Quando enviaram os seus seis filhos adotivos de férias para Mariupol, a cerca de 100 quilómetros de casa, Olga e Denis não imaginavam que uma guerra estava prestes a bater à porta do seu país. O conflito evoluiu rápido e quase de um dia para o outro a Ucrânia tornou-se um cenário instável governado pelo medo e a ansiedade do imprevisível. O casal viu os bombardeamentos das cidades no caminho até Mariupol intensificar-se e a opção de irem em resgate dos seus filhos tornar-se cada vez mais difícil de concretizar. À medida que o exército russo avançava sobre o território ucraniano, crescia também o receio de que os seis jovens pudessem ser levados à força para a Rússia, uma prática cada vez mais comum do inimigo conhecida como adoção forçada.
Inicialmente, e assim que a guerra na Ucrânia colapsou, a 24 de fevereiro, Olga e Denis, assim como muitos outros, tinham esperança de o conflito não durasse mais do apenas alguns dias ou, no máximo, semanas. O receio pela segurança dos seus seis filhos não deixava de os assombrar, mas o casal esperava que, perante qualquer ameaça iminente, as autoridades ucranianas evacuassem as crianças para uma área protegida. Na época, Mariupol era ainda uma cidade segura e não o símbolo de destruição que hoje se assume.
À medida que a guerra se desenrolava, o casal viu-se forçado a fazer uma difícil escolha: ou Denis, o pai das crianças, partia numa perigosa jornada para resgatar os seus filhos, sabendo que o caminho incluía zonas extremamente vulneráveis a bombardeamentos do inimigo, ou deixavam, pelo menos de momento, os seis jovens em Mariupol, uma cidade, como já referido, ainda segura nessa altura. “Começamos a entrar em pânico e não sabíamos qual era a melhor decisão”, admitiu à BBC, Olga.
Chegar a um consenso foi difícil, existiam prós e contras muito fortes em ambas as opções, mas o casal acabou por optar manter as crianças em Mariupol. O conflito, no entanto, e apesar dos apelos feitos em contrário por várias figuras nacionais e internacionais, intensificou-se e a situação dos seis menores, sozinhos numa cidade em crescente ameaça, tornou-se mais vulnerável e perigosa. Pelo resto do país a tensão também crescia e a segurança dos cidadãos era, cada vez mais, posta em causa.
Aquela que era a “normalidade” do país rapidamente se dissipou e uma nova realidade marcada pela violência e pelo medo impôs-se. O casal temia que as crianças ou fossem mortas por uma explosão ou ficassem vulneráveis às vontades do exército russo que era acusado de cometer todo o tipo de atrocidades pela Ucrânia. Vários relatos de civis, adultos e crianças, levados por soldados para a Rússia, começavam a circular e a multiplicar-se. Moscovo nomeou este tipo de movimentações de “evacuações”, enquanto a Ucrânia se referia às mesmas como deportações forçadas, uma reminiscência das práticas vistas sob o governo de Joseph Stalin na década de 1940. E se os seus filhos fossem levados para a Rússia? A questão ecoava nas mentes de Olga e Denis e pesava cada vez mais.
Há menos de um mês, o casal não sonhava ter este tipo de preocupações mas no espaço de uma semana tudo mudou. 2016 foi o ano em que o casal decidiu adotar pela primeira vez e, desde então, a família não parou de crescer. Em fevereiro deste ano, quando a guerra eclodiu, já eram mais de dez em casa: o casal, os seus seis filhos adotivos e os seus três filhos biológicos. Olga era professora de música e Danis um mineiro e até há pouco eram todos uma família feliz e unida. A guerra mudou isso.
