Como seleccionador, Geraldo Bernardes comandou o judo brasileiro em quatro Olimpíadas, ajudando-o a ganhar seis medalhas. Em 2000, após os Jogos de Sydney, retirou-se da alta competição e passou a dedicar a vida a tentar mostrar às crianças das favelas do Rio de Janeiro que o desporto pode transformar-lhes as vidas, abrir-lhes outros horizontes que não sejam os de ficarem ao serviço dos traficantes de droga. Perdeu muitas dessas batalhas, reconhece, mas também ganhou outras.
Aos 73 anos, viveu uma semana muito especial no seu regresso aos Jogos Olímpicos. Na segunda-feira, 8, viu a sua antiga aluna Rafaela Silva, a judoca oriunda da Cidade de Deus, receber o primeiro ouro do Brasil nesta Olimpíada (na mesma categoria em que Telma Monteiro foi bronze). Dois dias depois, na quarta-feira, 10, e após 16 anos de ausência, ele voltou a sentar-se junto do tatami olímpico, como treinador de Popole Misenga e Yolande Bukasa, os dois judocas de origem congolesa da Equipa dos Refugiados, organizada pelo Comité Olímpico Internacional. “Sensei” Geraldo – todos o tratam pela denominação japonesa de mestre – mereceu mais do que ninguém esse regresso ao primeiro plano do olimpismo. Foi ele que acolheu, há três anos Popole e Yolande numa das academias do Instituto Reação (que dirige em conjunto com Flávio Canto, seu antigo pupilo, e medalhado olímpico), por indicação da Caritas. E tal como tinha feito anteriormente com Rafaela Silva, ele não se limitou a ensinar-lhes técnicas de judo. “Sensei Geraldo ajudou-nos com dinheiro, com comida, com casa para viver”, diz Yolande.
“Graças a ele e ao desporto voltamos a sentir-nos integrados”, acrescenta Popole. E voltaram, também, a sentir-se verdadeiros atletas. Durante cinco meses, foram sujeitos a um programa intenso de treino, delineado por Geraldo e Flávio, que lhes permitiu lutar de igual para igual com adversários com muitos anos de preparação. E não desiludiram o velho mestre.
“Nestes Jogos ganhei a medalha de ouro social”, diz, meio emocionado, Geraldo. E assim começámos uma conversa, no Rio, um dia depois de ele ter visto os seus atletas ovacionados no interior do pavilhão Arena Carioca 2 como se fossem judocas “da casa”
Como foi ver, finalmente, os judocas refugiados a competir nos Jogos Olímpicos?
Foi uma sensação muito legal. Ainda mais porque, no dia anterior, a Rafaela Silva, que eu descobri aos oito anos e foi minha aluna, tinha-se sagrado campeã olímpica. Portanto, a torcida no pavilhão ao gritar e apoiar o Popole e a Yolande estava também a celebrar o feito da Rafaela Silva, porque sabia que eles são todos atletas do Instituto Reação.
O Popole disse que, quando ouviu o público gritar o nome dele, disse para si próprio que tinha que fazer tudo para ganhar o combate. Também sentiu o mesmo?
Sem dúvida. Criou-se ali um clima muito positivo que, no caso do Popole, o fez agigantar-se. Ganhou o primeiro combate e, no segundo, durante quatro minutos lutou olhos nos olhos com o campeão do mundo. Só perdeu a 59 segundos do fim do combate e contra um dos melhores adversários.
Acha que eles ainda podem melhorar, que têm alguma hipótese de, dentro de quatro anos, poderem lutar por medalhas?
A Yolande não tanto, mas o Popole tem qualquer coisa. Precisa é de mais treino, de viajar para treinar com adversários diferentes, de competir muito. Eles têm muito talento, mas não tinham pratica de competição. Tive que lhes ensinar muita coisa. Foi fundamental ter conseguido pô-los a trabalhar em conjunto com a selecção brasileira. Isso deu um “upgrade” muito grande na técnica deles.
Pessoas com estas experiências de vida adaptam-se bem à disciplina desportiva?
O desporto de alto rendimento exige muito esforço e estas pessoas estão habituadas a sofrer. Veja o caso da Rafaela Silva, tudo o que ela teve que suportar. E porque é que aguentou? Porque está habituada a sofrer. Graças ao desporto, ela transformou a sua vida. Começou comigo aos oito anos, com muito esforço, dedicação, disciplina, humildade, solidariedade, e hoje é campeã olímpica.
