e foi isso que fui fazer.
Falou com quem?
Saber-se-á oportunamente. Só fui a Maricá na noite em que disse que fui lá levar Rosalina. Dizer que estive na noite anterior em Maricá porque fui multado é uma interpretação capciosa e distorcida por parte da polícia. Fui multado na autoestrada no mesmo local onde sou multado no dia seguinte. Nunca dentro de Maricá.
A polícia contou o tempo das viagens para sustentar que foi de véspera preparar o crime e no dia seguinte executá-lo.
É uma construção artificial. Tenho, pelo menos, uma testemunha que sabe a que horas estive em Maricá. Sou multado no regresso às 22 e 37, a cerca de 35/40 quilómetros do local onde foi cometido o crime.
Há uma contradição entre o tempo que diz ter estado em Maricá poucos minutos e a versão da polícia.
Com Rosalina e Gisele, a pessoa com quem ela se encontrou, estive poucos minutos, de facto. Tomei, depois, uma pequena refeição rápida, em Maricá, numa pizzaria próxima do centro, e regressei.
Disse não se lembrar onde tinha alugado o carro ou sequer a marca do carro que levou de Belo Horizonte para o Rio. Mas já tinha usado o mesmo rent-a-car.
Deixe-me explicar o seguinte: comecei por perguntar ao comissário Nascimento qual era a natureza da conversa telefónica que tivemos. Ele disse que era informal, mas percebi que a conversa estava a ser gravada sem a minha autorização. Em Portugal, é crime. Como tal, fui reservado em relação a questões mais delicadas.
Sei muito bem como se constroem testemunhos falsos e a facilidade com que se incrimina alguém no Brasil.
Entregou o carro lavado e sem tapetes?
É verdade que o entreguei lavado em Belo Horizonte. O carro vinha sujo das duas viagens, ambas feitas debaixo de chuva.
Quanto aos tapetes. percebo a insinuação, mas se tivesse havido um crime dentro do carro, os vestígios não saíam com a lavagem. O luminol mostra os vestígios de sangue mesmo depois de trinta lavagens.
Porque não registou o carro no Hotel Sofitel, em Copacabana, onde pernoitou?
Não é verdade. Quando cheguei, entreguei o carro na portaria. É um hotel de cinco estrelas, com vigilância 24 horas.
Fiz aquilo que se faz num hotel do género: entreguei o carro ao porteiro.
Mas o carro não aparece na fatura…
É uma questão de ouvirem o porteiro.
Como explica que o seu número esteja registado na ligação telefónica para uma loja de armas?
Não sei, nunca liguei para uma loja de armas. Mas cheguei num sábado e tive oportunidade de verificar que a loja de que a polícia fala está fechada ao fim de semana. Não fiz chamadas do hotel, usei sempre o telemóvel. E não é uma loja de armas, é de campismo.
De caça e pesca.
E campismo. A polícia foi ver os registos de compras nessa loja nos seis meses anteriores e não encontrou qualquer relação comigo.
Se tinha ido de véspera para a região onde foi cometido o crime porque disse sempre que não conhecia a zona?
É a verdade. Fiz uma viagem a Saquarema durante 45 minutos ou uma hora. Isso não significa conhecer a zona.
Rosalina conhecia bem a região onde foi assassinada?
Tinha um conhecimento muito grande.
A SEAI, a empresa de Feteira da qual ela foi presidente, tinha o essencial dos seus bens entre Maricá e Saquarema.
Ela movimentava-se à vontade?
Sim. Há vários anos que ela tinha a noção de que estava a delapidar-se o património da herança. Tinha essa informação de várias pessoas, colaboradores de Olímpia que antes tinham trabalhado para ela e para Feteira. A convicção sobre a delapidação da herança é comum aos advogados de uma parte dos herdeiros, pois há anos que pedem contas à cabeça-de-casal. No Brasil, foi intimada judicialmente e nunca prestou contas. Não sei se as informações de Rosalina eram verdadeiras, mas ela fazia investigações por conta própria. Quando consolidava a ideia de que havia uma irregularidade, transmitia-me. Por exemplo: concluiu, com provas documentadas, que o contrato feito para a exploração das areias e areolas de uma fazenda do espólio da herança não correspondia aos valores efetivamente pagos. Segundo o contrato, era paga uma renda de 20 mil reais, depois atualizada para 25 mil por ano. Metade entrava nas contas da herança e a outra metade na conta do capataz de Olímpia.
