A 24 de novembro de 1992, num famoso discurso proferido no Guildhall, o emblemático edifício que foi durante mais de três séculos a sede do município de Londres, a rainha Isabel II falou de um annus horribilis. Para si e para a sua família. Quatro dias antes, o Castelo de Windsor, uma das suas residências oficiais, fora pasto de violentas chamas que quase destruíam esta joia arquitetónica com mais de mil anos de história.
Só que o incêndio estava longe de ser a principal preocupação da monarca. A sua grande dor de cabeça era a monarquia e a forma como esta poderia sobreviver à quantidade de escândalos que se sucediam e a desacreditavam perante os seus súbditos. Nos meses anteriores, a imprensa revelou todo o tipo de pormenores sobre a vida privada dos seus filhos e o balanço era catastrófico. O príncipe André decidira separar-se de Sarah Ferguson. Esta última, então duquesa de York, deixou-se fotografar por paparazzi quando estava na companhia de um “amigo e consultor financeiro” a chupar-lhe os dedos dos pés. O príncipe Carlos, o herdeiro do trono, não escondia a sua infidelidade a Diana de Gales nem a paixão pela sua namorada de sempre, Camilla Parker-Bowles.
Diana, por seu turno, admitiu que a traição do marido a convertera numa bulímica que se automutilava e acedeu contar a sua triste história a um jornalista, Andrew Morton, que viria depois a revelar tudo – por fascículos – no Sunday Times e, a seguir, num livro condenado a ser um best-seller global. Para compor o ramalhete da desgraça, a princesa Ana, a única filha da rainha, decidiu também pôr um ponto final no seu matrimónio com o capitão Mark Phillips, após anos de discórdia e muitos esquemas adúlteros – de ambos – pelo meio.
Na data em que Isabel II cumpria quatro décadas de reinado, pouco ou nada havia para celebrar. E a realidade demonstrou que, nos anos imediatamente a seguir, a história iria repetir-se. A atribulada vida sentimental dos filhos e as polémicas entrevistas da princesa de Gales – que voltara a ser Diana Spencer – continuaram a fazer as delícias dos tablóides. A 31 de agosto de 1997, o caso torna-se ainda mais grave. Diana morre em Paris, aos 36 anos, num acidente de viação que viria a cobrar também a vida a Dodi Al-Fayed, o homem com quem planeava casar-se e do qual estaria grávida.
As cerimónias fúnebres e o luto pela “Princesa do Povo” acabariam por colocar em causa o papel da monarquia e até de Isabel II. Como se não bastasse, os súbditos de sua majestade interrogavam-se ainda por que motivo os Windsor acumulavam fortuna e um património incalculáveis, ao mesmo tempo que beneficiavam de isenções e privilégios fiscais com que os plebeus e os contribuintes só podiam sonhar. Os britânicos davam sinais de clara desconfiança aos royals, como também é conhecida a família real.
No dealbar do século XXI, a crise da monarquia estava definitivamente instalada e as questões de regime eram abertamente discutidas no Reino Unido. O jornal The Guardian dava o mote ao falar em “monarquia inútil” e ao promover uma campanha para instaurar a república. Os resultados ganharam tradução imediata nas sondagens: uma clara maioria dos habitantes da velha Albion dizia-se a favor da mudança e defendia a abolição da realeza num prazo de 50 anos.
Nesta altura, Isabel II sabia já que se impunham medidas urgentes. Ela percebera-o logo em 1992, no tal ano horrível. E, agora, em 2018, pode muito bem dizer que está a viver um annus mirabilis – um ano maravilhoso. Nas primeiras páginas dos tabloides há sorrisos, amor e bebés, em vez de escândalos. E a economia britânica prospera com estas histórias de encantar. Só o casamento de Harry e Meghan gerará mais de 500 milhões de euros. Como é que a então decadente monarquia britânica se reinventou?
Uma questão de marketing
Em abril, Isabel II celebrou o seu 92º aniversário com saúde e expectativa face ao alargar da sua prole. Nasceu mais um seu bisneto, Luís, o terceiro filho de William e Kate Middleton, duques de Cambridge, o que lhe garante descendência direta até praticamente ao século XXII… No início do outono, deverá ser novamente bisavó quando Zara Phillips, a filha única da princesa Ana, der à luz o seu bebé.
Por outro lado, vai ainda dar a sua bênção a dois casamentos reais: o do seu neto Harry com a antiga atriz afro-americana Meghan Markle, já no próximo sábado, 19; e o da sua também neta Eugénia, filha de André e de Sarah Ferguson, com o empresário Jack Brooksbank, cujo matrimónio deverá ocorrer em outubro.
A reconciliação do povo britânico com os seus royals nota-se em cada esquina de Londres, inundada por estes dias com merchandising alusivo ao casamento do filho mais novo de Carlos, mas aconteceu antes. Quando William se casou com Kate Middleton, em 2011, já os fantasmas de Diana e as teorias da conspiração em torno da sua morte não pairavam sobre a família real. O “segredo” foi apenas um: marketing.
