Então, mas isto é que é bonito?! » Depois de percorrermos as estradas sinuosas da ilha, sempre com o mar ao fundo, depois de vermos o azul-claro transparente da baía de Saint Jean, as praias de areia branca e fina, a arquitetura elegante dos hotéis e villas luxuosas, a resposta parece-nos claramente afirmativa. Para Maria Ferreira, recordando um Portugal de onde saiu há muito, não é bem assim. «Estamos aqui para trabalhar, para nós isto não é nada bonito, comparado com a nossa terra», diz-nos, convicta, sentada na varanda-esplanada do seu bar-restaurante, Le Portugal à St. Barth, recentemente renovado já sem a bandeira nacional à porta nem o símbolo da cerveja Sagres. Desembarcou ali em 1999, seguindo o marido, José Joaquim Ferreira, que tinha chegado um ano antes, vindo de França.
Com medo dos aviões e dos barcos, e sem conduzir, não gostou da mudança para aquela ilha (de pouco mais de 20 quilómetros quadrados), onde, nos primeiros dias, se limitava a esperar que o marido voltasse a casa, ao fim da tarde, depois de começar a trabalhar, bem cedo, na construção.
Quando, um dia, pensou em concretizar ali o seu sonho de ter um restaurante, José Joaquim não a apoiou. A oportunidade acabaria por surgir no dia em que um pequeno espaço de restauração ficou livre, perto de sua casa, em Lorient, mas Maria só partilhou o projeto em curso com o seu filho Sérgio, deixando para o marido a novidade já em fase de facto consumado. Em outubro, esse seu sonho cumpre dez anos. «A minha ideia foi uma boa ideia», diz, despachada.
Por trás do seu bigode, o silêncio do Sr. José (também conhecido, por aqui, como «Tiririca») não desmente a mulher. Hoje, em mais um sábado quente e húmido nas Caraíbas, a maioria da família está ali: uma filha atarefada na cozinha, José Joaquim e Sérgio, 38 anos, atrás do balcão, a abrir cervejas, e Maria, já se percebeu, a mandar em tudo (Catarina Furtado aparece agora, Feitos ao Bife, nas duas televisões sintonizadas na RTP Internacional). «Quando comecei, chegava a trabalhar 14 ou 15 horas por dia, mas estava feliz», conta. Ainda hoje, não vê, em St. Barths, muito mais para fazer além de trabalhar: «Nem temos um Carrefour. aqui não há distrações, ficávamos malucos, sem nada para fazer, isto só é um paraíso para os turistas milionários que p’raí vêm.» A ideia é mesmo «juntar dinheiro», para um dia, quem sabe, voltar à freguesia de Encourados, Barcelos. Por enquanto, o Morue façon Maria («o meu bacalhau é uma maravilha! »), que começa numa cebolada com azeite e vinagre balsâmico, mora ali, em Saint-Barthélemy, a 20 euros a dose.
O reino dos preços exorbitantes
Os portugueses estão espalhados por toda a ilha, mas João Alves, 44 anos, vive a dois passos do Le Portugal à St. Barth. Chegou há poucos meses, em dezembro de 2012, oriundo de Terras do Bouro, Gerês. «Um dos meus problemas era não saber nada de cozinha. Só à quarta tentativa é que um estrugido me saiu bem: estava a falar, online, com a minha mulher, que me explicava tudo; andei aí umas semanas só a comer arroz.» Não veio para St. Barths por «necessidade extrema» mas porque tem «compromissos financeiros» que quer honrar, e o horizonte, em Portugal, não lhe parecia promissor. Foi sócio de uma empresa de segurança contra incêndios e deixou a mulher e a sogra a tomarem conta d’O Telheiro, o restaurante da família. Agora, trabalha na Ligne St. Barths, prestigiada empresa de cosméticos, a única produção própria da ilha. Para chegarmos à casa de João, temos de passar por um corredor de vegetação frondosa, entre os cantos e gritos de várias aves coloridas. É um espaço mínimo uma sala/cozinha à entrada, com comunicação direta para o exterior e um quarto dividido ao meio que partilha com Paco, trabalhador galego, que também ali chegou há pouco tempo.
