Ano da graça de 1482, talvez no mês de fevereiro. Um artista bem parecido, com 30 anos, de longos cabelos claros e ondulados, corpo musculado e coberto por uma túnica cor de rosa que lhe fica pelos joelhos, prepara-se para uma longa viagem. Como não quer deixar nada de importante para trás, decide fazer uma lista do que tem mesmo de colocar nas mulas: “Duas madonas”, “alguns Sãos Jerónimos”, “oito Sãos Sebastiões”, “algumas máquinas para embarcações”, “muitas flores desenhadas a partir da natureza”, “vários pescoços de mulheres velhas”, “vários nus integrais”, “cabeça de um velho com enorme queixo”, “cabeça de uma rapariga com os cabelos apanhados num rolo”. A tudo isto deverá juntar-se obrigatoriamente uma lira da bracio, um instrumento de sete cordas precursor do violino, e – claro – o desenho de Atalante Migliorotti, “de cabeça erguida”, o adolescente que vive com o artista e que tem de acompanhá-lo entre Florença e Milão. Sem esquecer ainda a mais recente engenhoca por ele criada, com o objetivo de calcular a distância exata entre as duas cidades.
Antes de deixar a capital da Toscânia, tinha já feito um género de curriculum vitae, com a ajuda de um escrivão profissional, a revelar todos os seus atributos e onde não se poupa nos elogios: “Meu muito ilustre senhor, (…) tenho processos de construir pontes muito leves e fortes (…) que não podem ser destruídas por meio de fogo ou ataque. (…) Tenho alguns tipos de canhão extremamente fáceis de transportar, que disparam grandes pedras como se fosse uma saraivada e cujo fumo causará grande temor ao inimigo (…) Tenho métodos silenciosos para escavar túneis subterrâneos e passagens sinuosas. (…) Construirei carros blindados, totalmente inexpugnáveis (…), e não existe nenhuma companhia de soldados tão valente que seja capaz de os enfrentar. (…) Em tempos de paz posso também satisfazer qualquer demanda em arquitetura (…) executar esculturas em mármore, bronze e argila (…) e na pintura consigo fazer tudo o que é possível, tão bem como qualquer homem, quem quer que ele seja.” A carta, endereçada a Ludovico Sforza, a personalidade mais rica e poderosa de Milão, corresponde às expectativas. O seu signatário, apesar de não possuir experiência ou provas dadas no que promete, consegue um belo e bem remunerado emprego como engenheiro militar e mestre de cerimónias – entenda-se festas, banquetes e afins – na corte dos Sforza.
Receitas para o sucesso
Eis como pode começar a megaprodução que Hollywood prepara sobre Leonardo da Vinci, em que o grande mestre do Renascimento é interpretado por Leonardo DiCaprio. O filme já está a criar uma enorme expectativa, mas ainda nem entrou na fase de produção e a estreia só deverá ocorrer no início de 2019, para coincidir com o 500º aniversário da morte do ambicioso uomo universale que queria dominar todos os ofícios e artes. A escolha deste ator também não é inocente. Reza a lenda que, na primavera de 1974, estando a sua mãe grávida e de visita a Florença, o bebé pontapeou-a pela primeira vez no ventre enquanto contemplava uma obra do pintor. Foi quanto bastou para a criança ficar com o nome próprio desde logo atribuído.
O filme tem por base um novo livro sobre o autor de Mona Lisa, assinado por Walter Isaacson, o antigo jornalista e ex-diretor da Time e da CNN que conhece muito bem este tipo de receitas para o sucesso. Nos últimos 15 anos, escreveu três outras biografias monumentais – todas com mais de 350 páginas –, igualmente dedicadas a figuras criativas: Benjamim Franklin, o mais excêntrico dos pais fundadores dos EUA, que foi também inventor, cientista e diplomata; Albert Einstein, o génio desgrenhado, responsável pela Teoria da Relatividade, que recebeu o Nobel da Física em 1921; e Steve Jobs, o desalinhado budista que criou na sua garagem californiana a mais valiosa marca tecnológica do mundo, a Apple.