A própria Isabel II soube que era imperioso salvar a “marca” Windsor logo após a morte da princesa de Gales. Tony Blair, então primeiro-ministro, conta que isso foi notório na primeira conversa que teve com a rainha, após o acidente de Paris. “Disse-me que estava preocupada que o luto e a raiva sentidos pelo povo se virassem contra a monarquia”, revelou o antigo governante à BBC, no documentário 7 Days.
Nessa entrevista, realizada no ano passado, o governante explicou ainda que ofereceu à monarca os préstimos dos seus colaboradores mais próximos. [Noticiou-se na altura que um deles seria Alastair Campbell, um “génio” do marketing político]. A proposta terá sido aceite mas, nas palavras de Blair, “a rainha tem um instinto muito forte sobre a opinião pública e a forma como esta funciona”. Ou seja, ela terá impedido um envolvimento maior do spin doctor que muitos responsabilizam pelas principais vitórias do Partido Trabalhista por um outro motivo: o Palácio de Buckingham já contava com vários especialistas em relações públicas.
Afinal, foram eles que cuidaram e rejuvenesceram a imagem da família real nas últimas décadas. E fizeram-no através de algo conhecido como “estratégia Marmite” – uma alusão à famosa pasta salgada com que os ingleses barram as suas torradas ao pequeno-almoço. Convém explicar que este produto, lançado há mais de um século, se foi adaptando aos gostos dos consumidores britânicos, num processo de rebranding permanente e considerado exemplar pelos profissionais de marketing e publicidade.
Palavra de rainha
“A monarquia é uma instituição que sabe que tem de mudar para sobreviver, criando a ilusão de que é imutável”, considera Catherine Mayer, autora da biografia do príncipe Carlos The Heart of a King (não editada em Portugal). Isabel II tem-no feito habilmente desde o período da sua coroação, em 1952. Esse momento solene, reservado até então aos olhares de alguns eleitos, foi o primeiro a ser filmado e transmitido para todo o mundo, permitindo ao povo – mesmo que ilusoriamente – a sensação de proximidade com a monarca, numa ocasião tão marcante. Nos anos seguintes, Isabel II instituiu comunicações regulares com os seus súbditos através dos serviços de rádio e televisão da BBC e, em 1969, aceitou participar num documentário destinado a revelar alguns detalhes do seu quotidiano e da intimidade da família real. Contudo, consciente da artificialidade desse registo, o Palácio de Buckingham não voltou a permitir a sua exibição.
“Não há diferença entre uma multinacional e a família real. As exigências para construir e preservar a reputação da sua marca são as mesmas – uma estratégia de símbolos, êxitos comerciais, líderes e uma conexão de qualidade no mundo”, garante John Mahony, diretor da agência ReputationInc, citado pelo Le Monde. Talvez por isso a rainha se rodeie de pessoas com provas dadas no domínio da comunicação e das informações. O seu antigo secretário privado, Christopher Geidt, um antigo professor na academia militar de Sandhurst formado em Cambridge e no King’s College, foi consultor das Nações Unidas e, durante as guerras na ex-Jugoslávia, foi um dos negociadores internacionais que lidaram com Ratko Mladic, o líder dos sérvios da Bósnia, e com Slobodan Milosevic, o presidente sérvio. Quanto ao atual secretário privado, Edward Young, foi diretor do Barclays e principal responsável por alguns dos mais recentes sucessos mediáticos da rainha, incluindo a sua histórica visita à Irlanda e o surpreendente salto de paraquedas (de um duplo) com James Bond que marcou a abertura dos Jogos Olímpicos de Londres, em 2012.
Depois do fenómeno Diana, os royals passaram também a dedicar mais atenção ao diálogo com a sociedade civil e às causas sociais e humanitárias. Só a rainha é patrona e mecenas de mais de 700 entidades e a restante família real apoia quase quatro mil. Compromissos que preenchem boa parte das agendas diárias de Carlos, William e Harry.
Todas as iniciativas são cuidadosamente planeadas e testadas em função dos inúmeros estudos de opinião encomendados pelo palácio, embora nunca revelados ao público. É o que garante o ex-cronista real do The Guardian, Stephen Bates, no livro Royalty Inc. – Britain’s Best-Known Brand. A estratégia tem funcionado, como comprovam os níveis de popularidade reconquistados. Hoje, 68% dos britânicos consideram que a monarquia é boa para o país (os republicanos resumem-se a 17%) e 80% têm uma opinião favorável de Isabel II.
Contudo, ainda que rodeada pelos melhores profissionais, a última palavra é sempre dela. “Não se diz a uma soberana de 92 anos o que deve fazer. Ela é mais eficaz do que qualquer outro comunicador”, garante Robert Lacey, biógrafo da rainha. Essa eficácia deve-se à forma como consegue permanecer conservadora das tradições e, simultaneamente, surpreender até mesmo alguns dos seus mais próximos – como sucedeu quando aprovou o casamento do neto mais novo com uma atriz americana, mestiça e divorciada.
A rainha pode não querer abdicar a favor do seu filho Carlos – até porque as sondagens indicam que 56% dos britânicos preferem William –, mas sabe interpretar os sinais dos tempos. Como escreveu Frederick Studemann no Financial Times, a monarquia e a rainha, em particular, são hoje um pilar e um símbolo reconfortante numa era de grandes incertezas.