Quem nunca comprou um artigo de imitação ou de contrafação que atire a primeira pedra. Sobretudo na área da moda, modelos a copiar grandes marcas internacionais, como Louis Vuitton ou Nike, fazem as delícias de quem lá vai e, por vezes, um brilharete em quem os usa. E, apesar de as autoridades estarem cada vez mais atuantes na fiscalização e fazerem cada vez mais apreensões, isso não significa propriamente uma diminuição do flagelo: há sempre compradores e a internet aboliu fronteiras e acelerou e expandiu um processo que antes era apenas característico em certas zonas de um determinado país (como a China) ou das feiras (como em Portugal).
Foi precisamente a pensar neste novo contexto, que a Escola de direito da Universidade Católica promoveu, no Porto, um colóquio onde se discutiu a contrafação e os desafios da Economia Digital. E o mínimo que se pode dizer é que a luta, no que ao direito da propriedade intelectual da moda diz respeito, terá tanto de grandeza como de inglório.
O orgulho de se ser copiado
A criadora e empresária de moda Katty Xiomara lançou o mote: “Feliz ou infelizmente, não sinto o flagelo da contrafação na pele”, assumiu. Este “infelizmente” aplicado a um crime semi-público que “origina, anualmente, um prejuízo avaliado em cerca de €450 mil milhões e coloca em perigo mais de 200 mil postos de trabalho em todo o mundo, metade dos quais na Europa”, só podia causar estranheza.
Mas isso só quer dizer que, apesar de ter todos os registos e patentes que a protegem em várias partes do mundo, a marca ainda não é suficientemente conhecida para ser alvo de desejo dos contrafatores. Apenas conhecida o suficiente para ser alvo de cobiça de “alguém do bairro” que lhe comprou uma peça com o propósito de confecionar e vender posteriormente algumas cópias, como viria a confessar.
Isto é o que o professor de Direito Nuno Sousa e Silva chamou de “paradoxo da pirataria”: “A contrafação expressa o desejo e o sucesso de uma marca. E nem sempre é lesiva.”
Como prova um caso ali contado. Qual não foi a surpresa do agente policial quando, comunicada a contrafação ao dono do modelo original, ele responde com grande alegria: “ahhh bom, já somos uma marca que merece ser falsificada!”. Será este o melhor sinal de reconhecimento?
Se não há queixa, não há crime
A não apresentação de queixa por parte das marcas lesadas parece ser a dificuldade que tanto a ASAE, órgão da polícia criminal para as fiscalizações e intervenções nesta área, como o Ministério Público, mais enfrentam e que impede que a punição seja de forma a que o crime não compense. O facto de se tratar quase sempre de multinacionais, sem representação direta em Portugal, tende a agravar a situação.
Sem queixa, não há crime passível de ir a julgamento. Apenas há a hipótese de meras apreensões e aplicação de contra-ordenações, com multas de €100 ou €200, bastante leves para as vantagens financeiras que a contrafação já obteve para os seus autores. Ou seja, este crime pode compensar, apesar de ser punível com três anos de cadeia ou 360 dias de multa.
Não há, contudo, notícia de que a quantidade de imitações possa ter afetado grandemente as marcas copiadas ao ponto de lhe causar grande rombo financeiro, pois destinam-se a públicos diferentes. Mas ampliam a publicidade e potenciam o desejo de cobiça.
Daí que a Procuradora Elina Cardoso acentue o efeito que medidas como a interrupção temporária ou o encerramento das fábricas de contrafação possam ter no negócio ilícito. Mas, com o negócio a passar para o mundo digital e a proliferação de páginas no Facebook, tornou-se extremamente fácil que o negócio continue fora da vigilância dos inspetores.
100 denúncias anónimas por dia na ASAE
Com um grande sentido de humor, o diretor da Unidade Nacional de Informações e Investigação Criminal da ASAE, Domingos Antunes, frisou todas as contrariedades da legislação que anulam todo o efeito de inspeção e fiscalização. Algo que já o levou a intitular-se com a alcunha de “o parasita”.
Explicou porquê: “Só atuo por ordem do Ministério Público. A lei diz que, independentemente da queixa, deve haver fiscalização. E, uma vez detetada a contraordenação, devo atuar? Se atuo e apreendo o material, o Ministério Público tem de validar. Deve validar sem queixa?”.
Para fazer uma rusga policial é preciso um mandado de busca do MP, sendo que para o conseguir é necessário já ter uma forte convicção e algum indício de prova. Ora, das 100 denúncias anónimas que a ASAE recebe por dia referente a contrafação, sabe-se que a esmagadora maioria tem origem em conflitos: ou é de alguém que foi despedido, ou resultado de um divórcio ou de um senhorio a quem se deixou de pagar renda.
As interrogações continuam no mesmo tom que remete para o facto da complexidade do sistema legislativo beneficiar o infrator: “Para efeitos de prova, é preciso um exame pericial, que passa por notificar a marca. E lá temos de andar atrás de um representante da marca. Atendendo a que há processos que envolvem 60 marcas, só a peritagem demora dois anos”.
Se a apreensão é feita, tem depois de ser destruída. “As destruições são caras e imputadas à ASAE.” O mais penalizador era o encerramento dos estabelecimentos, mas agora, “a contrafação é anunciada nas redes sociais”. Outra agravante, porque localizar a origem dos sites não é fácil, “identificar um endereço de IP pode demorar seis meses”.
Mesmo colocar um banner, anunciando a vigilância da União Europeia, implica uma colaboração de instituições europeias que só agora se começa a desenvolver no âmbito do cibercrime mundial. E se é apagada ou fechada uma página são logo abertas outras. “O principio da territorialidade do direito está ameaçado pelo mercado digital”, diz Domingos Antunes, que pede uma revisão de todo o quadro legislativo.
Sensibilizar o consumidor
Conclusão, não há soluções fáceis para acabar com a contrafação, que pode ter consequências perigosas no mundo farmacêutico, por exemplo, mas é mais ou menos inócua no mundo da moda.
Sobretudo num país em que o têxtil assenta essencialmente na produção para outras marcas, desresponsabilizando-se de salvaguardar a propriedade intelectual. E num setor onde os designers têm de expor os seus modelos publicamente. E onde o consumidor adora exibir o estatuto de uma Louis Vuitton de feira.
Pelo menos, foi essa a ideia deixada pelo homem da ASAE. “Em Portugal, compra-se falso com a convicção de que a qualidade é muito semelhante, e porque o português gosta de exibir marcas e tem baixo poder económico. É também uma forma de protesto de alguns contra as grandes marcas. O ultimo estudo europeu considera até que este comportamento não deve ser muito penalizado.”