A segunda parte da entrevista a José Sócrates, emitida ontem à noite na TVI, foi mais esclarecedora que a primeira no que ao processo diz respeito – com o ex-primeiro-ministro a ser confrontado com perguntas sobre os milhões na Suíça em nome de Carlos Santos Silva; a casa de Paris; as casas da mãe vendidas ao amigo ou os códigos que usava quando falavam ao telefone. Ainda assim, pelo meio de muitas respostas redondas, ataques ao Ministério Público e ao “Correio da Manhã”, há muitas perguntas que ficaram por fazer e muitas respostas que ficaram por dar – essenciais para compreender porque José Sócrates está indiciado por fraude fiscal, corrupção e branqueamento de capitais. A VISÃO deixa 14.
1. Se a venda das casas da sua mãe ao empresário Carlos Santos Silva é legítima por que razão fez desaparecer documentos da sua casa quando saiu a primeira notícia sobre a investigação?
O Ministério Público já tinha Carlos Santos Silva e José Sócrates sob escuta quando, no Verão de 2014, o ex-primeiro-ministro foi confrontado pela “Sábado” com a suspeita de que estaria a ser investigado no processo Monte Branco. Sócrates era afinal um alvo, não do Monte Branco, mas da Operação Marquês. Nesse dia, Sócrates pediu a Carlos Santos Silva para ir a sua casa. E nessa semana, por sua vez, Santos Silva pediu a Rui Mão de Ferro, um dos últimos a ser constituído arguido no processo, para aparecer de urgência no seu escritório nas Torres de Lisboa. Durante as buscas, os investigadores concluíram que aquela terá sido uma medida de emergência para Santos Silva se desfazer de provas que o ligariam a Sócrates. Na casa de Rui Mão de Ferro, um dos alvos das buscas de Novembro, foram encontrados documentos relacionados com o então motorista de José Sócrates, João Perna, e com os apartamentos que Santos Silva comprou à mãe de Sócrates. O nome de Rui Mão de Ferro já não era uma novidade para a investigação: terá sido uma das pessoas que ajudou a comprar 12 mil exemplares do livro de Sócrates e estaria ainda ligado aos negócios da compra de direitos televisivos da liga espanhola de futebol, negócio encabeçado por Santos Silva e Rui Pedro Soares.
Durante o primeiro interrogatório judicial – a que foi sujeito nos dias seguintes à detenção, e já divulgado pela “VISÃO” -, os investigadores perguntaram a Sócrates se conhecia Rui Mão de Ferro. Sócrates disse apenas ter ouvido falar do nome: lembrava-se porque o nome era fácil de memorizar. Desta vez faltou esta pergunta: se Santos Silva comprou casas da mãe porque eram um bom investimento imobiliário, e se essas compras não serviam apenas para disponibilizar dinheiro a José Sócrates, então por que razão esses documentos foram escondidos com tanta urgência?
2. Por que razão o seu filho não poderia falar sobre a casa de Paris ao telemóvel?
Escutas transcritas no processo mostram que o filho de José Sócrates – que ficou a viver com a mãe, Sofia Fava, num aparthotel em Paris quando o apartamento de Santos Silva estava em obras – disse a José Sócrates, durante um telefonema em que se mostrava triste e revoltado por estar há meses a viver num hotel, que já sabia que não podia falar sobre o assunto da casa de Paris ao telefone. Nesse telefonema percebe-se também que Sócrates terá contado várias versões sobre aquele apartamento. O filho, por exemplo, dizia que Sócrates lhe havia dito que depois das obras o apartamento seria vendido. Apesar de Sócrates insistir que Santos Silva lhe emprestou a casa por serem bons amigos, foi sempre o ex-primeiro-ministro quem tratou das obras e quem ofereceu a casa a amigos como se da sua casa se tratasse. Ficou por explicar também se era uma casa de um amigo porque é que o filho não poderia falar abertamente sobre o assunto ao telefone.
3. O amigo também pagava a casa do filho de Pedro Silva Pereira em Paris ou era José Sócrates quem a pagava? Em qualquer dos casos, porquê?
