Cada ida às urnas no próximo ano representa, para a Europa, um mergulho em apneia.
Se a extrema–direita sair derrotada, ou não conseguir formar governo, a União Europeia ganha mais um balão de oxigénio. Caso contrário, se vencer e conduzir, por exemplo, Marine Le Pen ao Eliseu, a Europa dos valores liberais não voltará tão cedo à superfície. “2017 é o ano para tornar irreversível, ou não, a tendência nacionalista, protecionista e xenófoba”, comenta Paulo Sande, professor no Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica.
O calendário inclui presidenciais e legislativas no eixo franco-alemão e eleições gerais na Holanda, outro país fundador da união. Pelo meio é provável que os italianos também sejam chamados a escolher um novo Parlamento, ao mesmo tempo que se ultima um resgate à banca do país que, além de ter custos para contribuintes, também pode fragilizar outros sistemas bancários. Depois da surpresa do Brexit e da vitória de Donald Trump, em 2016, medir o pulso aos cidadãos europeus passou a ser um exercício de alto risco para os partidos do “centrão” político.
A crise dos refugiados, associada com frequência a atos de terrorismo em solo europeu, e uma economia débil ainda com muitos desempregados ou assalariados precários e mal pagos, afastam uma camada da população da agenda progressista e torna-a a permeável à mensagem dos partidos anti-establishment. “O atual modelo social-económico europeu, desenhado nos anos 40, já não é viável. Trabalhistas e social-democratas estão em crise, é transversal a toda a Europa”, diz Filipe Vasconcelos Romão, professor universitário no ISCTE/Autónoma.
As sondagens mostram o desencanto nos países com eleições à porta. O Partido da Liberdade, na Holanda, liderado pelo eurocético e anti-imigração Geert Wilders, surgia à frente nas intenções de voto, com 20-25%, ainda antes do atentado ao mercado de Natal de Berlim. “Há poucas dúvidas de que 2017 vai trazer, para a Alemanha e para o resto do Ocidente, mais violência, mais lágrimas, mais massacres. Ainda não viram nada”, escreveu Wilders, num ensaio para o Instituto Gatestone. A fragmentação partidária holandesa dificulta a formação de um governo de Wilders, que mesmo que vença as eleições pode ser ultrapassado por uma “coligação à portuguesa”, dos partidos que ficaram atrás em número de votos.
Na Alemanha, o exemplo governativo português também é um cenário em cima da mesa nas eleições de setembro. Uma coligação entre os sociais-democratas (SPD), os Verdes e a esquerda Die Linke não é de excluir, apesar de o mais provável ser uma reedição da grande coligação do SPD com os conservadores (CDU) de Angela Merkel.
A chanceler alemã, candidata a um quarto mandato, sai desgastada da política de porta aberta aos refugiados e pelo último ato de terrorismo em Berlim, mas continua à frente nas sondagens. O seu protagonismo só perde para a outra mulher-sensação das legislativas, também ela filha da antiga RDA Frauke Petry, líder do partido eurocético Alternativa para a Alemanha (AfD).
A entrada de uma força de extrema-direita no parlamento alemão, hoje sem grande oposição, representa uma rutura política capaz de provocar uma erosão nas fileiras conservadoras da CDU, em particular no partido irmão da Baviera (CSU), e complicar a matemática para formar governo. Petry, conhecida por “Adolfina”, pode ocupar o espaço vago na direita alemã, empurrar a CDU para um discurso menos moderado e, numa questão de tempo, encontrar pontes de diálogo com o partido que é ainda controlado pela chanceler.
‘ENGOLIR SAPOS’ PARA TRAVAR LE PEN
A extrema-direita avança na Alemanha, mas ainda tem uma maratona pela frente e um acesso vedado ao poder. Em França, pelo contrário, o Eliseu está ao alcance de Marine Le Pen, líder da Frente Nacional (FN). As sondagens mostram que na primeira volta, a 23 de abril, Le Pen vence qualquer candidato socialista, independente ou republicano. Mas a 7 de maio, segunda volta das eleições, há muitas dúvidas que consiga a maioria que também escapou ao seu pai, Jean-Marie, num frente a frente com Jacques Chirac em 2002.
Tudo depende da capacidade de “engolir sapos” dos partidos derrotados, em particular dos Republicanos (antigo UMP), de François Fillon, que nas regionais de 2015 preferiram abster-se a apoiar os socialistas nos duelos finais com a FN. Na corrida ao Eliseu há ainda espaço para surpresas, como a do independente Emmanuel Macron, ex-ministro da era Hollande, tão ou mais popular nas sondagens que o conservador Fillon.
As presidenciais francesas têm o poder de ser o elemento que decide o futuro europeu.
Se Le Pen tomar as rédeas do país que inventou a União Europeia (UE), é o fim da união, pelo menos daquela que se conhece hoje. “Os ciclos eleitorais podem trazer oxigénio à UE, caso vençam os partidos moderados, mas não esvazia o ódio nem o seu mercado eleitoral”, diz Bernardo Pires de Lima, investigador do IPRI da Universidade Nova de Lisboa.
O discurso nacionalista, fora do coração europeu, ganha raízes mesmo em partidos que pertencem às grandes famílias políticas europeias é o caso do húngaro Fidesz, do primeiro-ministro Viktor Órban, que pertence ao PPE, o grupo que inclui o PSD e o CDS. O maior país do Leste europeu, a Polónia, também caminha a passos largos para mudanças questionáveis no Estado de Direito, vigiadas de perto por Bruxelas, num momento em que nenhum partido de esquerda tem assento no parlamento polaco. Sob a batuta informal de Jaroslaw Kaczynski, o governo polaco comprou um braço de ferro com Bruxelas, ao qual a diplomacia britânica está muito atenta para capitalizar com os atritos Este-Oeste nas negociações do Brexit. “Sem referências liberais, o Brexit torna-se mais fácil. Cada um cai para seu lado”, afirma Paulo Sande, da Universidade Católica.
Num ano normal, Merkel estaria mais concentrada em resolver as tensões políticas e os problemas económicos europeus, desde a nova política externa de Donald Trump ao desanuviamento provável das relações EUA-Rússia, passando pelos golpes no espaço Schengen, a crise bancária em Itália ou o debate do perdão da dívida grega. Mas 2017 é ano de eleições, de regresso à mensagem interna e de domesticação da iniciativa política. Bruxelas não a pode substituir. A época eleitoral contamina as instituições europeias.
A Comissão Europeia, em particular, fica paralisada na hora de tomar decisões com possível impacto eleitoral. Mas não só. Ao trocar a presidência do Parlamento Europeu pela política interna alemã, o social-democrata Martin Schulz força agora uma complexa dança de cadeiras institucional.
2017 arrisca-se a ser um ano de paralisia, um ano perdido. Nas palavras de Paulo Sande, “a Europa que conhecemos pode desaparecer”. O primeiro mergulho em apneia está marcado para hoje, 15 de março, dia das eleições holandesas.
(Artigo originalmente publicado na VISÃO1243, de 29 de dezembro de 2016)