Mas Rosalina sabia que havia extração de 150 a 200 camiões de areia e areolas por dia e isso não deveria render menos de 200 a 300 mil reais por mês.
Nunca ajudou nessas investigações?
Não. Nem o próprio advogado no Brasil a ajudava. Ela tinha outras pessoas para isso.
Quem eram os dois interessados na compra da posição de Rosalina na herança?
Um era Arlindo Guedes, que explorava o negócio das areias na fazenda. Estaria em conflito com Olímpia e, por isso, queria comprar a posição de Rosalina na herança para reforçar a sua posição negocial, embora nunca tenha estabelecido um preço. Ele começou por abordar o advogado dela no Rio, mas Arlindo diz que ele nunca transmitiu as suas intenções a Rosalina.
Depois apareceu Gisele, que lhe ofereceu um valor concreto. Do ponto de vista jurídico, desaconselhei-a a vender, mas o conflito e as perseguições de Olímpia tinham-na deixado exausta. Só processos cíveis e criminais foram onze.
A cabeça-de-casal reconheceu o testamento, mas logo de seguida pediu a anulação da deixa testamentária de Rosalina, invocando o facto de ela ser amante de Feteira e não companheira. Quando percebeu que ia perder a ação como perdeu entrou com uma segunda ação de nulidade, em nome individual. Rosalina estava farta. Ao negociar a sua posição na herança julgava que se livrava também de Olímpia.
A polícia sugere que Gisele foi inventada por si.
A polícia não fez tudo para encontrá-la e não aprofundou pistas. Exemplo: há, nos autos, um fax em que alguém acusa outro alguém de ter praticado o crime, mas a polícia focou-se numa única pessoa.
Os amigos e amigas de Rosalina dizem que seria impossível que ela saísse à noite para.
Ela saiu tranquilamente como se viu pelas câmaras de vigilância.
Sim, mas uma coisa é sair para um encontro num local próximo, outra é fazer uma viagem de noite.
Fui várias vezes ao Rio. Umas vezes, acompanhei-a, noutras fui sozinho.
Rosalina ia sempre ter comigo ao hotel ou a um restaurante, de dia ou de noite.
Mesmo às pessoas mais chegadas e era o caso das amigas Rosalina dizia só o que queria. Era algo que aprendera com Feteira. Ela era a grande paixão dele.
Rosalina levava uma pasta, quando morreu.
Tem ideia de que documentos continha?
Não. E não sei como é que alguém pode dizer que tipo de documentos eram, a menos que tenha estado com Rosalina depois de mim. Depreendi que teriam a ver com as negociações entre ela e Gisele, que estavam adiantadas. Gisele queria uma resposta antes de Rosalina voltar a Portugal. Nessa altura, estava próxima a reapreciação da segunda ação de nulidade testamentária metida por Olímpia.
Dia 11 ou 12 de novembro de 2009 tinha havido uma sessão em Portugal para fixar a matéria de facto e nós, os seus advogados, percebemos claramente que Rosalina ia ganhar a ação. Quatro dias depois de ela morrer, o juiz confirmou que a relação amorosa entre Rosalina e Feteira era do conhecimento dos familiares mais próximos, nomeadamente de Olímpia, a autora da ação. O que tornava inexpugnável o direito de Rosalina à deixa testamentária do senhor Feteira.
Mas isso não afetaria diretamente Olímpia, afetaria os herdeiros da esposa de Feteira, Adelaide.
Certo, mas o ódio de Olímpia era tal que ela só queria ver Rosalina sem nada.
O que é que Rosalina lhe disse na viagem até Maricá? Continuou a conversa sobre as negociações que estavam pendentes e tentei convencê-la a esperar por uma decisão judicial que se adivinhava muito próxima.