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Pormenor do quadro Mona Lisa
Denis Balibouse
A obra sobre Da Vinci, lançada a 17 de outubro, um best-seller nos mercados de língua inglesa e no top de vendas da Amazon, será no próximo ano publicada em Portugal pela Porto Editora. A narrativa de Walter Isaacson até nem traz grandes novidades sobre a vida do homem nascido numa pequena cidade perto de Florença, mas tem tudo o que é necessário para conquistar o grande público, através das pequenas histórias que se leem como uma reportagem ou dando pistas e fazendo descrições dos quadros de Leonardo como um habilitado guia de museu. O resultado final é a prova de que já não importa tanto o que se conta e sim como se conta. Justiça, porém, lhe seja feita. Este é um projeto que ocupou Isaacson durante quase uma década, em que falou com as maiores sumidades mundiais, leu praticamente tudo o que foi escrito sobre o artista e teve ainda o privilégio de consultar e estudar os seus desconcertantes cadernos de apontamentos que somam mais de 7 200 páginas, incluindo o famoso Códex Leicester, com inúmeros desenhos e textos de astronomia e hidráulica, que pertence a Bill Gates, o fundador da Microsoft.
Medições e línguas de pica-pau
O britânico Kenneth Clark, um dos grandes historiadores da arte do século XX, costumava dizer que Leonardo da Vinci foi “o homem mais implacavelmente curioso da História”. Esta é também a ideia-chave da biografia de Walter Isaacson. O autor norte-americano faz questão de explicar que o florentino não era “apenas um génio” cujas obras poderiam ser o produto mais ou menos divino da inspiração. O que ele tenta demonstrar é que Leonardo é uma figura bem humana, “cheia de virtudes, defeitos e contradições”. Ou seja, o que o torna verdadeiramente diferente não é o seu intelecto ou o seu talento inato – é a sua curiosidade quase sobre-humana. É essa a grande lição que Leonardo nos dá e que o biógrafo nunca se cansa de sublinhar: “Aprendi com ele a deixar-me maravilhar com o mundo que me rodeia e isso pode fazer com que cada momento das nossas vidas, a cada dia que passa, se torne mais rico.” Palavras que aparecem logo na introdução do livro e que surgem poucas linhas depois de apresentar alguns exemplos das listas de interrogações, curiosidades e coisas a fazer que Leonardo impunha obsessivamente a si próprio: “Medir Milão e os seus subúrbios”; “Perguntar a Benedetto Portinari como é que na Flandres caminham sobre o gelo”; “Conhecer o tamanho do Sol, tal como me foi prometido pelo mestre Giovanni Francesi, o francês”; “Por que motivo é o céu azul?”; “Como funciona a mandíbula de um crocodilo?”; “Como batem as asas de uma libelinha”; “Descreve a língua de um pica-pau” – esta última instrução e a respetiva resposta acabam por ocupar uma página autónoma no final da obra de Isaacson, depois da conclusão.