Uma das grandes dificuldades da comunidade portuguesa em St. Barths (cerca de mil pessoas, num universo de, aproximadamente, 9 mil habitantes) diz respeito à habitação. Na ilha, a oferta é pouca para tanta procura: há regras muitos restritivas quanto às licenças de construção e isso leva a preços exorbitantes, quase sempre muito acima dos mil euros por mês por casas com assoalhadas mínimas. João até fez um bom negócio: paga 900 euros, a meias com Paco.
Dissemos «preços exorbitantes»? St. Barths é o lugar certo para se usar, com propriedade, essa expressão. A casa (a villa, como sempre se diz por aqui) de cinco quartos e piscina aquecida, sobre a praia de Lorient, onde encontramos Luísa Lopes, 36 anos, natural de Castelo de Paiva, de esfregona na mão, a dar os últimos retoques de limpeza, antes da chegada dos hóspedes norte-americanos, pode custar (depende da época) 110 mil euros por semana. Uma olhadela rápida à lista de bebidas do Nikki Beach, famoso restaurante no areal da praia de St. Jean, mostra-nos que, se quisermos que nos tragam para a mesa uma garrafa de champanhe, grande formato, Dom Pérignon White Gold, temos de pagar 19 mil euros.
Fala-se de disputas tão grandes por terrenos que já se fizeram, ali, transações a 20 mil euros por metro quadrado, pagos na hora.
O quarto 20 (na verdade uma suite) do exclusivo Hotel Taïwana, onde descobrimos as minhotas Conceição e Rosário a fazerem uma cama com vista para a Anse des Flamands, custa 2 mil euros por noite, nesta altura do ano (uma das mais caras, por causa das férias do Spring Break, nos EUA; mais caros ainda são os períodos de Natal e Ano Novo, auge do turismo de luxo em St. Barths).
Os donos das obras
Para pulverizar os recordes de «preços exorbitantes», o milionário russo Roman Abramovich, que encontrámos a almoçar, descontraidamente, no restaurante daquele mesmo Taïwana, junto à praia, ainda é o homem do momento, depois de há uns anos ter comprado uma área com 29 hectares, sobre a praia de Governeur, por 70 milhões de euros. As suas caríssimas festas de passagem de ano, com centenas de celebridades convidadas, têm feito história na ilha (em 2011, contratou os Red Hot Chili Peppers para tocar e, em 2012, os Kings of Leon).
Albino da Silva, 52 anos, leva-nos até à entrada da propriedade do russo e chama-nos a atenção para o cartaz oficial que anuncia a licença para obras de aumento. «Se ele diz que são oito quartos é porque são oito casas.», brinca. Albino, um dos primeiros portugueses a «descobrir» St. Barths, em 1984, vindo da Córsega, onde então trabalhava, vive perto dali. Com um bem estabelecido negócio de construção civil e, também, de importação de produtos portugueses (cerveja, vários vinhos – o verde tinto é ali muito apreciado, ou não estivesse a ilha cheia de minhotos…. – azeite, atum, farinha Branca de Neve, sumos Bongo, leite Agros com chocolate.), que vende diretamente à comunidade numa pequena loja/armazém, é o português mais bem sucedido da ilha. A magnífica vista da piscina de sua casa, sobre o verde e o mar, está ali, todos os dias, a mostrar-lhe que fez bem, aos 24 anos, em embarcar numa aventura em direção a uma desconhecida ilha nas Caraíbas.
A construção em St. Barths depende dos portugueses, não só ao nível da mão de obra mas também dos empreiteiros, que tomam conta do negócio. Albino não é o único.
Numa manhã de sábado, em que é costume as obras estarem paradas, encontramos, por acaso, alcandorado numa casa ainda com betão à vista, Martinho Madureira, 66 anos, originário de Espadanedo, Cinfães. A sua empresa, a SM, emprega cerca de 30 homens todos portugueses, a quem elogia a qualidade de trabalho e dedicação, e paga uma média de 2 500 euros por mês. O trabalho já foi tanto que chegou a colocar um anúncio na Rádio Montemuro, em Cinfães, a pedir mais braços. Agora, diz, «a crise também já veio cá bater». Afinal, «os proprietários demoram mais a pagar, o crédito bancário está mais difícil, em todo o mundo.»
