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Intrigados, vários habitantes de Beja descobriram ao acordar, numa manhã daquele abril, que tinham as antenas de televisão destruídas. Não se tratara, no entanto, de qualquer fenómeno de vandalismo coletivo. Se algum dos lesados nunca desvendou o mistério, a verdade é que foi Marcelo Rebelo de Sousa, que andara fugido durante a noite pelos telhados da cidade, até que cá em baixo os ânimos se acalmaram e ele pôde, enfim, descer.
Beja não tinha nada de pessoal contra Marcelo. Ele era candidato por Lisboa, nunca estivera previsto como orador para o comício do PPD no Cineteatro Pax Julia, na noite de 9 de abril. Só que recebera uma chamada inesperada: “Alguns membros do Governo não queriam ir, porque nos tinham avisado de que haveria um boicote. Pediam-nos a nós que fôssemos.” E lá seguiram, ele e Helena Roseta, num mini guiado pelo sindicalista Adriano Tadeu.
O Pax Julia seria cercado por militantes do PUP, o Partido de Unidade Popular. “Eram 200 PPDs lá dentro e cá fora 500 PUPs, que depois entraram” conta Marcelo. Daí que a sessão tenha acabado como se previa: mal e depressa. “Foi um dos comícios mais curtos da minha vida. Durou para aí 20 minutos, porque eles começaram a avançar do balcão para a plateia. Mas nós tínhamos uma praxe que era nunca acabar sem tocar o hino do PPD e o Nacional”. Ato contínuo houve que abrir caminho até à porta lateral, dando e lavando, como sucede em todas as guerras: “Um tipo deu-me uma paulada e eu dei-lhe um murro.” No final, contabilizavam-se vinte e tal feridos.
Mas as hostilidades da noite não se ficaram por ali. O PUP foi depois invadir a sede local do PPD, onde os oradores tinham procurado abrigo. A Marcelo restou-lhe então fugir para o telhado.
Marcelo recorda um outro episódio, se bem que não pelos mesmos motivos. Precisamente no último dia de campanha foi chamado, também à pressa, para um comício em Braga. Mas aí tudo correu de feição. Casa cheia no teatro-circo, de tal modo que, no final, houve até sessão de autógrafos. “Chegou-se-me então uma jovem de formas generosas, levantou a T-shirt e pediu-me que lhe desse um autógrafo no soutien.” Apesar de admirado (“estava-se em 1975!”), o professor caprichou: “Foi uma das minhas assinaturas mais bem feitas em toda a vida.”
Aproveitar o 11 de março
Três semanas durou a campanha para estas eleições, cuja realização chegou a estar tremida. Aliás, tinham chegado a ser marcadas para 31 de março, mas foram adiadas, na sequência do golpe de 11 de março, liderado pelo general Spínola. Mesmo assim, havia à direita quem pretendesse evitar a sua realização.
“Também do lado esquerdo havia algumas vozes a dizer que ainda não podiam efetuar-se”, conta Carlos Brito, então um dos principais dirigentes do PCP. Nalgumas regiões do Norte, queixava-se a esquerda, “os caciques locais” não permitiriam verdadeira liberdade do sufrágio.
“Dirigentes do PCP ainda consultaram alguns militares, designadamente Vasco Gonçalves (ex-primeiro-ministro), e ele discordou. Disse que para os militares era uma questão de honra cumprir o compromisso, assumido em 25 de abril de 1974, de efetuar eleições no prazo de um ano.”
A maneira como se resolveu o golpe do 11 de março, conta Carlos Brito, “foi favorável à própria realização das eleições.” Assim, lá foram marcadas para o último dia do prazo.
Embora fosse o responsável pela organização de Lisboa, Brito foi candidatar-se pelo Algarve, onde tinha sido criado. Das suas memórias de então, conta o comício na esplanada São Luís, cheia de gente. No final, aproximou-se um dos presentes e chamou-o discretamente: “Oh amigo! Onde é que está esse tal monopólios que vocês todos querem atacar?” Enfim, o País real tinha as suas dificuldades em acompanhar a nova fraseologia. Daí para a frente, Brito passou a explicar os monopólios por palavras mais simples.
