Com o reconhecimento pela Rússia da independência das repúblicas separatistas ucranianas de Lugansk e Donetsk, o gasoduto submarino Nord Stream 2 cumpre o desígnio para o qual há muito parecia estar reservado: o de arma de pressão política num cenário de conflito entre a Rússia e o Ocidente – e ainda nem sequer está em funcionamento.
Esta terça-feira, como resposta aos avanços estratégicos de Vladimir Putin sobre a Ucrânia, o chanceler alemão Olaf Scholz anunciou que o processo de certificação do gasoduto seria suspenso, por tempo indeterminado. Em cinco pontos, entenda-se a importância geopolítica deste “tubo” gigante com 1230 quilómetros de extensão entre a Rússia e a Alemanha.
O propósito da construção
Concluído no passado mês de setembro, o Nord Stream 2 é uma réplica do Nord Stream 1, em funcionamento desde 2011, e visa duplicar a capacidade de fornecimento de gás natural da Rússia à Alemanha, para um total de 110 biliões de metros cúbicos. Tal como o primeiro, liga diretamente os dois países, através do Mar Báltico. Inicialmente, teve investimentos de outras empresas europeias, mas agora pertence apenas à empresa estatal russa Gazprom. Aguarda a certificação do regulador alemão – e, depois, do aval dos parceiros europeus – para entrar em funcionamento. Angela Merkel sempre o classificou como um projeto comercial, mas o seu sucessor acaba de demonstrar que não é bem assim.
O que está em causa
A dependência da Rússia no fornecimento de gás natural à Europa, que hoje se situa perto dos 40%. Os Estados Unidos da América e alguns países europeus são contra esta solução desde a primeira hora, precisamente por aumentar a influência russa sobre os aliados europeus em matéria de energia, com todas as outras implicações que daí advêm. Em 2018, o então presidente dos EUA, Donald Trump, chegou a impor sanções a todos os envolvidos no projeto, o que levou as tais outras empresas a abandonarem o barco. No entanto, Merkel desvalorizou sempre a ideia de que Putin poderia aproveitar-se da arma energética num futuro medir de forças com o Ocidente, e a obra avançou. Apesar de alguns críticos garantirem que a Alemanha não precisa de reforçar o abastecimento de gás natural, o governo tem vindo a fechar as centrais nucleares e a carvão e, enquanto não tem produção e fornecimento suficiente de energia renovável, é nos gasodutos que aposta para esta fase do seu processo de transição energética.
A jogada da Rússia
Com a entrada em funcionamento do Nord Stream 2, a Rússia avança no tabuleiro económico mas também geopolítico. Não é apenas o dinheiro suplementar que vai entrar nos cofres de Moscovo, é igualmente o que deixa de sair para entrar nos de Varsóvia e, sobretudo, de Kiev. Com o abastecimento da Europa através da Alemanha, via Mar Báltico, a Rússia tem a faca e o queijo na mão para deixar de pagar à Polónia e, acima de tudo, à Ucrânia, as taxas que agora paga pelo gás que fornece ao Velho Continente através de gasodutos que atravessam estes países. Por isso o primeiro-ministro polaco dizia no início do mês, numa conferência de imprensa em Kiev ao lado do seu homólogo ucraniano, que “não se pode expressar solidariedade com a Ucrânia com uma mão e assinar os documentos de certificação do Nord Stream 2 com a outra”, num claro recado para a Olaf Scholz. E disse mais, Mateusz Morawiecki: que se a Alemanha desse luz verde ao gasoduto iria estar a entregar a Putin “uma arma” que o líder russo “poderá utilizar para chantagear toda a Europa”.
A posição dos Estados Unidos da América
Afinal, Scholz antecipou-se e jogou ele a cartada do Nord Stream 2, com o adiamento sine die da entrada em funcionamento. Ele próprio já tinha dado a entender essa possibilidade, ao discordar da visão exclusivamente comercial de Angela Merkel e admitindo, no final de janeiro, que o gasoduto poderia entrar no rol de sanções a impor à Rússia. Por outro lado, porém, também havia afirmado repetidas que se tratava de um “projeto privado”. A certeza de que, mais do que uma hipótese, a medida estava decidida chegou do outro lado do Atlântico, no dia 26 de janeiro, através de Ned Price, um porta-voz do Departamento de Estado norte-americano. “Quero ser muito claro: se a Rússia invadir a Ucrânia, de uma maneira ou de outra, o Nord Stream 2 não vai avançar.” Nem foi preciso tanto.
E agora?
A Rússia tem negado até hoje qualquer responsabilidade na escalada imparável do preço do gás natural ao longo dos últimos meses, apesar de muitos analistas lhe apontarem o dedo. Ao cortar nos abastecimentos, os preços dispararam, acusam os críticos, que veem nesta estratégia uma forma de pressão para convencer a União Europeia de que precisa do Nord Stream 2 a funcionar. A Rússia defende-se com o facto de estar a cumprir na íntegra o fornecimento de gás natural a todos os parceiros com quem assinou contratos de longo prazo. O braço de ferro vem de trás e não vai parar por aqui. No Twitter, Dmitry Medvedev, o eterno número dois de Putin e atual vice-presidente do Conselho de Segurança da Rússia, reagiu assim à sanção agora anunciada pela Alemanha: “O chanceler alemão Olaf Scholz ordenou a interrupção do processo de certificação do gasoduto Nord Stream 2. Bem. Bem-vindos ao novo mundo onde os europeus vão pagar em breve 2000 euros por mil metros cúbicos de gás!” Em agosto passado, esta mesma quantidade custava pouco mais de 500 euros.