Além de fisicamente afastados dos seus filhos, Danis e Olga deixaram de ser capazes de os contactar depois de a eletricidade ter sido cortada no local onde as crianças estavam abrigadas, resultados dos bombardeamentos, e estas deixarem de conseguir carregar os seus telemóveis. A 100 quilómetros de distância e sem terem notícias dos seus seis filhos, o casal também se abrigava na cave de sua casa à medida que a guerra ia tomando conta do país e as bombas caiam do céu. “Fomos bombardeados e bombardeados em todos os lugares, é assustador”, conta Olga.
Sem saberem como estavam os seus filhos ou mesmo onde estariam, o casal decidiu dirigir-se até Zaporizhzhia, uma cidade que sabiam estar a receber pessoas que fugiam de Mariupol. Olga e Denis estavam esperançosos de que as autoridades ucranianas tivessem levado as crianças para lá, mas, chegados ao local, rapidamente perceberam que tal não havia acontecido e, uma vez que também essa cidade estava sob ameaça, optaram por ir para Léopolis, uma região no oeste do país.
À medida que a guerra se ia intensificando e ganhando dimensão outos problemas começavam a surgir. Agora, além da preocupação de não saber dos filhos, Olga também receava que o seu marido, Denis, fosse convocado para o exército, deixando-a sozinha numa jornada em busca de seis dos seus filhos. Relutante, o casal optou por fugir da Ucrânia.
Menos de duas semanas após o início da guerra, Olga, Denis e os seus três filhos biológicos haviam-se tornado refugiados. Ainda assim, e embora agora noutro país, Olga nunca perdeu a esperança de recuperar os seus outros filhos e foi já na Alemanha que voltaram a ter notícias suas. O filho mais velho, Timofey, de 17 anos, conseguiu carregar o telemóvel e enviou uma mensagem à sua mãe a dizer que ele e os irmãos haviam sido transferidos para uma parte da região de Donetsk controlada por separatistas pró-russos, onde foram internados num hospital de tuberculose. Timofey contou ainda que os serviços sociais lhe haviam dito a si e aos restantes filhos do casal que tinham abandonados, oferecendo-lhe a oportunidade de partir por conta própria, o que recusou por não querer deixar os irmãos sozinhos.
Segundo o que conta à BBC, Timofy ficou magoado quando descobriu que os pais já haviam saído da Ucrânia sem eles. “Eu percebo que eles não podiam vir procurar-nos a Mariupol, mas saber que eles tinham ido para o exterior magoou-me”, desabafou.
Olga, no entanto, não havia desistido dos seus filhos e utilizou as redes sociais para dar a conhecer ao mundo a sua situação e pedir ajuda. As respostas que obteve foram frequentemente negativas, com várias pessoas a criticá-la por ter abandonado a Ucrânia e a acusarem-na de não se esforçar o suficiente para resgatar as crianças. Ainda assim, e embora as mensagens que recebia diariamente a magoassem, Olga não se deixou ficar e procurou passar a sua mensagem a órgãos de comunicação de outros países. “Tentei tudo o que pude para tornar a nossa situação conhecida, na esperança de que alguém ouvisse e pudesse ajudar”, conta.
Um futuro incerto
O casal e os seus três filhos foram, entretanto, enviados para a pequena cidade de Loue, no noroeste da França, onde começaram uma nova vida, com empregos e uma casa subsidiada pela Cruz Vermelha. O Presidente da Câmara Municipal da cidade havia convidado dez famílias de refugiados ucranianos para se estabelecerem, oferecendo vantagens aos agregados familiares com filhos adotivos.
Por esta altura, Olga já tinha notícias diárias dos seus seis filhos já que falava todo as noites por chamada com Timofey, uma rotina que ajudou, inclusive, a reparar o relacionamento entre ambos. Apesar do contacto diário, a família continuava separada já que as crianças estavam entregues aos serviços sociais de Donetsk e só poderiam voltar quando estes concordassem em deixá-los partir, o que não era uma tarefa simples tendo em conta que tal só aconteceria se estes fossem entregues diretamente à sua responsável legal: Olga.
