Dados recolhidos por uma investigação da Sky News indicam que mais de 1500 cães considerados perigosos foram abatidos nos últimos três anos, ao abrigo da controversa Lei dos Cães Perigosos.
A lei em questão foi aprovada pelo Parlamento britânico em 1991 depois de uma série de ataques que envolveram cães de certas raças consideradas perigosas.
Mas a Sociedade Real para a Prevenção da Crueldade contra os Animais (RSPCA) alerta que a lei pode estar a permitir que inúmeros cães sejam abatidos sem necessidade, apenas porque têm um aspeto ameaçador e não devido ao seu comportamento.
Sam Gaines, especialista em bem-estar canino na RSPCA, é crítica da lei e exortou o Parlamento a revê-la. De acordo com Gaines, os cães estão a ser apreendidos e abatidos “com base no seu aspeto” e “a grande maioria deles não representará um risco para a segurança pública”.
O que sabemos sobre a Lei dos Cães Perigosos
A lei foi introduzida em 1991, depois de um chocante ataque de um Pit bull Terrier a uma menina de seis anos, Rukhsana Khan, num parque na cidade de Bradford. A criança sofreu lesões graves e o incidente – a que se seguiram outros, com adultos e crianças – instou o país a aprovar a lei.
Mas a lei é controversa e muitos acusam o Parlamento de a ter elaborado “à pressa”, o que originou lacunas que permitem que os donos dos cães não sejam responsabilizados pelos ataques – quando, em muitos casos, são realmente os responsáveis por ignorarem ou falharem na sua responsabilidade de controlar os seus animais.
Quatro raças de cães são banidas do Reino Unido ao abrigo desta lei: o Pit bull Terrier, o Tosa Japonês, o Dogo Argentino e o Fila-brasileiro. A justificação é que estas raças são tipicamente ‘criadas para lutar’.
É ainda considerado um crime permitir que qualquer cão, independentemente da raça, fique perigosamente fora de controlo, tanto em espaços públicos como privados.
Mas alguns críticos pedem que a lei seja revista, acabando com a legislação para raças específicas – já que, segundo alegam, a predisposição à violência não está relacionada com a raça mas sim com a maneira como o cão foi criado, experiências de vida passadas, etc. – e pedindo uma maior responsabilização dos donos dos animais.
Além disso, de acordo com a Associação Britânica de Veterinária, o número de incidentes de comportamento agressivo e de ataques de cães não foi reduzido desde a introdução da lei.
Um estudo de 2021, que analisou processos judiciais de 1992 a 2019, o período em que a lei esteve em vigor, concluiu que, embora esta tenha sofrido alterações, “continuam a existir falhas legais e éticas substanciais, particularmente na Secção 1” – a secção contém a legislação a respeito raças específicas.
De acordo com as disposições desta secção, é proibido fazer criação, comprar, vender ou oferecer cães de alguma das raças proibidas, e quem tiver um destes cães é obrigado a mantê-lo sempre com trela e açaime em público.
Segundo os investigadores, “as falhas éticas só poderiam ser resolvidas através da abolição da legislação de acordo com a raça”. Afirmam que seria proveitoso remover por completo a Secção 1 da lei, e não seria necessário substituí-la por outra, uma vez que “o resto da lei é capaz de lidar adequadamente com casos de agressão canina”.
Defendem ainda que é necessário “estudar mais aprofundadamente se existe um preconceito judicial contra certas raças consideradas perigosamente fora de controlo”.
O que dizem os números?
De acordo com os dados reunidos pela Sky News, que foram fornecidos por 29 forças policiais no Reino Unido, 5333 cães considerados perigosos foram apreendidos ao abrigo desta lei, desde 2019.
Durante o mesmo período, 1525 desses cães foram abatidos.
Segundo a RSPCA, depois de apreendidos, estes cães podem ter de passar muito tempo em canis longe dos seus donos enquanto é feita a avaliação sobre se pertencem de facto a uma raça proibida ou não. Alguns destes cães regressam a casa, sendo depois mantidos sob condições de vigilância rigorosas, embora outros acabem por ser eutanasiados.
No entanto, os investigadores suspeitam que os verdadeiros números sejam superiores, uma vez que algumas forças policiais – incluindo a Polícia Metropolitana de Londres, a maior de Inglaterra – se recusaram a fornecer estes dados ou afirmaram que não tinham registo deles.
A investigação mostrou ainda que os números de cães apreendidos e abatidos tem vindo a descer desde 2019 – o que, de acordo com Gaines, pode ser um impacto da pandemia.
Mesmo assim, para a especialista em bem-estar canino, ainda são demasiados os cães que estão a ser abatidos. Gaines afirma que, desde 2016, a RSPCA foi forçada a abater 310 cães de raças proibidas – cães que, em muitos casos, eram “vítimas de crueldade e negligência” e que podiam ter sido “animais de estimação muito bons e amigáveis”.
“Nenhum veterinário quer eutanasiar um cão saudável só porque tem um certo aspeto. É um fardo emocional enorme”, admite.
“É muito traumático para o nosso pessoal e veterinários, e também para os donos que, em muitos casos, adquirem um cachorro de oito semanas de idade de forma inocente, e depois, por acaso, este cão torna-se num cão que se parece com um tipo proibido”, continua.
“Não há nenhuma raça de cão que seja intrinsecamente agressiva”
De acordo com Gaines, muitos cães “estão a ser eutanasiados porque por acaso têm um certo aspeto”, e não “porque o seu comportamento representa um risco público”.
“Temos a legislação há 30 anos e ainda vemos cães a serem desnecessariamente eutanasiados”, denuncia, acrescentando que “não há nenhuma raça de cão que seja intrinsecamente agressiva”.
“Quer se veja ou não um comportamento agressivo num cão resume-se à forma como foram criados e às suas experiências de vida”, explica.
A RSPCA tem apelado para o fim da legislação baseada em raças específicas, defendendo que é “uma triste realidade e uma injustiça para os animais”, além de não proteger adequadamente a segurança pública.
“De facto, nos últimos 20 anos (1999-2019), o número de internamentos hospitalares para o tratamento de mordeduras de cães aumentou em 154%, apesar da proibição de certos tipos de cães”, segundo a organização.
A RSPCA – que já lançou uma petição online, com o apoio de outras organizações de bem-estar animal, que reuniu mais de 95 mil assinaturas – apela para que a lei seja alterada e se abandone a legislação em função de raças específicas para se privilegiar uma legislação mais eficaz, capaz de “abordar questões relacionadas com cães, independentemente da raça ou tipo e com base no seu comportamento”.
A organização sugere ainda que se reforce a educação e compreensão do comportamento dos cães – nomeadamente o porquê de eles morderem ou se tornarem agressivos – em particular direcionada às crianças, um grupo especialmente vulnerável a ataques de cães.