Al Pacino descobriu que existia um mundo inteiro para lá das ruas buliçosas do South Bronx nova-iorquino quando Anton Tchekhov veio à cidade. É ele quem o escreve na autobiografia agora lançada, Sonny Boy – Memórias. Antes disso, o miúdo andava pelo bairro, com o seu bando de amigos, Cliffy, Bruce, Petey, fazendo gazeta, experimentando drogas e disparates. “Tínhamo-nos uns aos outros; estávamos no topo do mundo, como disse James Cagney, em Fúria Sanguinária”, recorda o ator. Como numa película cinematográfica, também eles se encostavam às esquinas a cantar em coro, a cochichar sobre raparigas ou a escutar sobre as escapadelas sexuais dos rapazes mais velhos, a vibrar com a vitória dos Yankees, cujo Yankee Stadium ficava logo ali no seu Bronx. Ou a tentar convencer o polícia de giro a arranjar-lhes Sneaky Pete, uma bebida que lhes desfazia o estômago como se ingerissem cola de contacto. “A vida era nossa! Vamos fazer qualquer coisa! Vamos a um lado qualquer!”, eram os hinos destes adolescentes desfavorecidos, longe das luzes mais brilhantes da cidade. Era uma vez na América, em plena década de 1940, ainda a lidar com as mágoas da grande guerra. Algumas vezes, quando Al se preparava para seguir os melhores amigos até ao fim da rua, até ao fim da noite, ouvia a voz da mãe Rose, vigilante e a desviá-lo de um destino certo de pequeno delinquente, a chamá-lo do telhado do prédio modesto onde viviam (a casa dos avós maternos, onde ninguém tinha um quarto só para si e havia uma “cacofonia de idiomas”): “Ei, Sonnyyyy, vem para casa, ainda não comeste, sobe, vem jantar!”
Sonny Boy. Era a alcunha pela qual a mãe o chamava, um batismo decidido ainda ele não tinha nascido; em 1940 já ela se apaixonara pela música com o mesmo nome, de Al Jolson. “There’s no way of showing / What you mean to me, Sonny Boy…” O pai tinha 18 anos, a mãe um pouco mais, quando Alfredo Pacino nasceu, herdeiro do nome do avô. Os progenitores separaram-se quando ele tinha perto de dois anos, e as andanças por quartos mobilados com tristeza e móveis baratos, ou o acolhimento nas casas dos avós paternos onde a mãe o teve de deixar durante nove meses, haveriam de deixar um buraco negro a exigir-lhe décadas de terapia para tapar. O pai Pacino, um veterano de guerra, pouca presença teve na sua vida – mas inaugurou um restaurante na soalheira Califórnia a contabilizar gorjetas à custa da fama do filho ator. A mãe fazia biscates, trabalhava como operária fabril durante o dia, resfolegava de esforço, debatia-se com problemas de saúde mental, que a conduziriam a uma tentativa de suicídio quando Al tinha apenas seis anos. Mais tarde, foram-lhe prescritos eletrochoques – e o filho teve de desistir da New York’s High School of Performing Arts, onde se inscrevera apenas um ano antes, porque precisava de trabalhar para pagar os tratamentos da mãe. Rose morreria de overdose quando Pacino tinha 22 anos. Mas antes destes créditos finais rolarem, quando ele tinha três ou quatro anos – o ponto de partida desta biografia –, a mãe refugiava-se, à noite, no cinema com o seu Sonny Boy. “Ela não sabia que estava a oferecer-me um futuro. Senti uma imediata ligação com os atores que representavam no grande ecrã”, lê-se logo nas primeiras linhas de Sonny Boy – Memórias. “Terei sido o único menino de cinco anos a quem levaram a ver Farrapo Humano [drama de Billy Wilder sobre um alcoólico]”, atira ainda.