Poderia Olga voltar? Talvez, mas teria de regressar ao local de onde fugira. “Era uma refugiada que fugiu da Federação Russa e agora estava a ir para a Federação Russa?”, pensou. Havia muito a considerar e a situação era complexa.
Os serviços sociais de Donetsk exigiram a Olga que enviasse as certidões de nascimento das crianças para provar a sua identidade, mas e se isso fosse um esquema para os colocar novamente para adoção? Uma teia de receios continuava a crescer e as incertezas pesavam mais que as certezas, nomeadamente porque a própria televisão russa continuava a transmitir regularmente relatórios otimistas sobre a “evacuação” de civis das regiões “libertadas” da Ucrânia, como era Donetsk. Já Kiev continuava a relatar deportações forçadas que, no caso de crianças órfãs, poderiam mesmo nomear-se de sequestro. Olga tinha medo de nunca mais voltar a ver os filhos.
Em maio, Putin emitiu, inclusive, um decreto para “simplificar” a emissão de documentos russos para crianças na Ucrânia. O Ministério das Relações Exteriores da Ucrânia protestou, acusando este tipo de práticas de serem uma violação da Convenção de Genebra sobre os Direitos Humanos. No início de julho, o Presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, disse que até dois milhões de ucranianos terão sido deportados à força para a Rússia, incluindo centenas de milhares de crianças.
Uma esperança
Quando as opções começavam a ser cada vez menos e a reunião da família parecia já uma realidade quase impossível, Olga recebeu um telefonema que mudou tudo. Do outro lado da linha, quem ligava era Tatyana, uma voluntária experiente em Donetsk, que se comprometeu a levar as seis crianças até à sua mãe.
Olga e Denis não hesitaram e entregaram os documentos das crianças a Tatyana juntamente com um formulário que a tornaria guardiã legal temporária de todos. Foi um salto de fé que o casal não se arrepende de ter dado.
Apesar das boas notícias, o processo de levar os seis jovens até aos seus pais não foi fácil. Tatyana já havia trabalhado durante muitos anos com crianças órfãs e mães vulneráveis e mantinha uma relação de trabalho com as autoridades, o que poderia ajudar, mas apenas até certo ponto. A viajem, segundo o que conta à BCC Tatyana, implicou levar Timofey e os seus irmãos até à Rússia, daí até à Letónia e depois para a Alemanha, sendo que cada passagem em cada fronteira era um risco. “Todos eles têm sobrenomes diferentes, o formulário original estava em francês, tive de explicar a nossa situação várias vezes a inúmeros guardas de fronteira”, explica. Até ao último momento, a família não sabia se alguma vez estaria junta novamente.
Chegados à Alemanha, concretamente a Berlim, Tatyana entregou finalmente as seis crianças a Denis que depois as levou até à sua nova casa em Loue, França. O reencontro da família foi marcado por muitas lágrimas e longos abraços depois de quase quatro meses de incerteza e medo. Olga abraçava todos os seus filhos enquanto repetia: “Deixe-me olhar para ti, deixe-me olhar para ti! Cresceste tanto, há tanto tempo que não te vejo!”. Timofey evitou mostrar muita emoção: “Estou muito feliz por tudo ter corrido bem, mas também sou mais velho, então não demonstro o quão feliz estou. Estou feliz por estarmos todos juntos novamente e mantive a minha palavra e trouxe as crianças até aos meus pais”.
Olga nunca chegou a conhecer Tatyana, a voluntária que trouxe os seus filhos novamente para perto de si e que hoje descreve como “a nossa heroína”. A sua gratidão será eterna.
O futuro mantém-se incerto, mas o medo dissipou-se com a família reunida. Nos planos imediatos do casal e dos seus nove filhos estão agora umas merecidas férias que Olga admitiu querer passar em Portugal. “Eu nunca vi o oceano”, contou assegurando que a partir de hoje não deixará os seus filhos “novamente fora da sua vista”.