As pernas que lhe deram a glória olímpica, há oito anos, parecem hoje um mapa onde se assinala cada batalha contra as lesões que lhe fustigaram o corpo. Duas longas cicatrizes na perna esquerda, uma sobre o joelho e outra na zona da tíbia. Mais uma na rótula da perna direita. Diversas marcas de feridas e escoriações em músculos que, mesmo em descanso, parecem sempre tensos, tal como as veias grossas e salientes.
Ao seguir cada cicatriz, cada marca, podemos contar uma longa e intensa história, repleta de momentos de dor, sofrimento e resistência. Mas a história verdadeira não pode ser narrada só a olhar para as pernas. Foi com a cabeça que Nélson Évora ganhou a guerra mais difícil da sua vida. E é graças à sua força mental que ele promete voltar a voar no Rio de Janeiro. Hoje, dia 15, é dia de qualificação (13h30), amanhã, 16, discute-se a final (13h50).
Durante mais de quatro anos, entre 2010 e 2014, Nélson Évora viveu sempre na intermitência da dor: a alternar entre a esperança e o desalento, entre a resistência e a desistência, entre o sofrimento o esforço. Doeu muito, reconhece. Mas descobriu também que, no meio de todo este calvário, a dor maior não foi a física. A pior dor de todas, a que mais lhe custou, é aquela que, ainda hoje, lhe mantém uma ferida aberta… no coração: “O pior foi ter visto tantas pessoas virarem-me as costas, a deixarem de acreditar em mim.” As palavras saem-lhe como os saltos na pista: com naturalidade e elegância. Mas também com muita intensidade. Ele não esquece que foi esquecido. “Foi criada uma ferida com todos aqueles que me viraram as costas”, diz.
Foram muitos? Pergunto. Ele responde, olhos nos olhos, rosto fechado, mas sereno, sem alterar o tom de voz: “Muitos? Quase todos deixaram de acreditar em mim.” E enumera-os, por grupos, embora sem citar nomes: “Pessoas da família, pessoas que considerava amigos, pessoas do meu desporto…”
“A grande desilusão foi sentir a velocidade com que as pessoas esquecem tudo aquilo que fizemos, como deixam rapidamente de acreditar no nosso valor, no nosso trabalho. E não estou a falar só de mim. Sinto isso em outras modalidades e em outras atividades. Mas o que me entristece mais é o que isso representa como mentalidade de um país: se não temos a capacidade de acreditar nos outros, também não conseguimos acreditar em nós próprios”, sintetiza.
“A raiva fez-me atingir o estatuto de Jedi”
Ao ouvi-lo, ficamos com uma certeza: Nélson Évora recusa esquecer e tem uma crença nele próprio que ultrapassa todos os limites. Em especial agora, quando se sente já recuperado e pronto para dar o máximo nos Jogos do Rio. Por isso, quer contar a sua história, a sua versão de como esteve no céu, desceu ao inferno e voltou ainda mais preparado para regressar ao céu. Na sua memória, continua bem vivo aquele verão de 2008 e uns Jogos Olímpicos em que o País parecia mergulhado na mais profunda depressão perante os resultados da comitiva portuguesa, como que a antecipar a crise económica que, sem aviso, estalaria poucos meses depois. Nessa altura, o subprime, ou melhor o défice, era apenas de medalhas. Foi então que, numa tarde chuvosa, na capital chinesa, Nélson Évora saltou como mais nenhum dos seus adversários do triplo salto. Foram 17,67 metros e a correspondente medalha de ouro. O quarto português, na história, a ter a honra de subir ao degrau mais alto do pódio e a ouvir o hino no estádio olímpico. Tinha 24 anos e, poucos dias depois, regressou a Portugal em festa e adorado como uma espécie de super-homem. Indestrutível.
Só que Nélson não se esquece que, embora fosse campeão do mundo (título conquistado no ano anterior em Osaka, no Japão), já sentia que ninguém acreditava verdadeiramente nele. Ele lembra-se de tudo: “Basta ir aos arquivos e ver o que foi feito a nível de comunicação, de publicidade, de patrocínios. Eu era campeão do mundo, mas quem ia ganhar as medalhas era a Vanessa Fernandes, a Telma Monteiro, a Naide Gomes. O meu nome não constava da frente de batalha. Eu não estava nos cálculos ou na mente das pessoas, não entrava nas contas das medalhas.” A ironia é que ele foi o último a competir… e foi ele quem ganhou a medalha de ouro.