Outro episódio que recorda passou-se no comício de Olhão. Cinema cheio e pelo menos oito oradores previstos. Até que a mesa notou que, ao fim de cada dois discursos, saia muita gente. Alguém gritou da sala: “Não se preocupem que eles depois voltam!” Pelos vistos, até as plateias mais fiéis tinham os seus limites. Mais a mais, numa sala de cinema, em que os espectadores estavam habituados a um intervalo.
Carlos Brito conta que, na altura da campanha, ainda a onda de violência não atingira a dimensão do Verão Quente. Estava-se ainda na primavera, “se bem, que já quentinha”, ironiza. Houve alguns boicotes no Norte, sobretudo ao PCP, e no Sul o CDS também terá tido as suas razões de queixa, “mas nada que se comparasse ao que se passou no Norte”.
Incidentes propriamente não se verificaram no Algarve. Ali a especialidade era a chamada intervenção para atrapalhar. “Militantes de um partido iam assistir aos comícios dos outros e faziam perguntas difíceis, bem formuladas, só para ver como eles se safavam.”
Se já o recenseamento tinha sido um êxito, com longas filas para inscrição, então a campanha foi participadíssima. E, pelo lado do PCP, sempre com plateias tão cheias que o resultado acabou por ficar muito aquém das expectativas. Segue-se a análise dos números na direção do partido. Os comunistas atribuem o seu resultado a vários fatores, um deles os apelos do membros do MFA ao voto no socialismo. Ora, isso para muita gente teria querido dizer no PS. Além disso, haveria que reconhecer alguns méritos ao próprio PS, para conseguir ter sido a força maioritária: “Eles tinham feito uma campanha muito alegre, simpática, a falar sobre a situação em países como França.
Em contrapartida, o PCP decidira fazer uma campanha “muito ideológica, com a preocupação de não se deixar tomar pelo eleitoralismo”. Mais austera, portanto.
Mas, se este arranque para a Constituinte representou “um balde água fria” para o PCP, já do resultado não pode dizer-se o mesmo: “As direções partidárias envolveram-se muito no PREC e claro que os conflitos que se passavam lá fora se refletiam no Parlamento. Foi preciso um trabalho de bicho-da-seda para negociar cada artigo. Mas, no final, o PCP deu-se por satisfeito com a Constituição aprovada.”
Correr a serra a pé
António Arnaut candidatou-se por Coimbra, numa lista de luxo, encabeçada por Henrique de Barros, que depois presidiria à Constituinte, e a que se juntava Alegre, que tinha “um currículo que ia de Coimbra a Argel”. Quanto a Arnaut, era um advogado prestigiado, que já se candidatara nas eleições de 1969 e abrira a sede local do PS, ainda em 1973, alugando uma casa em seu próprio nome.
Até aí o único lampejo de liberdade permitido pelo regime era o 5 de outubro, quando pelo menos um “Viva a República” era tolerado. “Dar um viva à democracia já era mais complicado, mas então ao socialismo nem pensar. Seria cadeia certa!”
O que lembra melhor dessa campanha? Que foi “um tempo heroico, em que estávamos todos de alma limpa”. Os candidatos pagavam até do seu bolso boa parte das despesas, sobretudo com os cartazes, já que o Estado não pagava a campanha. Os custos restantes eram custeados por rifas sorteadas entre os amigos.
Durante essas semanas calcorreou todo o distrito, andou a pé pelas serras até chegar às aldeias mais recônditas, onde nunca fora um automóvel.
As sessões faziam-se então nas escolas e nos adros das igrejas. A nível do discurso, o seu objetivo era evitar confusões: “Éramos acusados de ser como os comunistas, de querermos tirar as casas às pessoas e fechar as igrejas.” Se a saudação do PS era então a da Internacional Socialista, o punho direito erguido, Arnaut diz que foi por sugestão que os socialistas, também para se demarcarem, passaram a levantar antes o esquerdo. E arranjou um slogan muito pessoal para explicar a ideologia do PS a plateias pouco sofisticadas: “Nem pão sem liberdade, nem liberdade sem pão.”