Além do apartamento onde morava o filho de José Sócrates na capital francesa, Carlos Santos Silva também pagaria a casa onde morava o filho de Pedro Silva Pereira, na mesma cidade. É pelo menos esta a tese do Ministério Público. Faltou perguntar se Santos Silva também é amigo do antigo ministro da Presidência, se Sócrates é que assumia aqueles encargos, apesar das suas alegadas “dificuldades financeiras”, ou se é tudo um grande equívoco dos investigadores.
4. Teve ou não ou papel relevante na escolha de Armando Vara para a administração da Caixa Geral de Depósitos?
É uma das relações estabelecidas pelos investigadores quando chegaram a Vale do Lobo. Helder Bataglia e o holandês Jeroen Van Dooren, que transferiram dinheiro para as contas de Barroca (que acabou na conta de Santos Silva), tinham ligações ao empreendimento de luxo no Algarve: o primeiro enquanto accionista, o segundo enquanto cliente. O resort beneficiou de um financiamento bancário da Caixa Geral de Depósitos? Em que momento? Quando Armando Vara era vice-presidente do banco público e Sócrates era primeiro-ministro.
5. Fala de perseguição e de ódio pessoal do Ministério Público. É perseguido há 20 anos (desde o Cova da Beira)?
Falar do nome de José Sócrates obriga a lembrar a Operação Marquês, o Face Oculta, o Freeport, a licenciatura na Independente, mas também o Cova da Beira. O processo esteve em investigação cerca de dez anos. Em 2003, a PJ quis fazer buscas à casa de José Sócrates mas o Ministério Público não autorizou. O caso obriga a recuar a 1996, quando José Sócrates era secretário de Estado do Ambiente.
6. Sabe porque é que dinheiro de duas pessoas que conhece – Helder Bataglia e Armando Vara – se cruzam com as contas na Suíça de Joaquim Barroca e de Santos Silva?
Armando Vara terá recebido dois milhões de euros, numa conta conjunta que tinha com a filha, Bárbara Vara. O Ministério Público suspeita que seria essa a sua contrapartida pela sua intervenção em Vale do Lobo. Helder Bataglia, por sua vez, terá transferido para as contas de Joaquim Barroca, patrão do grupo Lena, 12 milhões de euros.
7. Armando Vara tinha negócios com o grupo Lena ou com o seu amigo Carlos Santos Silva?
Sócrates disse, durante a entrevista, acreditar na inocência de Armando Vara. Não disse se encontrava alguma explicação para Armando Vara ter recebido dois milhões de euros – que não no âmbito de uma contrapartida.
8. Se não tem “meios de fortuna”, e recebia apenas um rendimento da Octapharma, como tencionava pagar os empréstimos de Santos Silva e os três empréstimos que contraiu na CGD no espaço de um ano? Havia a expectativa de receber alguma oferta de trabalho? Esperava mais algum dinheiro da sua mãe?
José Sócrates disse apenas que terá pretendido hipotecar a sua casa, mas que terá sido demovido dessa ideia por Santos Silva. Se a casa era um dos seus únicos poucos bens, que outra solução lhe pareceria viável? Só em dinheiro vivo, o Ministério Público diz que Santos Silva terá emprestado a Sócrates 1,2 milhões de euros. O ex-primeiro-ministro diz que esses números são ficção, que tem apenas uma ideia mas precisa de falar com Santos Silva para saber ao certo quanto lhe deve.
9. Se vivia com o dinheiro da sua mãe por que razão era ela quem lhe ligava várias vezes a pedir dinheiro?
Santos Silva terá comprado a casa da mãe de Sócrates, do prédio da Rua Braancamp, em Lisboa, por 600 mil euros. Desses, pelo menos 450 terão ido para a conta de José Sócrates na Caixa Geral de Depósitos. Sócrates alegou durante a entrevista à TVI que se sustentou muitas vezes assim, com dinheiro da mãe. Faltou perguntar, então, se o dinheiro era da mãe, por que razão a mãe, Maria Adelaide Monteiro, lhe ligava várias vezes a pedir dinheiro? E em código? Um deles terá sido este: ligou a Sócrates para dizer que estaria “depenadinha”. Como o ex-primeiro-ministro não terá percebido à primeira, Adelaide Monteiro terá insistido: “Sem penas, estás a perceber?”