Nélson recorda muitos pormenores desses tempos. E lembra-se também que era, em certa medida, uma pessoa diferente da que é hoje. Reconhece, por exemplo, que acabou por usar a descrença que sentia em seu redor como uma motivação a seu favor. “Foram medalhas conquistadas à custa da raiva”, diz, com uma expressão dura, como de quem já renegou essa fase. E rememora: “Em 2007, fui campeão do mundo com raiva. Era jovem, vinha de um país pequeno e os adversários meteram-me num canto como se não tivesse valor. Provei que lhes conseguia ganhar. Em 2008, foi também a raiva que me motivou, que fez estalar toda a adrenalina dentro de mim, pois sentia que ninguém reconhecia o meu trabalho. Tanto a nível internacional como nacional.”
Agora, está diferente. Mais maduro e experiente. “Já não compito com raiva. Tenho 32 anos, estou focado naquilo que quero alcançar e tenho uma grande vantagem: já ganhei tudo o que havia para ganhar e não preciso de provar nada a ninguém.”
Para explicar essa mudança na sua mente, na forma como conseguiu transformar a sua força mental, que lhe deu tantos títulos e lhe permite continuar ainda hoje na competição ao mais alto nível, Nélson recorre ao universo e imaginário da Guerra das Estrelas: “Houve momentos na minha vida em que a raiva me fez atingir o estatuto de Jedi. Mas a verdade é que eu não me tornava um Jedi. Apenas caía no interior do lado negro (Dark Side) poderoso. Com o passar dos anos, vi que a raiva não leva a lado algum. Só nos leva à destruição. E às lesões.”
“Tens que pensar sempre que vais voltar mais forte”
Nélson Évora sabe exatamente do que fala. Foram quatro anos de lesões sucessivas. Seis operações cirúrgicas. Fraturas de tíbia, infeções, risco de amputação.
“Foi uma mudança brutal. A minha carreira tinha sido ascendente, sempre a cumprir todos os objetivos a que me propunha e, de repente, perdia tudo. Aos 26 anos, detinha os títulos de campeão olímpico e do mundo, mas não conseguia repetir as marcas que tinha feito aos 16 anos. Era andar completamente para trás. E ter, constantemente, que voltar a aprender a caminhar, a correr, a saltar à corda, coisas simples que tinha feito a vida toda. E, após nova lesão, após cada operação, era preciso reaprender tudo outra vez. Nem sequer era saltar, era mesmo reaprender a andar, a caminhar.”
Como é que se mantém a força mental nessa situação, quando o corpo parece ter-nos traído e abandonado? A pergunta, desta vez, é feita por uma atleta estrangeira que o interpela, no Centro de Alto Rendimento do Jamor, apoiada em muletas, e em vésperas de entrar na sala de operações.
“Tens que pensar sempre que vais voltar mais forte”, responde-lhe Nélson.
Ela ouve-o, com expressão desconfiada: “Já me disseram isso. Mas será que é verdade?”
Nélson quase que a interrompe: “É a mais pura das verdades. Não tenhas dúvidas. A nossa mente é o mais importante.”
“Acreditas nisso?”, insiste ela.
“Sim, sim, o mais possível”, responde, num diálogo sempre em inglês, com o saltador a assumir o papel de motivador. “E digo-te mais: se não acreditares… estás morta. Ouviste? Se não acreditares, estás morta!”
“Se acreditarmos, conseguimos ultrapassar qualquer barreira”
A palavra acreditar é frequente no vocabulário de Nélson Évora. Durante anos, quis sempre acreditar que era capaz de ganhar aos outros. Depois, nunca desistiu de acreditar que iria conseguir vencer as lesões e voltar novamente ao topo. Agora, acredita que pode chegar ao Rio e fazer um salto que o leve de novo às medalhas. Mas será que no meio de tanta crença, não existirão momentos de dúvida e de desânimo?
