Conquistar a excelência seguindo princípios como a amizade, a igualdade, a solidariedade e o fair play é a marca distintiva dos Jogos Olímpicos desde a sua génese, na Grécia Antiga. Sob o lema “mente sã num corpo são”, o povo helénico respeitava o “armistício sagrado” e dedicava-se integralmente à prática desportiva, esquecendo as disputas. Ontem, como hoje, esta é, mais do que um ideal, uma filosofia de vida para qualquer atleta de alta competição. O que pode afetá-la, e a que níveis, em tempo de pandemia e incertezas várias?
Primeiro, o adiamento dos Jogos, pelas quarentenas, cancelamentos e interrupção dos programas de preparação. Depois, a gestão do tempo de espera, das dúvidas e das expetativas: “Quando vão realizar-se, afinal?” “Estarei suficientemente em forma na hora H?” Na altura em que tudo parecia entrar nos eixos, novos fatores entraram em cena: a inevitabilidade de o maior evento desportivo do mundo ter de realizar-se sem público devido à nova vaga pandémica em Tóquio, a adaptação dos atletas às regras de segurança (ainda mais) apertadas e o terem de lidar com outras fontes perturbadoras, como a de não ser exigido aos participantes estarem vacinados antes de chegar à capital japonesa.
Como é que estas alterações de rotinas, que afetaram o mundo inteiro, mexem com o estado psicológico dos atletas, as suas elevadas expetativas de desempenho, bem como dos treinadores, no meio de tantos imponderáveis?
Antes torcer que quebrar
A frustração é uma das reações mais prováveis diante destes contratempos. A hipótese é de Diogo Monteiro, docente na Escola Superior de Educação e Ciências Sociais do Politécnico de Leiria. Em teoria, existe a possibilidade do “aumento da ansiedade e do stresse, a par de menor perceção de competência, motivação e bem-estar”. E identifica duas tendências: “Atletas com uma maior capacidade de resiliência e alta identidade atlética podem ter visto no adiamento dos Jogos Olímpicos e Paralímpicos uma oportunidade para melhorarem determinados skills, enquanto outros, com menos resiliência e baixa identidade atlética, terão agudizado perceções de incapacidade.”
Dois impactos possíveis dos revezes pandémicos nos atletas, segundo os estudos disponíveis: uma oportunidade para melhorar competências ou fator de risco para aumentar receios de incapacidade
Diogo Monteiro, que também realiza estudos no Centro de Investigação em Desporto, Saúde e Desenvolvimento Humano – CIDESD, baseia a sua afirmação nos dados divulgados pela Organização Mundial de Saúde, no ano passado, sobre o impacto das medidas de isolamento na saúde psicológica, que foi superior a 16%. Como exemplo, refere “a desistência da tenista Naomi Osaka, quatro vezes vencedora do Grand Slam, do torneio Roland Garros, alegando problemas de saúde mental”.
É de admitir, então, que a pressão adicional trazida pelas circunstâncias em que se desenrolam os Jogos possa traduzir-se, “a curto-médio prazo, num abandono precoce da modalidade”, como sugerem os resultados de um estudo desenvolvido por investigadores do CIDESD e de cuja equipa fez parte (publicado há três anos) sobre o fenómeno do abandono desportivo em nadadores.
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A quarta vaga da Covid-19, mais “a variante Eek, responsável por mais de um milhar de casos no Japão, a assombrar os Jogos de Tóquio”, e a falta de público, “é algo que poderá deixar os atletas apreensivos, pouco motivados ou até mesmo (a)motivados”. Em causa, eventuais reações mentais adversas como o “aumento da ansiedade pré-competitiva, diminuição da atenção e concentração, falta de perceção de competência perante o contexto ou situação” e, posteriormente, “sintomas depressivos e baixa qualidade de sono, como mostrou um estudo recente publicado este ano.”
Para os treinadores, o desafio é “criarem condições para que os atletas aumentem a sua satisfação de competência e consigam atingir níveis ideais de motivação autónoma, contribuindo para aumentar a longevidade na carreira desportiva nas modalidades individuais e coletivas”.
Nestes Jogos, que vão por à prova a robustez mental dos participantes, “o fator-chave é a identidade atlética e o compromisso com a competição”, sugere Diogo Monteiro. E remata: “A odisseia vai torná-los, porventura, mais resilientes.”
Recursos de elite
A psicóloga de alto rendimento Ana Bispo Ramires, que integra a Direção de Medicina do Comité Olímpico de Portugal (COP), na especialidade de Psicologia Clínica e Desporto, realça a emergência de medos primários que afetou todos durante a primeira quarentena, “com cenários dantescos de crise e a vaga emocional associada, semelhante à de um tsunami”.
Os atletas sentiram o fenómeno de forma diferente, mais agravada para alguns, e percebe-se porquê: “Dada a sua especialização precoce, as identidades profissional e pessoal confundem-se; por esta razão, é possível que alguns tenham sentido mais esse abalo.”
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Dito isto, há que destacar o óbvio: “Os atletas de alto rendimento não são os melhores por acaso, mas por terem uma toolbox emocional que conseguem ativar.”
Alguns aproveitaram as paragens impostas pela crise sanitária para “aprimorar competências técnicas como a força e a flexibilidade, e ganharem vantagem competitiva”.
Veja-se o caso da atleta portuguesa de triplo salto Patrícia Mamona: “Depois de infetada com Covid-19, teve os recursos internos para conseguir chegar a campeã europeia, mesmo duvidando disso.”
Os atletas estão focados num propósito e vão blindar-se a fontes de ruído e de contágio para levar a missão a bom porto nesta reta final
psicóloga Ana Bispo Ramires, do Comité Olímpico de Portugal
Em síntese, quando se fala de uma população de elite há que ter presente que tem “uma maior capacidade de ajustamento, até pelo apoio do staff na gestão da adversidade, acabando por ser mais aptos para lidar com este tipo de situações”. Aqui, destaca-se o trabalho de retaguarda do COP, que “teve o cuidado de fazer formações específicas para treinadores e atletas, com conhecimentos sobre a Covid-19, a vacinação, como lidar com o clima (calor, humidade), a regulação do sono (oito horas de jet lag) e outros recursos”.
Haverá razões para temer os efeitos secundários da incerteza pandémica na saúde mental dos nossos heróis? A resposta mais provável é não. A explicação é simples: “Estão focados num propósito e vão blindar-se a fontes de ruído e de contágio para levar a missão a bom porto nesta reta final.”
Um passo à frente na igualdade de género
Os dias 23 de julho e 24 de agosto marcam o início das provas dos Jogos Olímpicos e Paralímpicos que, este ano, parecem fazer-se acompanhar do crescente interesse do setor feminino. Segundo uma análise da Nielsen Sports nas 15 nações mais ricas do mundo, 45% das mulheres mostraram interesse nos Jogos, ficando apenas 3% atrás dos homens. Este número contrasta com os encontrados na NBA, que cativa apenas 17% do universo delas. Daqui se depreende que este é um passo importante para a maior paridade de género no maior evento esportivo do mundo. Segundo a Reuters, nas Olimpíadas de Tóquio, as competições para mulheres contemplam 156 medalhas de ouro e 494 das medalhas disponíveis, enquanto as masculinas envolvem 165 medalhas e 530 de um total de 530, tendo o Comité Olímpico Internacional (COI) agendado eventos mistos onde mais mulheres podem conquistar medalhas.