Sebastian Roché é um dos grandes especialistas europeus em criminalidade e delinquência. E a vaga de protestos de que têm sido palco os subúrbios de Paris nas últimas duas semanas merece-lhe um comentário perturbador: “Tem todos os elementos para que este movimento se generalize”, adverte o também diretor de investigação no CNRS, o influente e prestigiado instituto público onde trabalham mais de 30 mil académicos e funcionários. Para se perceber o alcance das suas palavras, o melhor é recuarmos a 2 de fevereiro. Nesse dia, Théo L., um jovem negro de 22 anos, foi mandado parar por quatro polícias, minutos depois de sair de sua casa em Aulnay-sous-Bois, um subúrbio de Sena-Saint-Denis, a nordeste da capital de França. Supostamente, terá comentado para os agentes que deveriam tratar com respeito os habitantes do bairro (Cité dês 3000) quando fazem aí rusgas.
Como resposta, terá recebido muito mais do que voz de prisão: os insultos e as agressões levaram-no a tentar fugir já algemado para uma zona onde estava uma câmara de videovigilância, com o objetivo de deixar registado o seu incidente. As imagens que viriam depois a ser tornadas públicas não são esclarecedoras mas o relatório médico confirma o que este jovem sem antecedentes criminais sempre disse, que um dos agentes o violou com um bastão: “Ferida longitudinal no ânus com 10 centímetros de profundidade”, “corte do músculo do esfíncter” e “lesões que correspondem à introdução de um objeto”.
DESCULPAS E DISCRIMINAÇÕES
Hospitalizado há duas semanas, Théo já recebeu a visita do Presidente François Hollande, que lhe pediu desculpas em nome do Estado e lhe prometeu uma investigação para apurar responsabilidades.
Ele, por saber o que está a acontecer, tem multiplicado os apelos à calma: “Gosto muito do meu bairro, quando regressar a casa quero encontrá-lo como o deixei. Vá lá pessoal, tenham calma e rezem por mim!” Em vão. Na periferia de Paris, os resultados estão à vista: noites consecutivas de violência, com milhares de pessoas a clamarem vingança contra as forças de segurança. O facto do relatório preliminar da polícia indicar que a violação a Théo tinha sido “acidental” e os quatro agentes envolvidos no caso permanecerem em liberdade tem agudizado ainda mais a tensão. Os tumultos já provocaram mais de uma centena de detenções e ameaçam descambar numa revolta idêntica à de outubro e novembro de 2005. Nessa ocasião, o Governo teve de decretar o estado de emergência devido aos 300 edifícios públicos e 10 mil veículos que foram vandalizados em quase três centenas de localidades por toda a França. Também nessa altura, a origem dos problemas deveu-se a um caso mal explicado pela polícia: a morte de dois adolescentes de origem africana que acabaram eletrocutados quando fugiam de uma rusga.
Agora, ninguém diz querer uma nova guerra nos subúrbios, sobretudo quando o país já está em campanha eleitoral para eleger o futuro Chefe de Estado.
Só que os candidatos ao escrutínio, cuja primeira volta está agendada para 23 de abril (a segunda a 7 de maio), não hesitam em instrumentalizar o tema da violência e da imigração. O primeiro a fazê-lo foi François Fillon, representante da direita conservadora e católica, que acusa o Governo socialista de não saber lidar com os desafios securitários.
O COMBOIO DA NEGAÇÃO
O antigo primeiro-ministro foi ainda mais longe e defendeu o papel da polícia, além de ter enaltecido o comportamento do agente que “salvou à justa uma criança de morrer sob as chamas” em Bobigny. Sucede que o resgate da menina de cinco anos a que se referia teve como protagonista não um polícia mas um adolescente que participava nos protestos noturnos de sábado, 11.
Um lapso que desacredita ainda mais o candidato envolvido no escândalo de empregos fictícios, apelidado de Penelogate, de que beneficiaram a sua mulher e os seus dois filhos mais velhos. Por ter recebido qualquer coisa como 880 mil euros à custa do erário público, Fillon está em queda livre nas sondagens e os seus correligionários do partido Os Republicanos (incluindo deputados e senadores) pedem-lhe que abandone a corrida para não ser confrontado com um eventual processo judicial sobre o assunto. Em negação, ele diz que a investigação em curso é “ilegítima” e que a sua candidatura é um “comboio que ninguém vai travar”.
Marine Le Pen, a líder da Frente Nacio- nal (FN), aproveita as polémicas adversárias e garante que os desacatos nos subúrbios de Paris são o resultado de “um contexto de laxismo generalizado” com a classe política tradicional a ser a grande responsável. Para a dirigente radical, que todas as sondagens colocam na segunda volta presidencial, esta é uma oportunidade para consolidar e ampliar apoios. Há dias que anda numa roda–viva a visitar esquadras, sublinhando a capacidade de trabalho “heroica” dos que têm por missão garantir a ordem e o estado de emergência em que o país vive há 15 meses (desde os atentados de 13 de novembro, em Paris). Marine rejeita qualquer conversa sobre abusos policiais, apesar do próprio provedor da República, Jacques Toubon, reconhecer que a esmagadora maioria dos controlos de segurança (80%) incidem sobre indivíduos “não brancos”. E, se alguém lhe fala em discriminação, ela alega que os agentes lutam com falta de meios e contra a indiferença dos seus compatriotas quando são agredidos, invocando, por exemplo, o episódio de 8 de outubro em Grande-Borne, no Sul de Paris, em que dois polícias quase perderam a vida ao serem atacados com cocktails molotov no respetivo carro-patrulha.
Este tipo de argumentação pode ser polémico mas continua a dar frutos. Há pouco mais de um ano, um relatório do CEVIPOF, que pertence ao Instituto de Estudos Políticos de Paris (vulgo Sciences Po), indicava que 53% dos polícias e militares franceses eram simpatizantes e eleitores habituais da FN. No mês passado, um novo relatório da mesma instituição analisava também as intenções de voto dos funcionários públicos face ao sufrágio presidencial de 2017. E o seu autor, Luc Rouban, concluía que a “direitização” desta franja da população é uma tendência de “longo prazo” e que se deve à “exigência generalizada de autoridade e à crise social”. Com a esquerda dividida entre três candidatos que não conseguem entender-se sob a liderança do socialista Benoît Hamon, e com o independente Emmanuel Macron (que acusa a Rússia de promover uma campanha para o denegrir) a converter-se num claro favorito a disputar com Le Pen a segunda volta, tudo indica que o desfecho desta campanha será imprevisível.
Como escreveu no Le Monde Françoise Fressoz, a líder da FN “tem o caminho aberto” para chegar onde quer. O tempo dirá se consegue conquistar o Eliseu e ser a Presidente de todos os franceses.