Há um silêncio estranho quando olhamos para aquele grupo de dezenas de mulheres reunido em Natemba, no distrito da Ilha de Moçambique. As cores das roupas e dos véus – nesta comunidade todos são muçulmanos – que nos despertam todos os sentidos, contrastam com a ausência de som, esperada quando vemos muita gente. Sobretudo quando percebemos que ali estão também muitas crianças, tantas ainda bebés de colo.
Seja como for, a quietude facilita o trabalho de Amina: é com voz serena e gestos tranquilos que explica como se faz molho de tomate, uma atividade que pode parecer corriqueira na Europa, mas que para aquelas mulheres é algo absolutamente exótico. Usam os alimentos de uma ou duas formas – aquelas que conhecem – e conservá-los para os poderem comer ao longo do ano não é, sequer, algo que lhes ocorra.
É, aliás, dessa dificuldade tão básica que advêm muitas das insuficiências nutricionais das crianças moçambicanas, onde não só a comida escasseia como não raras vezes é mal aproveitada. Aqui, as matérias-primas que rendem mais dinheiro são aproveitadas para vender, mesmo que isso signifique uma alimentação menos diversificada.
“Aqui come-se sempre farinha, tubérculos, milho…bastava colocar côco ou amendoim para fazer toda a diferença na alimentação, mas os frutos são vendidos porque rendem muito dinheiro”, explica Milton da Costa à VISÃO. O nutricionista está, desde março do ano passado, a trabalhar com a Helpo no Projeto dos 1000 Dias de Boa Alimentação, um programa que está a ser implementado em conjunto com a ONG Vida, e financiado pelo Instituto Camões. Um programa que explica a importância dos primeiros mil dias de vida na alimentação de um bebé, e que se resume a isto: se uma criança cresce com uma desnutrição crónica que não é corrigida até aos 2 anos, nunca mais se conseguirá resolvê-la. Milton falou com a VISÃO numa das escolas da Ilha de Moçambique, onde este programa já é uma realidade e as crianças comem refeições completas e equilibradas, que se espera que os pais repliquem em casa.
O Plano de Ação Multisetorial para a redução da Desnutrição Crónica data de 2010, quando o Governo moçambicano percebeu que era preciso agir junto das populações para corrigir comportamentos que não exigem um grande esforço financeiro adicional, nomeadamente formar os adultos naquilo que antigamente chamávamos de Roda dos Alimentos.
Agora chamam-se apenas grupos alimentares, e o principal trabalho dos nutricionistas e voluntários que trabalham com a Helpo e a Vida é precisamente tornar esses grupos familiares para os adultos que têm crianças a cargo, explicando-lhes que é essencial que comam alimentos dos quatro grupos essenciais:
No primeiro grupo, o chamado de base, estão alimentos como a farinha, arroz, batata e massa. No segundo, alimentos protetores como hortaliças e frutas. No terceiro, os de crescimento como carne, peixe, ovos, amendoins ou castanhas de caju. Ao quarto pertencem os alimentos com energia concentrada, como o óleo, o mel ou o açúcar. Os pratos podem até ter pouca comida, mas se tiverem um alimento de cada grupo, já estão a contribuir significativamente para a saúde das crianças.
Mas então que fazia Amina com aquele grupo de Natemba no âmbito do Plano dos 1000 Dias? A ativista dava um dos workshops previstos de técnicas de conservação, transformação e armazenamento de alimentos. Neste dia em concreto, ensinava a conservar tomate – o fruto da estação – durante seis meses, fazendo molho que depois é guardado em frascos de vidro e fechado em vácuo. Os olhos brilhantes, os sorriso que se abrem a cada palavra e a alegria com que repetem a receita a pedido de Amina é reflexo do quanto gostam de aprender e de como as novidades são bem acolhidas numa comunidade que vive praticamente isolada.
Aqui há escolas, mesquitas e caminhos improvisados, porque a cidade mais próxima fica a muitas horas de caminhada. Mesmo as hortas comunitárias, que complementam o ensino de produção de alimentos locais e que são também promovidas pelas ONG que estão a implementar este projeto, ficam longe. Moçambique é terra de caminhos longos, e isso não facilita a vida de pessoas que têm demasiado pouco. Mas também não lhes reduz a vontade de viver e de fazer melhor.
Aprender a comer pode parecer algo demasiado básico mas aqui é, muitas vezes, a diferença entre a vida e a morte. No final do ano passado, mais de 850 mil pessoas estavam em situação de insegurança alimentar, segundo dados da Rede de Sistemas de Aviso Prévio contra a Fome. Se tivermos em conta que só os deslocados dos conflitos de Cabo Delgado eram mais de 700 mil, é possível que este número seja bastante superior.
O projeto 100 Dias de Boa Alimentação espera conseguir ajudar, até janeiro de 2023, 15 299 agregados familiares. Dentro destes, 11 669 serão crianças com menos de 5 anos. Isto implica, para além das aulas práticas e o acompanhamento das famílias, formar camponesas para que possam produzir os seus próprios alimentos, cumprindo as necessidades dos tais quatro grupos alimentares e garantindo uma educação para a nutrição que se espera consiga mudar os números da emergência alimentar nos próximos anos.