Keir Starmer não gosta de falar sobre si. Mas não se importa de repetir de onde veio. “É verdade que ganho muito dinheiro no trabalho que tenho agora. Mas, quando era criança, o meu pai fazia ferramentas. Trabalhava numa fábrica. É verdade. A minha mãe era enfermeira e, na verdade, passávamos muitas dificuldades. E isso não é razão para rir”, disse uma vez no Parlamento, perante a galhofa ruidosa da bancada dos Conservadores.
As origens marcaram-no. Nascido a 2 de setembro de 1962, Keir Starmer cresceu no Surrey, numa pobre “pebble dash house” (uma construção associada às classes populares inglesas), como faz questão de dizer. Era o segundo de quatro filhos e os irmãos, como se conta na biografia não autorizada escrita pelo jornalista Tom Baldwin, os outros chamavam-lhe “super boy”.
O vestido rasgado e o NHS no seu ADN
Tinha as melhores notas, tocava bem flauta, era um excelente jogador de futebol e ajudava a cuidar dos irmãos. Certo dia, conta Baldwin, saiu para brincar com a irmã Katie, que rasgou um vestido novo no passeio. Quando chegaram a casa, Keir disse-lhe para tirar o vestido. Pegou em agulha e linha e coseu-o sem dizer mais nada, para que os pais não soubessem que se tinha estragado. Tinha nove anos.
O pai, Rod Starmer, era uma figura emocionalmente ausente, mas a mãe, Josephine Baker, que sofria de artrite reumatoide e esteve várias vezes à beira da morte quando Starmer era pequeno, foi uma grande influência. Acompanhar os internamentos de Josephine fez Keir perceber a importância do serviço nacional de Saúde.
Num debate, Starmer garantiu uma vez que nunca iria a um hospital privado, mesmo que tivesse um ente querido numa lista de espera para uma cirurgia. A resposta valeu-lhe muitas críticas. Mas a verdade é que o líder do Partido Trabalhista, que se tornou no próximo primeiro-ministro britânico esta sexta-feira, está há meses à espera de uma cirurgia a um joelho, sem a qual não poderá voltar a jogar futebol, como tanto gosta.
“Eu não uso a saúde privada. Eu uso o NHS [o SNS inglês], onde a minha mulher trabalha num grande hospital. Está no meu ADN”, disse na campanha. A frase causou efeito, mas não afastou o facto de o seu ministro da Saúde sombra ter anunciado a intenção de reforçar as parecerias com privados, “indo mais longe do que o New Labour alguma vez foi” nesta matéria.
Keir Starmer acabou por ir estudar Direito, sem nunca na vida se ter cruzado sequer com um advogado. Queria estudar Ciência Política ou História, mas os pais convenceram-no a fazer “um curso a sério” que lhe desse trabalho. E foi estudar para Leeds, onde viveu num caótico apartamento arrendado com outros estudantes, que ficava por cima de um bordel.
O advogado ativista que se tornou num procurador
Acabado o curso e já com um sentido político, que tinha herdado do pai, um homem que era o típico operário socialista do seu tempo, Keir Starmer começou a trabalhar como advogado de direitos humanos, a profissão onde conheceu Victoria (ou Vic, como lhe chama), que já trabalhava no NHS como jurista e com quem se cruzou a propósito de um trabalho. Casaram-se em 2007.
Ambicioso, Starmer acabou por fazer uma escolha de carreira que era improvável para alguém que se apresentava como um advogado ativista de esquerda, ao concorrer para um lugar de procurador geral, um cargo no qual levou a cabo uma reforma de austeridade, que incluiu cortes de 27% nos custos, mas também a digitalização dos processos.
Na altura, já começava a pensar na hipótese de vir a ser deputado. E dava nas vistas na defesa dos direitos das mulheres, particularmente nos casos de violação. “Pensem na vossa melhor experiência sexual na vida. Agora virem-se para a pessoa que está ao vosso lado esquerdo e partilhem essa experiência. Agora pensem no que é contar a pior experiência sexual de sempre, uma e outra vez, a várias pessoas”, disse uma vez numa intervenção pública sobre o tema.
O ministro sombra do Brexit e a traição a Corbin
Durante a liderança de Jeremy Corbin, o líder mais à esquerda que o Partido Trabalhista teve desde que Tony Blair inventou a Terceira Via, Keir Starmer foi o ministro sombra do Brexit. Uma imagem da qual Keir Starmer se tentou afastar durante esta campanha, fazendo notar o distanciamento em relação a Corbin, que considerou “não estar preparado” para ganhar as eleições em 2019.
O seu biógrafo, Tom Baldwin, contou ao The Guardian que Starmer começou a montar uma equipa para o ajudar na corrida à liderança do Labour em 2018. Em 2020, depois da maior derrota do Partido Trabalhista em 85 anos, Starmer sucedeu a Corbin.
Keir Starmer retirou Corbin das listas de deputados, depois de o seu predecessor ter dito os níveis de antissemitismo do partido estavam a ser “dramaticamente empolados”.
O programa centrista e um pouco vago
Muito menos à esquerda do que Jeremy Corbin, Keir Starmer defendeu o direito de Israel de promover um cerco a Gaza (que incluía o corte de energia e água) em retaliação ao ataque do Hamas a 7 de outubro, apesar de mais tarde ter tentado corrigir essas declarações de defesa de práticas que põem em causa os direitos humanos, dizendo que fora um erro.
Durante a campanha, Starmer tentou suavizar a sua própria promessa de aumentar substancialmente os impostos aos mais ricos, mas continua a prometer um programa de reindustrialização do país e a garantir que irá combater as leis que diminuem os poderes dos sindicatos.
Muito reservado, Keir Starmer evitou comprometer-se muito na campanha, sendo frequentemente criticado por ser demasiado vago nas promessas, e apresentando-se muito menos à esquerda do que Corbin.
Nunca gerou entusiasmo entre os eleitores, mas conseguiu uma vitória esmagadora muito à custa do enorme cansaço dos ingleses depois de 14 anos dos conservadores no poder e com uma economia em mau estado e serviços públicos degradados.