O abraço fraterno entre Iúri Leitão e Rui Oliveira no lugar mais alto do pódio, a entoarem em conjunto o Hino nacional, no velódromo de Saint-Quentin-em-Yvelines, nos arredores de Paris, após a conquista da medalha de ouro olímpica na prova de madison do ciclismo de pista, merece ser recordado como uma das imagens mais belas e inspiradoras do desporto nacional: pelo significado, quase comovente, da fraternidade entre os dois ciclistas e pelo caminho que esta vitória pode significar para todos os atletas portugueses, em busca de um caminho de glória.
Este título olímpico pode ter sido inesperado para a esmagadora maioria dos portugueses, mas não foi fruto do acaso. E, mesmo que Iúri Leitão se tenha tornado no primeiro português a conquistar duas medalhas numa mesma edição dos Jogos Olímpicos, esta proeza inédita do desporto nacional também não se explica por estarmos perante um atleta superlativo capaz de, a solo, escrever História.
Iúri Leitão é um grande ciclista e, como estes Jogos de Paris 2024 demonstraram à saciedade, possui ainda um espírito competitivo acima da média, além de uma inteligência tática que, nas provas dos últimos dias, lhe permitiu subir duas vezes ao pódio, mas não é um talento superlativo. Rui Oliveira, que até tem tido melhores resultados nas provas de estrada do que Iúri, também demonstrou ser um autêntico atleta olímpico – no que isso significa de capacidade de empenho e de superação -, mas está longe de ser um fora-de-série.
Apesar dessa realidade, que alguns poderiam considerar limitações, a verdade é que Iúri Leitão e Rui Oliveira demonstraram ser, em conjunto, na prova mais importante de todas as competições relevantes, a melhor dupla do mundo na competição de madison, nos Jogos de Paris 2024. Porquê? Porque o talento de ambos – que talvez não fosse detetável à primeira vista… – teve a oportunidade de, nos últimos anos, poder ser melhorado e amplificado num contexto competitivo de alto nível, em cooperação com outros ciclistas de grande qualidade e com infraestruturas semelhantes às das nações mais desenvolvidas.
Num País em que, com justiça, tantos se queixam da falta de apoios aos atletas das modalidades olímpicas, esta medalha de ouro no ciclismo de pista pode ser um importante abre-olhos para o caminho que precisa de ser trilhado. E que se resume a uma frase gasta, mas simples: fazer mais, em conjunto com os melhores, com objetivos bem definidos.
Perdoe-me o leitor, mas repito aqui aquilo que escrevi, há poucos dias, sobre a medalha de prata de Iúri Leitão na prova de Omnium, acerca da única forma admissível, atualmente, para se conquistar a glória olímpica: “através da integração, desde cedo, do talento num forte e consistente trabalho de equipa, num espaço com infraestruturas adequadas, que proporcione um clima de grande competitividade interna, dirigido de forma competente e focada nos objetivos mais importantes”.
É isso que tem sido feito, há cerca de década e meia, no Centro de Alto Rendimento de Ciclismo, que tão bem tem sabido potenciar uma infraestrutura com a qualidade do Velódromo erguido em Sangalhos, no concelho de Anadia – hoje o coração e o orgulho do ciclismo português. E a conclusão é só uma: a medalha de ouro de Iúri Leitão e Rui Oliveira não é fruto de um golpe de sorte ou de acaso, mas antes o corolário de uma estratégia de longo prazo, que soube, sem alardes, ir caminhando, passo a passo, até à glória olímpica final.
Em 1976, nos Jogos Olímpicos de Montreal, a medalha de prata de Carlos Lopes nos 10 mil metros confirmou que Moniz Pereira estava certo quando afirmava que os portugueses poderiam ser tão bons como os melhores, se lhes dessem as condições de treino adequadas. Essa premissa foi confirmada nas medalhas de ouro seguintes – de Rosa Mota, Fernanda Ribeiro, de Nélson Évora e, num contexto particular, de Pedro Pichardo -, todas elas assentes, no entanto, em talentos excecionais, numa relação muito próxima e prolongada com os seus treinadores.
Agora, o título olímpico de Iúri Leitão e Rui Oliveira pode bem significar o início de um novo ciclo, já não tão assente no talento individual, raro e superlativo, de um atleta, mas antes num processo capaz de fabricar campeões, saídos de um ambiente competitivo e altamente profissional.
Esta histórica medalha de ouro no ciclismo de pista deve ser, por isso, encarada como uma lição para o desporto português. Ela demonstra que, mesmo contra a opinião de muitos, vale a pena pensar em grande, reunir os melhores, dar-lhes oportunidade de crescer e, no fim, aproveitar a oportunidade e, sem anúncios públicos prévios, aplicar a tática correta na competição, através da seleção dos melhores talentos para a executarem.
O resultado está à vista: após anos a trabalhar longe dos holofotes, o ciclismo de pista português apresentou-se, com estrondo e orgulho, ao mundo. Com uma certeza, mas também uma promessa: há uma fábrica de campeões em Sangalhos. Iúri Leitão e Rui Oliveira foram os primeiros a atingir a glória, mas tudo indica que outros se lhes seguirão.