É difícil um pai ter sempre uma resposta pronta para as interrogações existenciais de uma criança de quatro anos. A F. desarmou-me completamente quando me veio com aquela, ao retirá-la das minhas cavalitas doridas, depois da descida da Avenida da Liberdade, em que ela e a irmã, B., de seis anos, ocuparam alternadamente os meus ombros. “Ó pai, porque é que a “esquerda unida, jamais será vencida”? O que é a esquerda?”
Tive de parar para pensar o que responder.
Afinal, de contas, “esquerda” fora a palavra que ela mais ouvira, desde que iniciáramos, no Marquês de Pombal, a longa marcha com as As Toupeiras. Quase 150 pessoas e 91 cartazes, com rostos de um lado e frases do outro, levaram à Avenida as ideias de gente que teve um papel revolucionário na história da humanidade – de Galileu Galilei a Marx, passando por Emiliano Zapata, Lou Reed ou Beatriz Angelo (primeira mulher a votar em Portugal). Tudo pessoas que, à sua maneira, expressaram pensamentos e tiveram atitudes suscetíveis de serem rotuladas como “de esquerda”.
Ao grito “pela esquerda é o caminho”, eram umas cinco da tarde quando o grupo abandonou a ordem que lhe coubera na manifestação (a cauda) e, em marcha acelerada pela lateral esquerda da Avenida, conseguiu, finalmente, começar a desfilar. A partir daí, sucedeu tantas vezes que se pode dizer que as As Toupeiras furaram ou infiltraram-se no cortejo, entoando várias palavras de ordem (se é que havia ordem), sendo a mais gritada “a esquerda unida jamais será vencida”. Sobre os meus ombros, a B. acompanhou, convictamente o coro, erguendo no ar um dos muitos cravos encarnados que recolheu no trajeto. Mas não fez perguntas. Sabia ao que ia e já aprendeu o que foi o 25 de Abril.
A ação subversiva d’As Toupeiras partiu de uma iniciativa das artistas plásticas Bárbara Assis Pacheco, Margarida Tengarrinha, Piedade Gralha e Teresa Dias Coelho. Umas com mais passado político, outras com menos, todas num tom mais ou menos vermelho. A ideia foi, neste 25 de Abril, trazer à rua a esquerda na sua diversidade e afirmar que ela não tem de se envergonhar de nada, já que “é pela esquerda que se avança”, conforme se gritou.
Ali estiveram unidas várias esquerdas, tantas quantas os matizes de vermelho que existem. Senhoras burguesas a empunharem cartazes com ditos revolucionários, artistas, intelectuais, trabalhadores precários e sei lá mais quem.
Nos segundos em que estive a refletir antes de responder à F., passaram-me tantas coisas pela cabeça. E vi que a resposta estava ali à minha volta. Afinal, toda aquela gente tinha em comum o facto de já não aguentar uma sociedade cada vez mais desigual. Uma sociedade que produz cada vez mais pobreza por não querer redistribuir a riqueza criada; que gera desemprego e mercantiliza as relações de trabalho; promove a arrogância dos poderes e dos seus acólitos; e impõe o pensamento único da não existência de alternativas ao empobrecimento, de vivermos acima das nossas possibilidades e que, por isso, é preciso acabar com “direitos adquiridos”. Mas essas sabemos nós serem conquistas civilizacionais, obtidas em pelo menos 150 anos de lutas sociais que fizeram avançar a roda da história e progredir a humanidade. E vi que, para nos opormos a isso, as esquerdas que ainda não desaprenderam o princípio da liberdade e da igualdade das possibilidades materiais tem de agir e unir-se.
Talvez não tenha sido a resposta mais esclarecedora, para a F., mas o seu “ah…!” sincero deu-me a entender que compreendeu por que razão fomos como as toupeiras neste 25 de Abril.