Coisas. Intelectual, devorador compulsivo de livros, amante de poesia, provavelmente nunca escolheria a palavra coisas para traçar o próprio perfil. Assumindo que o não dito pode ser mais clarificador para um homem que chegou até aqui sobretudo graças aos discursos, comecemos por aquilo que diz importar-lhe menos: as coisas.
Conduz um Lancia com mais de 15 anos que já nem se fabrica e foi comprado a um particular que o rodava há 6 anos. “Não gosto de dinheiro, não consumo.” Mesmo os livros, garante, são cada vez mais comprados em feiras de velharias. “A ideia de gastar muito num carro ou comer num restaurante caro incomoda-me.” Com o que veste, muitas vezes comprado na feira, importa-se tão pouco que os amigos gozam quando entendem que a veste cinzenta já exagera: “Conheço esse casaco.” Se o convidam para encontros com jantar, é provável que responda “apareço lá depois”. Quem se aproxima à hora de almoço pode muito bem vê-lo contentar-se com meia fatia de salame de chocolate e umas cerejas. “Sou frugal”, admite. De tal forma que os amigos antecipam uma campanha penosa: “Não sei como vai aguentar de banquete em banquete.” No máximo, imaginam-no em tertúlia à volta de um bom copo de vinho tinto e uma tábua de queijos.
É também este desprendimento das coisas que pode ajudar a perceber como se torna independente aos 16 anos (o professor da escola primária, em Caminha, incitou-o a fazer dois anos num só), quando entra para a universidade, em Coimbra, e passa a fazer parte da Académica.
Em Coimbra, onde deixou mais memórias pela atividade política do que pela farra estudantil, vive com o ordenado do clube: 1300 escudos, dos quais retirava 900 para pagar a residência estudantil. O resto “era uma fortuna” para os tempos ainda de Salazar.
Carlos Piló, hoje com 60 anos, professor do primeiro ciclo em Viana do Alentejo, partilhou casa com o candidato à Presidência da República, em Coimbra. Recorda ainda uma noite em que o amigo chegou a casa às três da manhã, em mau estado.
“Fizemos uma manifestação na Praça da República, de celebração da Tomada da Bastilha. Aproveitávamos estas datas para distribuir panfletos contra o regime.” A polícia de choque esperava-os, batendo os cassetetes nos escudos, uma manobra de intimidação dos estudantes. “Perdi-o na confusão. Chegou a casa ferido, levou bastonadas a sério.” Piló concluía o liceu e ajudava o amigo António a memorizar os textos das peças que interpretava no Teatro dos Estudantes da Universidade de Coimbra. Um dos textos que representou foi Woyzeck, do alemão Georg Büchner, “peça muito acarinhada, naquele tempo, em Coimbra”.
Apesar de se oporem ao regime e à guerra colonial, não militavam em nenhuma formação política. Mas, assegura Piló, andavam sob vigilância da PIDE, a polícia do regime. “Depois dos ensaios do teatro, os agentes seguiam-nos. Muitas vezes sentavam-se no fundo do elétrico e nós, atléticos, saíamos com a máquina em andamento, deixando-os lá dentro.”
Craque da Académica
Entre a paixão pelo futebol e pelo teatro, a licenciatura em Matemática haveria de ficar para trás. José Manuel Crispim treinou António Nóvoa no ano letivo de 1972/73, em Coimbra. Aos 18 anos, o estudante de Matemática era uma promessa dos juniores da Académica, que jogavam no campo de Santa Cruz. “Era tecnicamente muito bom. Nos campeonatos distritais jogava como médio ofensivo e no campeonato nacional tinha uma posição mais defensiva”, relembra José Manuel Crispim, 72 anos, que “ainda dá uns toques” com o grupo de veteranos da Académica.
António Nóvoa vivia num quarto pago pela Académica. Para o clube era importante que os seus jogadores fossem bons alunos. “Chamava a atenção dos outros jogadores para o exemplo dele: era bom estudante, um moço excecional”, conta Crispim.
