“Não tenho medo que a minha pintura se banalize. Tomara eu que em todas as casas que entrasse pudesse ver uma obra minha na parede”, afirmou Manuel Cargaleiro ao ser entrevistado por António Mega Ferreira para o JL, em dezembro de 1983, quando inaugurou uma exposição em que inaugurou um estilo novo na sua carreira. “O que me interessa agora é pôr no quadro apenas o essencial”, sublinhou.
Entra-se nesta exposição e é como se a sua pintura recomeçasse: a sua linguagem é diferente. Entrou numa nova fase? Desde 1950 até agora, sem esforço nem decisão, houve diversas fases na minha obra. O que aqui apresento é aparentemente diferente de tudo o que fiz até hoje, mas insere-se numa sequência.
Mas essa mudança faz-se sem esforço? Exactamente. Como dizia Matisse, é preciso que o pintor esteja a trabalhar quando a imaginação passa. Ora, acontece que eu passo muitas horas no meu «atelier», pinto muito.
E está lá quando a imaginação passa? Normalmente, é isso que acontece.
O que caracterizava a última fase da sua pintura era essa quase obsessiva exploração das virtualidades de suaves arquiteturas. Há quem diga que essa sua pintura tem muito a ver com a de Vieira da Silva. Olhe, antes de vir para Lisboa estive com a Maria Helena em Paris. Ela viu duas vezes, do princípio ao fim, o catálogo da exposição que neste momento tenho na capital francesa. Nenhum de nós tem dúvidas acerca daquilo que nos aproxima: ambos temos a mesma origem, ambos estamos secretamente envolvidos num sistema de comunicar que torne legível, nos tempos de hoje, a nossa percecão da cultura. O que me interessa é explorar o que há de secreto numa cultura, o resultado de uma sedimentação de hábitos e formas civilizacionais. Ora, eu creio que pinto assim porque só assim conseguiria pintar. Van Gogh pintou o que pintou porque tinha que o pintar.
Mas é óbvio que esta sua pintura conserva (eu diria mesmo que reforça) o traço de um extremo lirismo? Na minha pintura eu não quero dar qualquer agressividade. Interessa-me compreender e pintar o que me rodeia, interessa-me pensar a cultura do meu país, para que as pessoas entendam melhor o país em que vivem. Se eu tive sucesso como pintor não foi por ter ido para o estrangeiro pintar a última moda; foi porque fui para lá pensar na cultura do meu país, pintar o que é português. A poesia, a arquitectura, a música portuguesa, é disso que se alimenta a minha pintura. E essas formas quase espontâneas (pelo menos aos nossos olhos) de arte não são agressivas.
Nós não somos agressivos? Nas nossas veias corre sangue celta, judeu, árabe. A mistura de muita gente deu este resultado: não somos agressivos. Repare que a minha pintura está cheia de elementos portugueses. A começar pela cor: se me perguntassem qual é a cor de Portugal eu responderia imediatamente: o azul.
Mas como é que chegou aí? Bom, desde garoto que tive grande interesse pela cerâmica. Pintei azulejos desde muito cedo, mas para isso tive que aprender a técnica do azulejo. Daí uma certa facilidade em apreender a cultura portuguesa através do azulejo.
E porquê através do azulejo? Porque, ao contrário de outras artes, como a pintura, há uma tradição portuguesa no azulejo. Na pintura, por exemplo, podemos falar de Nuno Gonçalves, de Josefa de Óbidos, de Domingos Sequeira, de Almada, de Amadeo; mas são casos isolados, sem antecedentes nem consequentes. Não há escolas, não há correntes, não há uma tradição e uma continuidade. Pelo contrário, é no azulejo que essa tradição se manifesta com exuberância. Com uma diferença: é que aí os grandes artistas são quase sempre anónimos.
Devo confessar-lhe que as arquitecturas da sua última fase já tinham esgotado as virtualidades do meu olhar, ultimamente, a sua pintura dizia-me pouco. A mim também! Sabe, eu tenho por hábito levar tudo às últimas consequências. Durante anos, pintei de uma maneira que tinha para mim potencialidades. E, de repente, aconteceu-me chegar um dia ao «atelier», pegar nos pincéis e, no momento em que me preparava para pintar, perceber que já não havia nada para dizer daquela maneira.
Isso aconteceu quando? Nos finais do ano passado. Comecei então a fazer estudos, muitas tentativas; foi aquilo a que chamei o «interregno da meditação». Não pude pintar mais: para mim é impossível pintar um quadro por caridade. Como no amor, já nada é possível quando não se sente nada: pintar é um acto de desejo. Bom, mas os estudos não resultaram logo. Então, segui o conselho de Churchill, que dizia que a melhor maneira de descansar é trabalhar noutra coisa: voltei-me para o azulejo.