Nessa altura, já poderia vender uma coisa sua e não algo que era contestado nos tribunais.
Sabe a razão pela qual Rosalina mudou o testamento em Portugal, uns dias antes de partir para o Brasil?
Não. Para mim foi uma surpresa. Sabia que ela tinha testamentos no Brasil e Portugal a favor do afilhado Armando, mas só soube depois que ele deixara de constar do testamento português. Eventualmente, ela quereria mudar o do Brasil também, mas já não foi a tempo.
Maria Alcina, amiga de Rosalina, diz que o conheceu a si através de Lúcio Feteira.
Mentira. Teria que ser no Brasil e nunca lá estive com Feteira.
Rosemary Espinola era apenas amiga ou mais qualquer coisa?
A Rosemary tinha procurações dela para movimentar a conta bancária e pagar as despesas do apartamento. Mais não sei.
A polícia tentou também falar com a sua atual companheira, cidadã brasileira, mas não conseguiu localizá-la. Escondeu-a?
Não, mas sobre matérias da minha vida pessoal não falo.
Como analisa o comportamento de Valentim Rodrigues e Normando Marques, os outros advogados de Rosalina?
Em que sentido?
Valentim é apontado como o advogado de facto de Rosalina nos processos portugueses e nunca falou.
Fui o advogado que coordenou os processos em Portugal e no Brasil. Valentim Rodrigues foi escolhido por mim para fazer esse trabalho de acompanhamento e foi sempre correto comigo. Quem pôs a circular que eu não era o advogado de Rosalina, alegando que não tinha procuração para os processos, foi Olímpia. Eu tinha procuração, mas, numa fase da vida em que não pude ir aos processos, escolhi Valentim Rodrigues. O doutor Júdice também não fez intervenções no processo, mas nem por isso deixa de ser o advogado de Olímpia.
Quanto a Normando Marques.
Ele disse que eu era o guru jurídico de Rosalina e isso pode parecer uma observação de algum distanciamento. Mas eu tenho a correspondência trocada com ele.
Ele chegou a dizer que estranhava alguns dos seus comportamentos.
É natural. Rosalina também estranhou comportamentos dele. Ela queixava-se de que, estando quatro meses no Brasil, Normando só tivesse ido falar com ela duas vezes. Mandava-lhe as assistentes, coisa que ela não admitia.
A polícia do Rio chama «cómico» ao comportamento da Ordem dos Advogados, no caso do seu alegado pedido de levantamento do sigilo profissional para responder no inquérito. Fez ou não esse pedido?
Fiz esse pedido e foi parcialmente aceite.
Cómica é atuação da polícia do Rio de Janeiro. Deve pensar que a Ordem dos Advogados portuguesa é um capacho dela.
Sendo parcialmente levantado o sigilo por que razão não respondeu às perguntas da polícia?
Porque não fui ouvido formalmente no processo.
Mas isso foi o que eles tentaram, segundo dizem.
Mandaram 193 perguntas, das quais 60 ou 70 foram semeadas na comunicação social, semanas antes. Tinha todas as reservas em relação à atuação da polícia.
Se queriam ouvir-me, mandavam a carta rogatória com as perguntas e davam-me acesso ao processo.
Não teve acesso total ao processo?
Não. O meu advogado teve acesso parcial aos autos relativamente à prova documentada.
Expliquei à PJ porque não respondia e aceitaram a minha explicação, tendo-a transmitido à Procuradoria-Geral da República, que também a aceitou e a transmitiu às autoridades brasileiras.
Passados três dias, telefonaram à pressa para o meu advogado a dizer para ir ver o processo. Deram-lhe então acesso total, em setembro de 2010. As perguntas vieram uma segunda vez por carta rogatória, mas a PGR quis saber se, sendo as mesmas da primeira vez, queriam mesmo ouvir-me, e a polícia brasileira não respondeu.
O juiz de Saquarema recusou o seu pedido de habeas corpus, diz que o senhor dificultou a investigação.