Não foi para fugir a uma vida particularmente dura que Martinho voou para tão longe. Foi mesmo para desaparecer, por uns tempos. Tinha trabalho, ajudava a comunidade e era uma pessoa «bem estimada na freguesia» quando, em 1989, teve um filho fora do casamento, com uma vizinha que ia para sua casa à noite, ver televisão. «Casei cedo.», justifica-se ainda hoje, e caiu de amores pela rapariga. Foi para evitar o «choque num meio tão pequenino» que decidiu emigrar. Para longe. E foi ficando.
‘Católicos, como nós’
Dois filhos foram ter com Martinho Madureira, e essa soma milagrosa de tempo e distância permitiu-lhe continuar a relacionar-se, até hoje, com a(s) família(s). Antes de se reformar ainda quer fazer alguns negócios. O próximo talvez seja vender a casa que construiu no interior da ilha (mas com vista para o mar, claro), toda forrada a granito proveniente de Moimenta da Beira: custou-lhe cerca de 800 mil euros e contava vendê-la por 3 milhões. Agora, o cenário global de crise fará baixar esse valor para metade. Vender ou alugar imobiliário ainda continua a ser, todavia, a melhor forma de ganhar dinheiro por ali.
O presidente da Coletividade de San Barthélemy, Bruno Magras, 61 anos, originário de uma família local, recorda que esta ilha foi, durante anos, muito pobre. E ele lembra-se bem disso. Recebe-nos num pequeno escritório, no aeroporto local (supostamente um dos mais perigosos do mundo, mas sem um registo de acidentes que ateste essa distinção). A aviação é a sua grande paixão e, além de líder do território, há cerca de 15 anos, é proprietário da companhia St. Barth Commuter. «Felizmente que houve a mão de obra portuguesa», diz Magras, elogiando não só o profissionalismo da comunidade como a sua facilidade de integração: «Aqui, são muito católicos, como nós, e isso ajudou.
Problemas? Só se for a quantidade de acidentes, diz. São fáceis de imaginar nestas estradas, muitas com piso de cimento, íngremes, estreitas e com curvas apertadas, cheias de scooters, jipes e minis, muitos minis: o carro favorito das empresas de aluguer locais.
De Rockfeller a Abramovich
Nas últimas décadas, a ilha vive num permanente paradoxo, que passa por travar e acelerar, ao mesmo tempo, o desenvolvimento e a ocupação deste espaço tão limitado. Magras acredita que, a muitos níveis (produção de energia elétrica, de água potável, ocupação da «zona industrial» da minúscula capital, Gustavia), a ilha está no limite. E assume a estratégia antiga «talvez um pouco egoísta» de proteger St. Barths do turismo de massas, apontando decididamente a um público-alvo de milionários, desejosos de seguirem o exemplo do lendário David Rockfeller que, (re)descobriu a ilha, a bordo do seu veleiro, em 1957, e aí comprou o terreno que pertence hoje a Abramovich.
Daniel Correia, 34 anos, de Braga, aponta a esse target dos turistas milionários. Não é o típico emigrante mais do que fugir da crise, fugiu de um país triste e sem entusiasmo, que, atualmente, não motiva empreendedores, dispostos a arriscar, como ele. Chegou há seis meses, com Diana Gomes, 28 anos, e o filho de ambos, Guilherme, de nove. Com a empresa Latin Vip Services, que está a desenvolver com um sócio francês, pretende cativar os turistas dos países lusófonos (há cada vez mais brasileiros) e da América Latina.
Em Portugal, o casal teve negócios que correram bem e que correram mal (no capítulo dos primeiros, conta-se a escola de manequins Size Models), por isso começou do zero. Daniel é formado em gestão de empresas, Diana trabalhou como modelo (uma experiência que já repetiu em St. Barths) e agora vende relógios Rolex, numa das lojas de luxo de Gustavia.