Foi o treinador que sugeriu a sua passagem à equipa de seniores da Académica, mas António Nóvoa abandonaria Coimbra para regressar a Lisboa. “Disse-me que o pai o tinha chamado de regresso a Lisboa.” Já na capital, em 1973, entra para o Conservatório de Lisboa, que passara a oferecer cursos superiores depois da reforma do ensino artístico empreendida por Veiga Simão. Foi colega da atriz São José Lapa e do encenador Carlos Fragateiro. “Tornámo-nos rapidamente amigos e formámos a primeira comissão de curso.” Fragateiro, 64 anos, encenador e professor na Universidade de Aveiro, integra, com António Nóvoa, em 1977, uma equipa que reviu os programas do primeiro ciclo. “Lutámos pela manutenção do ensino artístico e conseguimos que houvesse espaço para o movimento e drama nos currículos.” No final do curso, os recém-formados pelo Conservatório espalharam-se pelo País. António Nóvoa foi ensinar para o Magistério Primário de Aveiro e Carlos Fragateiro radicou-se em Leiria.
Em Aveiro, Nóvoa fundou o Grupo Experimental de Teatro da Universidade, em 1979. “Tinha uma enorme capacidade de relacionamento e de intervenção”, nota Carlos Fragateiro. Os dois amigos lançam nessa altura os Encontros Internacionais de Teatro e Educação, que culminariam, em 1992, com a organização do Congresso Mundial de Teatro.
Carlos Fragateiro acredita que o amigo dará um “Presidente da República a 100 por cento”. Porquê? “Tem excelente formação na área da Língua, da Matemática, das Artes e do Desporto. É um homem da Nova Era. Precisamos de uma nova Escola de Sagres e ele será um bom timoneiro.” Em Aveiro, a encenação que fez de Mãe Coragem, de Bertolt Brecht, “foi muito entusiasmante”, relata Idália Chaves, 75 anos, professora aposentada da Universidade de Aveiro e antiga colega de Nóvoa no Magistério Primário. Idália ensinava Educação Física aos futuros professores do ensino primário e Nóvoa Expressão Dramática.
“Partilhávamos o mesmo espaço de ensino, o ginásio”, lembra Idália, que mais tarde viria a ser orientanda de doutoramento de António Nóvoa, na Universidade Técnica de Lisboa. “Era extremamente avançado para a época e as suas ideias de grande encantamento e novidade.”
Sozinho no palácio
Se o interesse ou desinteresse pelas coisas pode ajudar a traçar-lhe o perfil, também é verdade que nada ficará claro sem as pessoas da vida de Nóvoa. Primeiro a família.
O pai, juiz, Alberto Sampaio da Nóvoa, termina a carreira como conselheiro do Supremo Tribunal Administrativo, depois de ter sido ministro da República nos Açores.
A mãe, Saladina Sampaio da Nóvoa, dona de casa, era a matriarca a que todos recorriam.
Perdida no ano passado, de cancro, e de desgosto, pela morte da filha mais velha, com a mesma doença, o clã Nóvoa passou a ser uma família de homens. Resta o primado masculino do pai, de 87 anos, e os três irmãos de António Nóvoa. Além do filho único, André, 29 anos, militante do Livre.
Mas o clã, que juntou famílias de Guimarães e da Régua, parte descendente do historiador Alberto Sampaio, chega à centena.
Juntam-se na casa de família em Boamense, Vila Nova de Famalicão, terra da infância do candidato à presidência, pelo Natal, a Páscoa e as vindimas.
Foi no santuário dos Nóvoa que António se estreou nas artes cénicas. “Uma das nossas brincadeiras era fazermos teatrinhos.
Cobrávamos bilhetes, depois repartíamos o dinheiro e comprávamos rebuçados e amendoins. Ele era o organizador, o líder natural”, conta uma das primas, Emília Nóvoa, 56 anos, também historiadora.
O casamento de António Nóvoa, aos 19 anos, com Lénia Real, apanhou toda a grande família de surpresa. Mas Emília também reconhece a decisão como natural numa pessoa com o feitio do primo: “Foi um casamento à António. Apresentou-se casado, em casa. Ninguém fazia ideia. Mas sabia bem o que queria. Para ele era apenas ligar-se a outra pessoa.” E foi assim que resolveram tudo no registo, sem cerimónias nem aparatos.