Valeu, portanto, a pena ter deixado a alta competição, a selecção do Brasil, e dedicar-se a este projecto?
Este é um projecto maravilhoso. É um projecto já com 16 anos, que trabalha em cinco comunidades (favelas). E agora começamos a ver os resultados. A Rafaela Silva sagrou-se campeã olímpica aqui no Rio, mas dentro em breve vão sair do Instituto Reação várias Rafaelas e vários Popoles.
Porque é que compara os dois, quando a Rafaela vem de uma favela como a Cidade de Deus, e o Popole é um refugiado das guerras no Congo e Ruanda, que pediu asilo no Brasil?
Eu comparo-os porque eles são os dois refugiados de guerras, que encontraram abrigo no Instituto Reação. A diferença entre eles é que todo o mundo vê a guerra do Popole, enquanto que a guerra da comunidade de onde a Rafaela veio é uma guerra que é abafada para ninguém perceber que existe. Mas é uma guerra com as outras, com os mesmos mortos, os mesmos problemas.
Mas sofreram os dois o mesmo?
Bem, a Rafaela teve menos proporção de sacrifício. O Popole sofreu mais, a sua família desapareceu. A Rafaela, pelo menos, sempre teve o acompanhamento dos pais, embora fosse uma família muito pobre, que precisou de muita ajuda para conseguir sobreviver. E ela reconhece isso, não se tem cansado de o repetir em todas as entrevistas que deu a seguir a ganhar a medalha olímpica.
São guerras diferentes, portanto?
A grande diferença, insisto, é que a guerra do Popole é uma guerra que todo o mundo sabe que existe, em que vemos as imagens na televisão, com os tanques e os caras a matarem-se. Aqui no Brasil, a guerra é igualmente violenta, mas é encoberta politicamente.

Popole a combater nos Jogos Olímpicos
E que papel cabe ao desporto no meio dessas guerras?
O desporto é uma ferramenta superpoderosa de transformação. Veja como os países que têm as maiores discórdias estão aqui nas Olimpíadas a tentar demonstrar a sua superioridade através do desporto. Portanto, o desporto é tudo na vida de uma pessoa. Principalmente de pessoas que dependem de muita coisa para se transformar na vida. Nós vemos isso nas comunidades, onde há crianças com muito talento para o desporto. Se nós as conseguirmos apoiar convenientemente, elas vão ter a maior transformação das suas vidas.
E conseguem agarrar-se todas essas crianças com talento e potencial?
Eu já perdi muitos futuros campeões para as guerras do tráfico. Às vezes é muito difícil segurar aquelas crianças e jovens que vivem em famílias com grandes dificuldades. Lembro-me, por exemplo, de um dia em que caminhava pelo interior da Cidade de Deus e vi um garoto, que tinha sido um dos meus melhores alunos, a esconder-se. Fiquei constrangido. Depois, ele veio atrás de mim e disse-me: “Puxa professor, eu com os traficantes ganho 400 reais por semana. A minha mãe é drogada, o meu pai é bêbado. Com 13 anos de idade quem mais me vai dar esse dinheiro para eu sustentar os meus oito irmãos”.
Deve ser difícil, nessas situações, responder que o desporto resolve tudo?
É preciso um investimento muito grande nas várias comunidades. Mas acredito que o desporto é uma ferramenta poderosa. Agora, com esse legado todo de instalações que vai ficar aí das Olimpíadas, as autoridades, se quiserem realmente fazer transformações, têm uma boa oportunidade para mudar. Mas vão ter que abrir as portas para que as pessoas dessas comunidades possam integrar-se com as outras através do desporto.
Isso também será bom para o desporto brasileiro?
Claro que sim. É essa a única maneira do Brasil se tornar uma potência desportiva mundial. Este país possui uma grande mistura de raças, e o povo brasileiro tem uma queda natural para o desporto. Não tenha dúvidas disso: qualquer desporto que botar aí, o povo brasileiro vai-se dar bem. O desporto e a educação, sublinho sempre esse binómio, são os melhores ferramentas para transformar a vida das pessoas.
No Brasil e no mundo?
Eu acho que é o mundo que vai mudar através do desporto. O legado da Olimpíadas é exactamente esse. É a paz e a solidariedade, é o aconchego e o companheirismo, é o abraço de todo o mundo. Não importa que o cara seja vencedor ou perdedor.