É o “insaciável apetite de conhecimento” que torna Da Vinci uma criatura especial, um “discípulo da experiência” que consegue tornar-se um polímata, alguém versado em diferentes áreas do saber, sem nunca ter conhecido uma educação convencional ou ido à escola. É por este motivo que o próprio artista se assumia ironicamente como um “omo sanza lettere” – “homem iletrado”, em italiano arcaico – que não precisou de professores nem de “gente gonfiata” (“gente inchada”) para fazer tudo o que lhe deu na gana e ser músico, escultor, pintor, inventor, engenheiro, astrónomo e cientista… Isaacson apresenta uma explicação adicional. Leonardo é filho ilegítimo de um jovem notário, Piero da Vinci, e de uma humilde e órfã camponesa de 16 anos, Caterina Lippi. Se ele fosse o fruto de uma relação reconhecida teria, com toda a probabilidade, o mesmo destino do pai e dos seus antecessores durante cinco gerações. Como assim não sucedeu, o miúdo foi deixado à solta nos campos à volta de Vinci e teve toda a liberdade para desenvolver os seus interesses. O convívio com os avós, um tio paterno e as gentes da sua cidade natal fizeram o resto até ser admitido na bottega (oficina) do mestre Andrea del Verrocchio, em Florença. É com este ourives, escultor e artesão que o adolescente de 14 anos, canhoto e sempre irrequieto, aprende vários ofícios e artes, por vontade expressa do seu progenitor que tinha alguns negócios com Verrocchio. E nem vale a pena pensar, explica Isaacson, em favoritismo ou pôr em causa os méritos do jovem aprendiz. Um belo dia, aceitou o pedido do pai para decorar um escudo em madeira e decidiu ornamentar a peça com a imagem de um monstro. Para a dita cuja ser mais natural, usou partes de lagartos, cobras, borboletas e gafanhotos. Piero ficou tão impressionado que o vendeu por uma fortuna – 100 ducados, equivalente ao que seria hoje cerca de 1380 euros. Pouco tempo depois, ficou a saber que os mercadores que lhe compraram a peça a venderam a seguir ao duque de Milão pelo triplo. Ficava demonstrado que Leonardo era capaz de impressionar qualquer pessoa e de ganhar a vida com o que fazia. Tanto assim é que a sua obra se tornaria inimitável e imortal.
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Da Vinci numa escultura de areia exibida na Rússia, em 2012
Ilya Naymushin
Castrado ou celibatário?
A vida de Leonardo da Vinci foi logo objeto de inúmeros relatos pelos seus contemporâneos. A primeira biografia em que ele aparece data de 1550, pela pena de Giorgio Vasari, no Le vite de’ piu eccelenti pittori, scultori et architettori – obra frequentemente descrita como Vidas dos Artistas. Ainda mais antiga é outra fonte, um autor não identificado mas conhecido por Anónimo Gaddiano. Tanto este como Vasari escreveram pormenores curiosos sobre o meste florentino, incluindo vários tipos de mexericos sobre a sua sexualidade. Os registos históricos demonstram que ele foi formalmente acusado de sodomia, em abril de 1476, quando tinha 24 anos. O caso envolveu quatro outros jovens e resultou de uma denúncia anónima – através dos espaços que na cidade existiam para o efeito e apropriadamente chamados “buracos da verdade”. A alegada “vítima” tinha por nome Jacoppo Saltarelli, um serralheiro de 17 anos já apontado pelas autoridades como alguém que se dedicava “a atividades imorais e consente em satisfazer as pessoas que lhe pedem tais coisas pecaminosas”. O processo acabou por não dar em nada, embora alguns especialistas considerem que este episódio pode ter influenciado decisivamente a postura de Leonardo. Walter Isaacson dá como certa a tese de que o artista “se sentia romântica e sexualmente atraído por homens mas, ao contrário de Miguel Ângelo, parecia lidar muito bem com o assunto”. E não hesita em listar Atalante Migliotori, o adolescente a quem Leonardo ensinou a tocar lira, Fiorovante di Domenico, um dos seus primeiros discípulos, Giacomo Caprotti, o assistente cleptomaníaco mais conhecido por Salaì, que Leonardo adotou quando este tinha apenas dez anos e se tornaria um dos seus herdeiros, e ainda Francesco Melzi, o adolescente aristocrata que se tornou secretário e discípulo favorito – e principal beneficiário no testamento do mestre, tendo ficado com todos os cadernos de apontamentos. Mas será que Leonardo era apenas um homossexual platónico como alguns pretendem? Afinal, numa das suas páginas com desenhos anatómicos ele dá a entender que não gosta assim tanto de sexo: “O ato do coito e as partes do corpo nele envolvidas são tão feios que se não fosse a beleza dos rostos e dos adornos dos amantes, e do desejo refreado, a natureza perderia a espécie humana.” O espanhol Christian Gálvez, apresentador de televisão que já publicou três livros sobre Da Vinci e está envolvido num projeto internacional para tentar recuperar o DNA do artista, tem outra opinião: a acusação de sodomia fez com que Leonardo se tornasse celibatário e gay platónico. Uma decisão motivada pelo trauma por si vivido e pelo medo de ser castrado. Uma teoria que vale tanto quanto a tese de que Leonardo era vegan, embora tivesse organizado faustosos banquetes carnívoros na corte dos Sforza, em Milão. Isaacson parece estar em sintonia com Gálvez ao abordar os hábitos vegetarianos do artista e a sua tendência para comprar animais vivos que depois libertava. Ou a sua preferência em usar peças de linho para não ter de carregar “animais mortos” aos ombros.