E quando é que voltou a pintar? Já este ano. De repente, senti a maior felicidade: é isto! E, a partir deste momento, deixou de me interessar tudo o que fiz para trás. O que me interessa, quase exclusivamente, é o que estou a fazer neste momento.
O que agora vejo na sua pintura é o sinal de um gestualismo mais imediato, mais depurado, como se, mantendo embora a estrutura quase narrativa dos seus quadros, eles oferecessem uma visão mais abstracta das coisas de pintura. É isso? É isso: o que agora na interessa é pôr na tela aquilo que me parece essencial. É imaginar uma paisagem, um jardim. Depois, é compor e inventar qualquer coisa que tenha os problemas de linguagem resolvidos: os problemas de composição, do gesto, da luz. O essencial exprimo-o através da cor. Nisto está tudo.
E não teme que essa linguagem acabe por se tornar obsessiva? Ah, mas é claro que é preciso esgotá-Ia. E eu não tenho nenhum medo disso.
Chamou a esta exposição «Gestos no Tempo». Porquê? Esta pintura transforma-se quase numa escrita: este é o meu gesto, neste tempo. Para mim, pintar é uma forma de comunicar. Há pintores que produzem quadros para resolverem os seus problemas íntimos. Eu não. O que eu quero é comunicar: eu defendo, desejo, quero ser popular. É a minha maneira de ser. Para mim, ser popular não é perder as qualidades intelectuais, nem estéticas, nem sequer as que definem um certo intimismo. Ser popular é apenas ser compreendido.
Mas que você seja popular, seja compreendido em Portugal não é estranho. Como explicar, no entanto, o seu sucesso em França? Sabe, em França, onde há milhares de artistas estrangeiros, as pessoas habituaram-se a conviver com as culturas mais diversas. Por isso, estão prontas a aceitar qualquer artista com personalidade. O que se passou em França com a minha pintura é apenas isto: o que eu faço tem um sentido muito positivo. Eu penso que os poetas e os artistas plásticos estão lado a lado com os grandes cientistas, no trabalho de construírem o mundo novo. A proposta dos artistas plásticos é a proposta do mundo que eles imaginam: é a imagem da felicidade, que é possível, que é desejável. A maior qualidade que a minha pintura tem é contribuir, em alguns milímetros, para um projecto universal de um mundo com mais poesia e paz. Se calhar, é isso também o que as pessoas querem.
Manuel Cargaleiro: você é um homem sereno, a sua pintura não é agressiva, a imagem que você tem do mundo é uma imagem optimista. Mas esse não é o figurino habitual dos intelectuais, pois não? Mas é que eu sinto-me muito pouco um intelectual. Sinto-me muito mais como. Eu não estou bem integrado no meu estatuto de pintor. Sinto-me muito ligado à Natureza e aceito a vida tal como ela é. Sou capaz de me sentir muito bem no Brasil, mas também me sinto bem em França, também me sinto bem em Portugal. Ganho muito bem e vivo bem. E estou contente com isso.
Vocé é um pintor caríssimo! Sou muito caro, em Portugal. O que acontece é isto: assim como eu tenho comprado muita pintura (eu gosto da pintura dos outros e até tenho uma boa colecção), há quem vá adquirindo um número cada vez maior de obras. Isto significa que o círculo do pintor se vai alargando e o preço, naturalmente, vai subindo.
Alarga-se o mercado? Alarga-se o mercado, precisamente. E claro que os aspectos comerciais têm que ver com os «marchands»; mas é evidente que, quando o meu representante é solicitado para exposições nos Estados Unidos, em França, na Suíça, o preço do meu trabalho aumenta. E é claro que não faz sentido impor aos «marchands» que pratiquem em Portugal preços baixíssimos, em detrimento da procura dos mercados internacionais. Repare que eu, neste momento, tenho cinco exposições: uma em Paris, uma em Guimarães, outra na Madeira, uma quarta, de gravura, na Universidade Nova, e esta, inaugurada hoje em Lisboa. O que isto significa é que há uma grande procura do meu trabalho. E isso naturalmente reflecte-se nos preços.
Com tanta exposição, não tem medo que a sua pintura se banalize? Ora aí está uma palavra de que eu gosto muito! Não, não tenho medo que a minha pintura se banalize. Tomara eu que em todas as casas que entrasse pudesse ver uma obra minha na parede. Quanto mais produzo, quanto mais vendo, maiores são as oportunidades de quem gosta da minha pintura a poder ter em casa. E por isso também é que continuo a fazer gravura, para tornar economicamente acessível a minha obra.
Gosta que gostem de si? Gosto!