A discrição sobre a relação mantém-se até hoje. Fora da família, poucos conhecem a mulher. Se for eleito Presidente da República, pretende ocupar o Palácio de Belém “sozinho”.
Ciclista urbano
Depois de Boamense e Coimbra, é em Oeiras que se traça boa parte da biografia do novíssimo político. Luís Miguel Martins, 60 anos, foi colega no 5.º e 6.º anos, no Liceu de Oeiras. A amizade foi forjada no futebol, jogado nos campos improvisados de Nova Oeiras, uma zona de expansão da vila nos anos 60, onde se radicaram famílias jovens, lembra o proprietário do bar Beer Hunter. “Ele jogava muito bem futebol, era o melhor do nosso grupo.” Só não ia em cantigas de amigo: “Um dia tentámos iniciá-lo no tabaco, mas nunca fomos bem sucedidos ele experimentou, tossiu e nunca mais quis.” Outros entraram depois na vida de António Nóvoa, mas nunca mais o perderam de vista, como Sérgio Niza, fundador do Movimento da Escola Moderna em Portugal.
“Conheci Nóvoa quando saiu do Conservatório, aos 22 anos. Chamaram-me a atenção para ele porque tinha sido um aluno excecional. Convidei-o para a redação dos programas do ensino primário”, recorda.
Tantos anos passados, continua a ver-lhe a mesma endurance física e mental. A física pratica-a com o futebol, pelo menos uma vez por semana, e com a bicicleta, que pedala sem grande esforço entre Oeiras e Lisboa.
A mental será, vaticinam os mais próximos, o que lhe permitirá aguentar a crueza da exposição política, especialmente para quem nunca passou por lá. “Ele não foge, enfrenta. Nesse contexto, quanto mais o picarem, mais energia terá. Em vez de o enfraquecerem, os ataques reforçam-no”, garante o amigo do tempo de Coimbra, Manuel Lisboa, que, tal como Nóvoa, também mudou de curso pouco depois de entrar na faculdade. Manuel Lisboa deixou a engenharia eletrotécnica pela Sociologia e é hoje professor na Universidade Nova de Lisboa. António Nóvoa trocou a Matemática pelo teatro. Ambos casaram aos 19 anos e ambos fizeram carreira na capital.
Mas António Nóvoa apostaria também num percurso internacional. Primeiro Doutoramento em Ciências da Educação, pela Universidade de Genebra, na Suíça.
Segundo doutoramento em História, pela Sorbonne, Paris. Além de artigos e livros publicados em vários países.
Embora António Nóvoa cultive a imagem do acaso que lhe acontece, Manuel Lisboa recorda um amigo de juventude que “pensava muito antes de tomar decisões”.
E a característica mantém-se até hoje.
O outro lado da estrela rock
Na Universidade de Lisboa há quem veja a candidatura à Presidência da República como uma reação ao facto de não ter sido chamado para ministro da Educação do atual Governo. “Muito inteligente e hábil na avaliação das circunstâncias”, terá “definido os seus objetivos há muito tempo”.
Os críticos do seu mandato na reitoria lembram que “quis desburocratizar, mas a universidade nunca foi tão burocrática”.
Mais preocupado com a imagem do que gosta de admitir, confirma audiências antes de decidir se fala publicamente nalgumas plateias.
Segundo os que preferem chamar-lhe Névoa, o mínimo que admite é sala cheia.
Mas até os mais críticos reconhecem que “quem gosta dele, gosta como se fosse um ídolo de rock”.
É assim no Brasil, onde há muito se tornou referência na área da Educação, como provam as palavras do senador Cristovam Buarque: “Gostaria mesmo era que ele fosse candidato presidencial no Brasil.
É capaz de perceber os problemas com uma ótica humanista. Para o mundo, seria bom um presidente como Nóvoa.”