O Mónaco e o esternocleidomastoideu
Há mais de cinco séculos que os trabalhos de Leonardo da Vinci inspiram multidões e mistérios. Aquela que é descrita como a única obra-prima do artista ainda em mãos privadas, Salvator Mundi, pintada provavelmente em 1499, representa Cristo a abençoar a Humanidade e esteve desaparecida durante dois séculos. Os especialistas acreditam que foi levada de Itália para França após a morte do pintor e, em 1625, terá ido para a Grã-Bretanha com a princesa Henriqueta Maria quando esta se casou com o rei Carlos I de Inglaterra. Após ter passado mais de 120 anos na posse da família real britânica, perde-se-lhe o rasto até aparecer nos Estados Unidos da América e ser vendido, em 1958, por cerca de 60 dólares num leilão. Supostamente por se julgar que a pintura tinha como autor um discípulo de Leonardo. Em 2005, a troco de 10 mil dólares, o quadro é adquirido por um negociante de arte que o apresenta à comunidade artística e o submete a uma peritagem. Resultado: é a redescoberta artística mais importante do século XXI.
Oito anos depois, o marchant suíço Yves Bouvier arremata o quadro em segredo por cerca de oitenta milhões de dólares. Meses depois, revende-o por 127 milhões de dólares ao oligarca Dmity Rybolovlev – o dono do Mónaco FC, clube treinado pelo português Leonardo Jardim. Este último negócio acaba mal quando o empresário russo lê no New York Times, em 2015, o dinheiro que Bouvier – até então seu conselheiro para os investimentos em arte – tinha ganho na transação. É o início de uma batalha jurídica que ainda dura e que tem alimentado escândalos e demissões no principado monegasco. Rybolovlev tentou instrumentalizar a justiça e os políticos locais e acabou por incompatibilizar-se com o Príncipe Alberto, que deixou de aparecer nas tribunas do estádio para ver Leonardo Jardim, João Moutinho e companhia.
Este é um dos 15 quadros de Leonardo da Vinci que chegaram até aos nossos dias [vendido pelo valor recorde de 380 milhões de euros, no mês passado, a um comprador anónimo, que o cedeu para ser exibido no novo Museu do Louvre em Abu Dhabi, nos Emirados Árabes Unidos]. E, embora não seja a Mona Lisa, faz jus à capacidade do velho mestre para nos inebriar. Adrian Searle, o influente crítico de arte do jornal The Guardian, considera que Salvator Mundi é um Cristo hippie, “com o olhar vidrado de alguém pedrado. (…) Até conseguimos imaginar os dedos em riste a segurar um charro. E quando o imaginamos, essa imagem já não desaparece.” Só alguém muito especial poderia provocar um tal efeito. Alguém que Walter Isaacson nos descreve como brincalhão, jovial, caprichoso e perfeccionista, a ponto de trabalhar até à morte no mesmo quadro – como sucedeu com a Mona Lisa. Com São Jerónimo, iniciado em 1480, o artista insistiu em retocá-lo até 1510, após dissecar dezenas de cadáveres e conseguir, finalmente, reproduzir em condições satisfatórias o esternocleidomastoideu, o músculo do pescoço que muitos portugueses conhecem à custa do filme A Canção de Lisboa, com Vasco Santana. Quanto às demais características e taras de Leonardo, só podemos especular e desejar que lhe tenham feito bom proveito.
(Artigo publicado na Visão 1288, de novembro de 2017)
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A obra Salvator Mundi, leiloada no mês passado
JEWEL SAMAD