“É nesses momentos que precisamos de acreditar ainda mais”, responde. “O importante na recuperação é a crença. Se acreditarmos num objetivo, conseguimos ultrapassar qualquer barreira. Agora, claro, é uma luta interna, foi sempre um desafio, essencialmente comigo próprio, muito baseado e centrado no facto de amar aquilo que faço. Só isso te dá justificação para continuar a suportar operação após operação. Tens que te agarrar a essa vontade de não desistir, de quereres voltar a fazer aquilo que mais amas fazer.”
O facto de ter visto tanta gente virar as costas, deixar de acreditar na recuperação, deu alguma força extra? Tento provocá-lo.
“A certa altura, acho que isso me serviu de motivação, sim. Queria provar-lhes que estavam errados. Mas é algo que não quero valorizar. Eu sei quais são os meus valores, e o mais importante de todos é o saber respeitar os outros, ser sincero e frontal, não falo mal de ninguém nas suas costas. Aprendi também uma lição: o que me faz mais forte são as pessoas boas que tenho à minha volta, não são as pessoas más que andam por aí.”
Quais são, então, essas tais pessoas boas?
“São poucas, contam-se quase com os dedos de uma mão. O Rui Figueiredo, meu amigo de infância; a minha irmã, Dorothé, que foi a pessoa que mais me acompanhou de perto e mais me apoiou; a minha mãe, infelizmente, está longe, mas foi incansável a telefonar para saber como eu evoluía; o meu treinador João Ganço, que pouco podia fazer, mas que foi decisivo porque, a partir de certa altura, passou a preocupar-se mais com a minha saúde, como um verdadeiro amigo, do que com a recuperação do atleta.”
Depois, cita os nomes das duas pessoas que mais diretamente estiveram envolvidas na sua recuperação clínica. “O médico Ricardo Antunes e o fisioterapeuta Ricardo Paulino foram decisivos e vou estar-lhes grato para sempre. E digo-o, acima de tudo, pelas qualidades humanas que demonstraram, sempre preocupados comigo, com a minha saúde, com a minha recuperação. As pessoas, às vezes, olham para os atletas como uns cavalos de corrida e esquecem-se que temos sentimentos, dores, medos. Eles nunca o esqueceram.”
Durante anos, Nélson Évora foi um “cliente” diário de Ricardo Paulino. Todas as manhãs ou tardes, deitava-se na marquesa e, ao longo de várias horas, o fisioterapeuta tentava reanimar o físico adormecido do atleta.
“Ele deve ser a pessoa que melhor conhece os meus músculos, tendões, que mais mexeu literalmente no meu corpo. Ele transformou músculos fracos em músculos fortes, viu os meus tendões inflamarem e a desinflamarem. A partir de certa altura, passou a preocupar-se comigo também ao nível da alimentação, da hidratação. Ficámos amigos verdadeiros.” E, naturalmente, foi a Ricardo Paulino que Nélson dedicou a sua primeira medalha no pós-recuperação: o ouro de campeão europeu de pista coberta, em 2015.
“O mundo não está preparado para nos perceber”
Aos 32 anos, Nélson treina com a mesma intensidade de quando ainda era visto como um jovem promissor. Porquê? “Paixão”, responde. “Acima de tudo, eu amo aquilo que faço. Gosto da essência do meu trabalho, de ser atleta de alta competição. Ou seja, gosto muito de treinar, mas, se não existisse competição, eu não faria aquilo que faço todos os dias, que é arriscar ao máximo, estar sempre a esticar os limites do meu corpo.”
Para Nélson não existe outra maneira de encarar o desporto que pratica, onde “a exigência é total e permanente”. E explica o que quer dizer com isso: “Quando vamos para a pista, nós somos iguais aos carros de Fórmula 1 – máquinas absolutamente afinadas para andar acima dos limites e alcançar marcas que só estão ao nível de uns poucos atletas em todo o mundo. Aqui não há outra maneira de fazer as coisas bem: em 430 treinos por ano, tenho que estar a 110% em 400 deles. Não há outra hipótese e tudo tem de estar sempre afinado. Se eu não dormir bem ou não estiver com a cabeça focada, o meu treino já não rende nada. E isso é fatal. Admito que possa parecer um pouco louco, mas é assim a alta competição.”