A mesma linha é seguida por Maria de Fátima Ramos Brandão, diretora Técnica de Ensino de Graduação na Universidade de Brasília, onde Nóvoa colaborou na discussão sobre o futuro da Universidade. “O Professor Nóvoa tornou -se ‘nosso’ e não somente dos portugueses. A sua capacidade de análise, segundo uma perspetiva histórica, crítica, bem-humorada e criativa, aprofundou temas atuais sobre os rumos das universidades e das políticas públicas de educação.”
Vera Gaspar, que trabalhou com Nóvoa no projeto de pesquisa Estudos comparados sobre a escola: Brasil e Portugal séculos XIX e XX, para organizar redes de investigadores, realça a fama na área da Educação.
“É hoje um dos principais nomes do cenário internacional. Mas não menos importante é a sua trajetória como gestor. Ouvido atento e caneta na mão marcam a sua agilidade.”
Dia de Portugal e de Nóvoa
Política. O único quadro incompleto necessariamente incompleto é o da política. Mas há esboços. A passagem pelo Palácio de Belém durante a presidência de Jorge Sampaio, enquanto consultor para a área da Educação é um deles.
Era a primeira presidência aberta de Sampaio para a educação, em 1996, e Ana Maria Bettencourt, na altura assessora do Presidente da República, recorda o empenho de AntónioNóvoa no resgate das gémeas de Mafómedes. As duas meninas de 10 anos iam abandonar os estudos para ajudar no sustento da família. “Nóvoa e a equipa conseguiram que voltassem à escola.
Hoje são ambas licenciadas. Uma é técnica de radiologia e vive em Bruxelas. Ficámos sempre ligados ao percurso delas.” Apesar de admirar a capacidade de ouvir e de intervir de António Nóvoa, a antiga deputada do PS admite que nunca lhe ocorreu este percurso. “Só depois do 10 de Junho comecei a pensar nisso.” O mesmo aconteceu a outros ouvidos atentos, entre os quais os de João Duarte, 62 anos, escultor e professor aposentado da Faculdade de Belas Artes. O discurso de Nóvoa nas comemorações do Dia de Portugal de 2012, a cuja comissão organizadora presidiu, denunciava a difícil situação dos portugueses: “Começa a haver demasiados ‘portugais’ dentro de Portugal. Começa a haver demasiadas desigualdades.
E uma sociedade fragmentada é facilmente vencida pelo medo e pela radicalização.” Depois de o ouvir, João Duarte procurou a secretária dele na Universidade e disse-lhe: “O AntónioNóvoa devia candidatar-se a Presidente da República.” Ao que ela respondeu: “Eu também acho”.
Cruzou-se com Nóvoa em 2006, altura em que o atual candidato à presidência da República foi eleito reitor da Universidade de Lisboa. “Defendia a ideia de uma nova universidade, coesa e com identidade, que fosse uma referência no mundo.” João Duarte sublinha ainda o interesse de António Nóvoa na recuperação da coleção de gessos na Faculdade de Belas Artes.
“Há réplicas em gesso de vários monumentos europeus, alguns dos quais foram destruídos durante a II Guerra Mundial e que por isso têm hoje grande importância.
Ele interessou-se por esse espólio”, conta o escultor, que desenhou várias medalhas para celebrações da universidade. “Fiz e ofereci à Universidade as medalhas para o doutoramentos honoris causa dos três ex-presidentes da República vivos”.
Sobre política ativa há, por enquanto, pouco mais a dizer. A não ser a primeira e talvez única promessa feita até agora.
Apesar de doente, a mãe, falecida em julho do ano passado, teve ainda tempo para perceber que o filho planeava meter-se na política. Não escondeu o esgar de desaprovação, mas fez apenas questão de exigir decoro: “Proíbo-te, em qualquer circunstância, de insultares alguém. De resto, fazes tudo o que quiseres.” O legado impôs-se: “Vou respeitar este compromisso com a minha mãe. Porque ela merece. Mas os portugueses também.” Só o tempo dirá se Sampaio da Nóvoa é, ou não, mais um rompedor de promessas.
Para já, rompeu com a forma de fazer política em Portugal. Só por isso, dizem alguns, já ganhou. Também por isso, apontam outros, carrega pesada responsabilidade.
Coisa (talvez) pouca para o homem que garante: “Neste momento da minha vida, não tenho medo de nada.”