No debate de hoje de manhã, o Parlamento Europeu (PE) prometeu romper com a “cultura de silêncio” das vítimas de assédio e violência sexual e moral que, nos últimos dias, aproveitaram uma iniciativa da página de Internet do Politico para contarem histórias pessoais que incluem alegados casos de violação dentro daquela instituição.
O debate não é novo entre quem trabalha nas instituições europeias, mas foi no seguimento das denúncias de diversas mulheres contra Harvey Weinstein, um conhecido produtor de cinema dos EUA, que a comissária europeia para a igualdade de género, a checa Vera Jourová, revelou ter sido, ela própria, vítima de violência sexual no passado. Apelando a todas as vítimas que denunciem os seus agressores, juntando-se ao movimento #MeToo, a comissária disse recear que o escândalo Weinstein seja apenas “a ponta do icebergue”.
Perante os sinais de que alguma coisa de errado se passava dentro das instituições comunitárias, a começar pelo Parlamento Europeu, o Politico criou, no seu website, um formulário confidencial convidando as potenciais vítimas a contarem a sua história. Em poucos dias, recebeu mais de uma centena de queixas de funcionários europeus sobre alegadas agressões e assédio sexual e moral, contadas por quem se sentiu vítima de comportamentos inapropriados.
Sublinhando que nenhuma das situações reportadas foi objeto de confirmação, o Politico refere que há de tudo um pouco dentro do PE: promessas de contratos de trabalho em troca de sexo, mulheres jovens que convivem em bares e em jantares oficiais e que trocam sexo por medidas legislativas, assistentes pessoais solicitados a arranjarem prostitutas para eurodeputados, mulheres abordadas em casas de banho e nos seus postos de trabalho, homens intimidados e depois enviados para casa com licenças pagas… Uma das alegadas vítimas definiu o ambiente de trabalho no Parlamento Europeu, com instalações em Estrasburgo e Bruxelas, como uma “cultura de silêncio”.
Depois de analisar as queixas, o Politico deu destaque às versões de quatro mulheres, identificadas como membros do staff do PE, que disseram ter feito queixa formal junto da instituição onde trabalham, duas das quais por alegados casos de violação. Uma delas contou que, após os acontecimentos, ocorridos em 2016, tanto ela como o seu chefe não souberam como agir. “Se há um procedimento formal, não sei qual é. Senti-me completamente perdida”, disse. “Mesmo depois de ter encontrado ajuda, fui firmemente desencorajada a ir à polícia”. A autora da queixa assegurou que as hierarquias mais altas do Parlamento e pelo menos cinco eurodeputados conhecem o seu caso, e contou que o alegado violador acabou por deixar o emprego no Parlamento, algum tempo depois.
Já no início desta semana, o presidente do PE, Antonio Tajani, fez uma declaração sobre assédio sexual e moral, embora salvaguardando que, até esse momento, não tinha conhecimento de queixas formais sobre crimes de violação. Questionada sobre se estes e outros casos têm sido reportados, a porta-voz da instituição, Marjory van der Boreke, confirmou a existência de situações de assédio e agressão sexuais nos últimos anos, mas acrescentou que foram tomadas “as medidas apropriadas”, incluindo a suspensão de funções profissionais em algumas situações.
Queixas avaliadas por elementos externos
A eurodeputada portuguesa Liliana Rodrigues, membro da comissão dos Direitos da Mulher e da Igualdade de Género, explicou à VISÃO que a iniciativa em debate no plenário – com votação marcada para amanhã – está na agenda dos parlamentares há já algum tempo. “Comentavam-se diversos casos de assédio sexual e moral, e houve a preocupação de melhorar as regras e os regulamentos de modo a que o próprio Parlamento Europeu seja capaz de levar a cabo, internamente, os procedimentos disciplinares”, disse.
Ainda sem acordo entre os grupos políticos europeus, estava uma proposta de reforço da composição dos comités de apreciação das queixas por especialistas externos à instituição. “Existe a preocupação de não deixar a avaliação das queixas apenas nas mãos dos eurodeputados e dos funcionários do PE, para que não haja favorecimentos, mas pessoalmente só estou de acordo com esta proposta se esses elementos externos trouxerem valor acrescentado”, disse Liliana Rodrigues. “A argumentação de que os eurodeputados podem não ser isentos quando avaliam queixas contra colegas não faz sentido”.
Em análise, está também uma reavaliação dos procedimentos e regulamentos para prevenir novas situações de assédio sexual e moral nas instituições europeias – e não só no PE. A votação da proposta final, que deverá reunir o consenso de todos os grupos políticos, realiza-se na manhã de quinta-feira, 26.
Sobre os casos de alegadas violações reportadas ao Politico, a eurodeputada é taxativa: “Pessoalmente, tenho muita dificuldade em compreender como é que estas situações podem ficar no anonimato, quando têm de chegar aos tribunais.”
Já em 2013, o provedor da União Europeia (EU) repreendeu o Parlamento por não ter tratado devidamente uma queixa de assédio sexual apresentada por um antigo estagiário. Desde 2002 que a UE tem regras que punem o assédio sexual e moral no local de trabalho, sem discriminação do sexo do queixoso, sempre que tais comportamentos criem ambientes de intimidação e hostilidade. Todos os anos, é distribuída aos eurodeputados uma brochura, com o código de conduta (reforçado no ano passado), recomendando, a quem está no topo da cadeia hierárquica, os comportamentos que devem evitar em relação aos subordinados, de modo a não confundir “aquilo que pode não passar de um simples cumprimento com uma situação de assédio”, explica Liliana Rodrigues.
No Parlamento Europeu, trabalham mais de 7 mil pessoas – entre eurodeputados, assistentes pessoais, funcionários técnicos e administrativos -, mas as instalações da instituição são frequentadas diariamente por até 10 mil pessoas, se se contar com o pessoal dos serviços externos de limpeza, fornecimento de refeições, entre outros.