Nélson entusiasma-se com o seu próprio discurso. Abre os braços, imita o gesto de atirar o corpo para trás como quando inicia a corrida para os seus saltos. Percebe-se, nesses momentos, como se entregou, de corpo e alma, ao seu desporto. “No atletismo, em função dos nossos objetivos e sonhos, temos que ser egoístas, porque o mundo não está preparado para nos perceber. Ninguém percebe que eu diga que não vou beber um copo à noite, só porque não posso perder duas horas de sono. Como é? São só duas horas…, dizem-me. Pois são, mas o meu corpo é que vai sentir, no dia seguinte, as dores no treino, por causa das duas horas que não dormi. Repito: o mundo não está preparado para perceber quem dedica a sua vida a uma paixão, a um sonho.”
“Cheguei a campeão olímpico por causa de uma negativa a matemática”
É a ouvir um atleta, às vezes mais do que a vê-lo na pista, que se percebe a confiança com que ele está. E Nélson respira confiança. Até pela forma livre e descomplexada com que fala: “Não me peçam para ser politicamente correto, eu gosto de ser sincero, de falar olhos nos olhos, os meus amigos sabem isso e os meus inimigos também.” Diz também que “a inveja é o principal mal da Humanidade” e tem perfeita consciência que um atleta não se torna uma referência só porque ganha medalhas. “Precisa também de transmitir valores”, explica. No seu caso, volta a falar da “paixão pelo atletismo” e na “vontade de nunca desistir, de acreditar sempre, com lesões ou sem lesões, de que se podem alcançar os objetivos e os sonhos”.
Como é que isso se consegue? Nélson dá um conselho: “Se for preciso, escrevam num papel aquilo que pretendem, qual o objetivo que querem alcançar. Assim, no dia em que não lhes apetecer treinar a 110% ou já não se lembrarem da razão porque o estão a fazer, tirem o papel do bolso e voltem a lê-lo. E repitam: foi isto que eu escrevi, é isto que eu quero fazer e é por isto que eu me vou dedicar a 110%. Mas atenção: tem mesmo que ser a 110 por cento!”
Nélson nunca precisou de escrever num papel que queria ser campeão olímpico – “fui sempre um bocado de ideias fixas”, reconhece. Mas houve algo mais que o ajudou: “Sempre quis orgulhar os meus pais, estar à altura daquilo que eles projetavam para mim.”
Educado numa cultura de exigência, ele nunca esqueceu o dia em que, pela primeira e única vez na vida, teve uma nota negativa na escola. “Olhava para a pauta e nem percebia o que era aquilo. Estava no 12.º ano e fiquei entalado. Aquela ‘nega’ representava ficar um ano parado por causa de uma disciplina. Mas senti, naquele momento, que precisava de estar à altura da situação. E fiz questão que o meu tempo fosse valioso. Se tinha mais tempo livre, então, podia estudar mais, treinar mais, dedicar-me mais. O tempo tinha que ser valioso. E foi graças a isso que, aos 19 anos, consegui os mínimos para os Jogos Olímpicos de Atenas 2004. Nessa altura, pensei: bom, se eu me dedicar ao atletismo mesmo a sério, talvez eu consiga fazer algo de bom. Se calhar, foi por causa de uma negativa a Matemática que cheguei a campeão olímpico.”
Essa capacidade de transformar os momentos maus em oportunidades tem sido constante na sua vida. É assim que encara os anos parados com as lesões sucessivas. “Tenho 32 anos, mas, como não competi a sério durante cinco anos, é como se o meu corpo continuasse nos 27 anos”, diz.
E, em vésperas de enfrentar de novo o desafio olímpico, sente que está “numa forma física fantástica”. Nada preocupado por, este ano, ainda não ter conseguido alcançar marcas relevantes. Diz que tem, isso sim, a consciência tranquila: “O trabalho que era preciso fazer foi todo feito, sempre nos tais 110% que eu e o meu treinador exigimos. Como é que vai correr a prova? Não sei. Só sei que se tudo sair bem, o resultado será… monstruoso”, diz, de sorriso aberto. Percebe-se porquê: sabe que se o conseguir não voltará a ser esquecido.