Apesar de Coimbra ser um distrito do litoral, mais tolerante do que o interior, mesmo assim a campanha do PS não foi completamente imune a incidentes. Como no dia em que foram a Febres, no concelho de Cantanhede, e constataram que não tinham chave para a sala onde se destinavam. “Subi para um bidão e tentei falar de lá, mas fomos apedrejados.”
A campanha tinha as suas bizarrias, com solidariedades inesperadas. “Fazíamos a cola em baldes. E, assim, como às vezes nos arrancavam os cartazes que acabávamos de colocar, também chegávamos a emprestar cola a brigadas de outras forças políticas que nos pediam.”
Mas Arnaut faz questão em que as notas a reter destas suas memórias não sejam os incidentes mas as expectativas que se abriam: “Era um tempo em que havia futuro. Hoje, resta a liberdade, e a parte do SNS que ainda não destroçaram.” E resta, claro, a Constituição.
Basílio Hora era candidato do CDS por Lisboa. Daquela campanha recorda que foi “duríssima” para o seu partido que, mais a mais, perdeu à última hora o seu parceiro de coligação, o Partido da Democracia Cristã (PDC), que surgiu na lista dos ilegalizados após o golpe de 11 de março (ver caixa).
“Tivemos que refazer as listas rapidamente, com alguns militantes do PDC, mas a título individual, já que o CDS acabou por ir às urnas sozinho. Uns aceitaram, outros fugiram”, conta Basílio. Segundo este ex-dirigente centrista, praticamente não houve comício deste partido, o único que, como diz, não se reivindicava do socialismo, que não terminasse mal. Aliás, o CDS fez poucos comícios. Por exemplo, em Lisboa, promoveu apenas um, no Campo Pequeno, e não sem antes tomar previdências. “Eu e o Adelino (Amaro da Costa) fomos falar com o Vasco Lourenço e pedimos segurança.” Não muito longe da capital, em Vila Franca de Xira, a tentativa de fazer um comício tinha-se revelado quase fatal: “Acabou ao tiro. O carro do Diogo (Freitas do Amaral), ficou com um pneu furado e estávamos a ver que nem conseguíamos chegar à autoestrada!”.
E porque não votar em branco?
O então capitão Vasco Lourenço contesta a versão de que o MFA tenha feito apelo ao voto em branco, uma das polémicas surgidas na ocasião. Ou melhor, explica como surgiu esse equívoco. “Tínhamos feito as campanhas de dinamização e aparecia muita gente a pretender que o MFA concorresse. Nós dizíamos que não.” Mas rapidamente se generalizou a ideia de que um voto em branco significaria um voto no MFA.
“O Presidente da República (Costa Gomes) e eu, como porta-voz do Conselho da Revolução, não fizemos apelo ao voto em branco. Mas houve, de facto, uma fação pequena, ligada à 5.ª Divisão, a propor isso. Foi uma iniciativa com pouco impacto.”
Pelo lado dos militares, bem mais importante foi o primeiro Pacto MFA-Partidos, aprovado em plena campanha eleitoral, na sequência da assembleia-geral do MFA, efetuada a 7 de abril. Aliás, o objetivo era precisamente apresentar aos partidos os princípios que os militares queriam ver consagrados na Constituição. “Esse primeiro pacto era, de facto, um bocado leonino”, comenta Vasco Loureço. Propunha nem mais nem menos do que a criação de duas câmaras, uma com os deputados eleitos pelo País, outra com representantes do MFA. O Presidente da República seria eleito por um colégio eleitoral, segundo os resultados conseguidos nas duas câmaras.
Mesmo assim, só havia no Parlamento, conta aquele militar, um deputado eleito por um partido que não assinara o pacto – o da UDP.
O MFA e os partidos viriam a assinar um segundo pacto, esse “já muito mais democrático”, como diz Vasco Lourenço, mas só em fevereiro de 1976. Entretanto, o PREC tinha passado à história e o mundo mudara.