O juiz diz o que a polícia diz.
Não é muita gente a dizer o mesmo?
Na tradição do processo penal brasileiro, a acusação da polícia é normalmente subscrita pelo Ministério Público e confirmada pelo juiz.
Quando e em que circunstâncias conheceu Lúcio Feteira? Algures nos anos 90, num restaurante em Zurique. Ele estava com Rosalina, dirigiu-se a mim, e tivemos uma breve conversa.
Disse conhecer muito bem a minha intervenção política. Nunca mais estive com ele. Ligou-me uma vez, quando estava em convalescença da minha doença. Disse que me apreciava ainda mais por causa do meu combate pela vida.
Como é que Rosalina se lembrou de si para advogado?
Segundo ela, Feteira tinha-me recomendado como uma pessoa capaz de a defender bem. Ele adivinhava um litígio muito grande com a filha Olímpia, quando morresse.
Quando conheceu o banqueiro suíço da UBS, Michel Canals?
Não sei dizer bem, mas é assunto sobre o qual não posso falar.
Pode, porque não diz respeito à Operação Monte Branco. Refiro-me ao papel de Canals na herança.
Michel Canals era o gestor de uma conta que tive na Suíça durante muitos anos.
Conheço-o desde os anos noventa.
Canals geria as contas de Feteira já nessa altura?
Não é normal que um gestor de conta suíço diga a um cliente seu quem são os seus outros clientes.
Claro, mas a sua relação com Canals era apenas profissional? Nunca falaram da herança Feteira?
A relação foi sempre profissional. Só falei com ele sobre a herança depois de ser advogado de Rosalina.
Como descreveria a sua relação profissional e pessoal com Rosalina?
Ao longo de nove anos, a nossa relação foi impecável, sem um atrito e sem qualquer mácula pessoal e profissional.
Nunca geriu as contas dela ou sugeriu que ela desse um determinado rumo ao dinheiro?
Nunca tive qualquer procuração ou poder sobre as contas de Rosalina. A gestão das contas era feita só por ela.
Ela tinha conhecimentos suficientes para isso?
Tinha. Ao contrário do que Olímpia diz, Rosalina tinha umas bases de inglês e francês, embora falasse com os seus gestores de contas em português. Aliás, o senhor Michel Canals fala fluentemente português. Tal como um de quem se fala no Brasil, o senhor Thomas Roiz.
Até começar a polémica da Herança Feteira qual era a sua relação com José Miguel Júdice?
Nunca tive qualquer relação especial. No PSD, tivemos sempre divergências e discordâncias, além da distância pessoal.
Quem teria interesse na morte de Rosalina?
Não posso fazer acusações sem provas.
Quem ganha com a morte de Rosalina?
É a mesma pergunta feita de outra forma.
Responder era fazer a mesma coisa que fizeram comigo.
Sente que a polícia brasileira fez tudo para investigar os passos de Olímpia?
Não vejo isso espelhado no processo. Olímpia foi quem apontou para este desfecho do inquérito desde muito cedo. Fê-lo dentro e fora do processo.
Por que motivo Rosalina transferiu cerca de 5,2 milhões de euros de uma conta com Feteira na Suíça para uma das suas contas e depois para si?
Para pagamento de honorários.
Como é que se pagam honorários desse tipo em 2001, quando os processos estavam ainda no início?
Ela tinha a noção de que as suas contas iriam ser bloqueadas. Sabia que o conflito com Olímpia ia ser duro, persistente e longo e optou, sem que eu lhe pedisse, por fazer um pagamento inicial de honorários.
Houve transferências dessa conta para terceiros?
Vindos da Dona Rosalina não.
Olímpia diz que os seus 5,2 milhões não poderiam ser transferidos por pertencerem ao espólio da herança.
A conta que Rosalina tinha com Feteira era joint-solidaire, ou seja, apenas podia ser movimentada pelo cotitular sobrevivo.
Ela tinha recebido esse dinheiro a título de doação feita por Feteira e movimentou-o na plenitude dos seus direitos.
Mas Rosalina tinha contas bancárias só suas.