10. Como explica a enorme disponibilidade de Santos Silva para responder imediatamente aos seus pedidos de empréstimos em dinheiro vivo?
É um dos dados do processo que mais impressiona os investigadores – e ajuda a sustentar a tese do Ministério Público de que Santos Silva era um mero testa-de-ferro do dinheiro de Sócrates. Quase sempre quando Sócrates ligava ao amigo a pedir “fotocópias”, “queijinhos” ou “o mesmo que da outra vez”, Santos Silva providenciava imediatamente, muitas vezes interrompendo o trabalho ou mudando os planos que tinha para aquele dia. Até mesmo quando estava fora de Lisboa, Santos Silva apresentava uma solução, arranjando um intermediário para a passagem de dinheiro – como seria o caso da mulher, Inês do Rosário.
11. Diz que palavras como “fotocópias” não eram códigos para pedir dinheiro. Então porque é que Santos Silva levantava dinheiro sempre no seguimento dessas conversas?
José Sócrates admitiu que não falava à vontade ao telefone, precisamente por receio de estar sob escuta. Mas insiste que a alegada linguagem de código apontada pelo Ministério Público é pura fição. Faltou explicar que a tese do Ministério Público não se constrói apenas com as palavras “fotocópias” ou “documentos” faladas ao telefone, mas com o que Santos Silva faria depois desses telefonemas: ora levantava dinheiro, ora mandaria entregá-lo, a maior parte das vezes por via do motorista João Perna.
12. Se “aquela coisa de que gosto muito” não era dinheiro, então o que era?
Sócrates disse na entrevista à TVI que não era dinheiro. Faltou explicar então do que gostava tanto.
13. Diz que passa férias com Santos Silva há 20 anos. Foi sempre ele quem as pagou?
Como a investigação começou em 2013, não é fácil para os investigadores apurarem quais as despesas anteriores a essa data, que favoreciam Sócrates, e terão sido suportadas por Santos Silva. Sabe-se apenas, por exemplo, que quando ainda era primeiro-ministro, terá recebido, por exemplo, em 2010, uma transferência do amigo no valor de 7500 euros. Esse dinheiro junta-se a pelo menos 60 mil euros pagos a Sofia Fava, ex-mulher de José Sócrates, às férias de fim-de-ano em Veneza e outras no Pine Cliffs Resort, em Albufeira e ainda aos pagamentos a Sandra Santos, uma das misteriosas mulheres da vida de Sócrates que nos telefonemas entre amigos era tratada como “o senhor S”. Tudo isto a cargo do dinheiro depositado nas contas de Santos Silva. As antigas secretárias de Sócrates quando era primeiro-ministro também contaram ao Ministério Público como tratariam das férias conjuntas entre Sócrates e Santos Silva e como eram suportadas pelo segundo.
14. Há alguém próximo de si que não tenha recebido dinheiro de Santos Silva?
O Ministério Público alega que Santos Silva era chamado a suportar a maior parte das despesas de José Sócrates; as viagens e as férias de Sócrates e da sua então namorada; encargos da ex-mulher de Sócrates, Sofia Fava, e do seu companheiro; as viagens e os pedidos de ajuda financeira de Sandra Santos, uma amiga de Sócrates de ascendência cabo-verdiana, que vivia na Suíça; e ainda outras quantias para amigos e amigas do ex-primeiro-ministro. O dinheiro de Santos Silva serviria ainda para ajudar Sofia Fava a pagar empréstimos bancários; para pagar imóveis e despesas da mãe de Sócrates; comprar a casa de Paris (cujas obras terão sido decididas por Sócrates); suportar os encargos com o seu motorista; adquirir obras de arte que estariam na casa do ex-primeiro-ministro e comprar os livros que terão permitido catapultar A Confiança no Mundo, primeira obra de Sócrates, para os primeiros lugares dos top’s. Todas as pessoas à sua volta dependeram da generosidade do amigo e empresário Carlos Santos Silva?