Guilherme foi o que enfrentou mais dificuldades para se adaptar, ao iniciar a frequência do quarto ano numa escola onde não percebia praticamente nada do que a professora dizia. «Só a matemática é que é igual, claro.» Ali, onde já viviam duas irmãs de Diana, os portugueses destacam, sobretudo, o clima: as temperaturas não descem abaixo dos 20ºC, durante o ano todo. E a segurança, um valor de St. Barths, sublinhado por todos. Muitos fazem até questão de dizer que raramente fecham os carros ou mesmo as casas. «Só queremos arrepender-nos do que tentámos fazer, não queremos, no futuro, arrepender-nos do que não fizemos. », dizem. A aventura ainda está a começar e o Portugal cinzento de que falam parece (e é), visto dali, um lugar longínquo.
Regressar não está nos seus horizontes: «Vendemos o carro e comprámos bilhetes só de ida.» A lógica não é a de acumular dinheiro para um dia voltarem. É, simplesmente, a de tentarem viver a vida que querem, em pleno, em qualquer parte do mundo.
Pioneiros vieram do Alentejo
Numa comunidade à qual quase todos os portugueses chegam porque têm familiares ou conterrâneos na ilha, Octávio Lopes, 48 anos, acaba por ser uma espécie de emigrante acidental. Quando lhe disseram «vais gostar de St. Barths, há lá muitos portugueses», pensou que estavam a brincar com ele. Veio de Londres, para onde emigrara com os pais, aos 5 anos. Estudou hotelaria e fez carreira nos melhores hotéis da capital britânica. Foi aí que, em 2011, lhe lançaram um desafio que não esperava. Disseram-lhe que era a pessoa certa para a missão de alterar o perfil de um dos mais míticos hotéis de uma ilha das Caraíbas, a tal onde havia muitos portugueses.
«E onde é que isso fica?.» O Taïwana foi, durante muitos anos, gerido por um excêntrico que só abria o hotel dez semanas por ano e se reservava o direito de selecionar os hóspedes Mick Jagger, Madonna ou Steve Jobs eram visitas frequentes, seduzidos por uma praia perfeita, um ambiente sofisticado e descontraído ao mesmo tempo, uma ilha onde podiam circular sem serem incomodados.
Agora, com novos proprietários (um turco, que vive em Inglaterra, e um francês), o Taïwana quer continuar a ser exclusivo, sim, mas mais aberto. E para isso está lá Octávio, the right man for the job, excelente anfitrião, de sorriso fácil, que se sente «100% português». E, por incrível que isso lhe parecesse, antes de chegar, ali tem óptimas oportunidades de exercitar a língua. As empregadas da cozinha e de limpeza são praticamente todas minhotas. «Quando aqui cheguei, pensei : ‘Guimarães e Braga devem ter ficado vazias…’». Não demorou muito a fazer amigos portugueses. Helder Sobral–Salgueiro, 52 anos, natural de Grândola, de onde saiu para França ainda criança, com os pais, é um deles. É também um dos portugueses com mais experiência de St. Barths e um dos que melhor conhece toda a comunidade.
Já fez muitas coisas desde que ali chegou, nos anos 80: uma delas, abrir uma empresa de alumínios, foi um tiro certeiro, numa ilha onde os caixilhos eram todos de madeira. Hoje, podemos encontrá-lo no seu bar de tapas Me Gusta, onde vende presunto de porco preto de Barrancos, vinhos, azeite e outras iguarias portuguesas, mas também italianas e espanholas.
O seu irmão mais velho, José, pode ter sido o culpado por esta insólita invasão: foi o primeiro a chegar à ilha, em 1983, como técnico de maquinarias pesadas, usadas na construção da central de cimento. Um a um, de início, e depois famílias inteiras (é comum encontrar aqui três gerações), os portugueses foram-se instalando. A esmagadora maioria, aqueles que trabalham na construção, em cozinhas ou em limpezas, recusam a ideia de que vivem numa espécie de El Dorado. É essa a mensagem que querem deixar mais clara, a uma só voz: os salários até podem ser bons, comparados com os portugueses, sim. Mas os preços são muito elevados, a ilha é demasiado pequena, o trabalho é duro e começa a escassear (há já, mesmo, quem esteja a receber o subsídio de desemprego do Estado francês). «Isto não é nenhum paraíso», repetem, conscientes de que aquelas águas azuis, transparentes, podem iludir quem acaba de chegar.
(Reportagem publicada na VISÃO 1046, de 21 de março de 2013)