Se os 5,2 milhões foram para pagamento antecipado de honorários, por que razão não os declarou ao fisco?
Não viu as minhas declarações fiscais.
Não sabe o que declarei e o que não declarei.
Ou se essa conta bancária está ou não regularizada perante o fisco.
Está?
Está tributariamente regularizada perante o fisco.
Com que frequência Rosalina se encontrava com o seu gestor de conta, Michel Canals?
Não sei. Ele vinha cá muitas vezes, mas não me diziam quando se encontravam.
Reunimo-nos os três, apenas uma vez, no princípio do processo em que Olímpia contestava a questão da conta de Feteira e Rosalina.
Como era a relação entre Canals e Rosalina?
Rosalina herdou a boa relação que Feteira tinha com Canals.
Aconselhou investimentos a Rosalina?
Não. Isso ela fazia com o seu gestor de conta.
Rosalina dizia aos mais próximos que era o senhor que «sabia de tudo da vida dela e tratava de tudo».
Não concebo que pudesse dizer isso. Ela mantinha uma esfera da sua vida reservada, mesmo para os advogados.
Nunca pensou em fugir?
Nunca. Mais não posso dizer, porque isso prende-se com o caso BPN, que está em segredo de justiça.
Corrigiu declarações fiscais, em 2011?
Não corrigi declarações fiscais, corrigi uma declaração ao Tribunal Constitucional sobre ações que tinha no BPN.
A polícia considerou «mórbido» o seu pedido de fotos do cadáver de Rosalina. Porque é que as pediu através do seu advogado?
Rosalina saiu de sua casa vestida com aquilo a que vulgarmente as senhoras chamam macacão. Mas os médicos legistas e o perito criminal dizem que ela estava com um vestido. Os peritos não fazem uma confusão desta natureza. Por isso, o meu advogado procurou ver todas as pistas possíveis que não estavam a ser seguidas pela polícia.
Como analisa o comportamento de Olímpia?
A única coisa que digo é que ela transferiu para mim o ódio que tinha pela Rosalina.
Concretize.
Basta ver a maneira como foram carreados para o processo os elementos bancários e a forma como me foi imputada a falsificação de uma assinatura de Feteira. Tentou envolver-me na abertura de uma conta com a qual nada tive a ver, até porque é de 1998, anterior à minha relação profissional com Rosalina. Esse argumento não foi provado nem no processo português nem no processo que ela meteu na Suíça.
O Ministério Público de Zurique nem sequer admitiu a possibilidade de abrir uma investigação.
Preferia ser julgado em Portugal?
Não confundo a polícia brasileira com o seu sistema judicial. A questão colocou-se junto das autoridades brasileiras e é a elas que, a seu tempo, serão levadas as razões da minha defesa.
Que imagem acha que as pessoas têm de si?
Isto é uma entrevista, não é um exercício de psicanálise.
Quero perceber se, independentemente do que vier a acontecer, considera que vai a tempo de recuperar a sua imagem pública.
Sou absolutamente inocente das acusações que me são feitas. Mas não pode haver uma imputação mais tremenda a um ser humano do que aquela que me foi feita.
Está disposto a comparecer no julgamento?
Como sabe, não posso deslocar-me de Portugal.
Sei, mas essa situação pode, entretanto, alterar-se.
Não é resposta que possa dar neste momento.
Admite que, em determinada altura, e dadas as suas origens humildes, se possa ter deslumbrado.
Não tenho vergonha das minhas origens.
Acho bem que não tenha. Mas a pergunta era esta: admite ter-se deslumbrado em alguma altura da vida, tendo em conta os cargos que ocupou e o prestígio dos mesmos?
Cometi muitos erros na vida profissional e política. Se tivesse deslumbramento pelos cargos políticos, continuaria a exercê-los porque me foi proposto que o fizesse.
Sair da política foi uma opção de vida que tomei em 2009, quando era deputado.
Referia-me ao deslumbramento que esses cargos permitem e não ao deslumbramento pelos cargos.
Sei que muita gente me acusa disso, mas não.