Ao longo deste século, a sucessão de festivais de verão em Portugal já se tornou, de tal maneira, um ritual e uma rotina na vida de tantos espectadores de concertos e festivaleiros em geral, que a cada ano há o risco de banalização das experiências e de uma permanente sensação de déjà vu. Ganham força, então, os momentos inusitados e raros. O Primavera Sound sempre foi fértil nisso, até porque se quis afirmar desde início (a primeira edição do Primavera, nascido em Barcelona, no Porto foi em 2012) como um festival “diferente”, com uma programação criteriosa e atenta às novidades na música urbana dos mais variados géneros, com destaque, nos primeiros anos, para o dito rock indie e mais alternativo.
Nesta edição não faltaram esses momentos, nem sempre por boas razões. Uma ocasião única aconteceu no sábado, 8, ao fim da tarde. Dezenas de pessoas concentravam-se à frente de um grande palco vazio, só com muito material técnico coberto por panos negros, ouvindo a música alta que saía das colunas. Era uma espécie de missa rock de corpo ausente, a que se chamou “festa” (Shellac Listening Party) homenagem ao músico e produtor Steve Albini, que com os seus Shellac nunca falhou nenhuma edição do Primavera Sound no Porto, e que morreu em maio, aos 61 anos. No segundo maior palco do festival ouviu-se, então, o novo álbum dos Shellac, To All Trains, integralmente, num emotivo não-concerto.
Na véspera, outro momento inusitado tinha acontecido nesse mesmo palco. Também ao fim da tarde, sob um céu plúmbeo, gaivotas planavam à frente do Palco Vodafone, muitas acabavam mesmo por pousar calmamente no relvado vazio. Uma calma estranha num grande Festival: nessa sexta-feira, 7, todos os concertos desse palco foram cancelados, incluindo o dos franceses cabeças de cartaz Justice e de The Legendary Tigerman (que foi, depois, reagendado para o dia seguinte). Houve problemas na estrutura do palco durante a montagem para o concerto dos franceses (que inclui sempre uma grande cruz dependurada) e a organização preferiu jogar pelo seguro. Um contratempo que coincidiu com o dia da maior enchente deste Primavera Sound, com 40 mil pessoas no Parque da Cidade.
Ainda no plano dos momentos únicos e memoráveis, muitos aconteceram pelas razões certas num cartaz que não tem medo de arriscar. Pensamos, por exemplo, no concerto de Lambchop, que parece a antítese do que se espera num festival de verão (sim, eu sei que ainda estamos na/no Primavera): um piano de cauda em palco e Kurt Wagner a murmurar mais do que cantar. O mais incrível é que o público corresponde a essa intimidade e ali estamos, num concerto de festival em que qualquer toque de telemóvel pode perturbar… Inusitada foi, também, a palavra de ordem gritada durante todo o concerto de Conjunto Corona, um dos últimos do festival, com uma plateia bem composta, que os escolheu em vez dos The National (então no palco principal), a entoar do princípio ao fim, incentivada pela banda de David Bruno, “Gondomar! Gondomar! Gondomar!”, ocasionalmente com a imagem do Major Valentim Loureiro no ecrã.
Não menos memoráveis foram as atuações dos cabeças de cartaz deste ano. Aliás, antes da atuação dos muito aguardados Pulp, isso era mesmo anunciado nos ecrãs, como uma promessa: “Esta é uma noite que vão recordar para o resto da vida”. O terceiro dia de festival, (sábado, 8) foi o único que não recebeu jovens fãs em modo-histeria. Nas duas noites anteriores, um público muito jovem, desse tipo que corre para guardar lugar nas grades à frente do palco muito antes da hora dos concertos, encheu o Parque – na quinta-feira para ver SZA e na sexta, de forma mais notória, indumentária incluída, para ver Lana del Rey. No sábado, dia de Pulp e The National, o ambiente era claramente diferente com os cabelos e barbas grisalhas a combinarem com a cor do céu.
Para a história desta edição fica o triunfo de Lana Del Rey. Quando a vimos na sua estreia em Portugal, em 2012, no festival Super Bock Super Rock, no Meco (onde regressou em 2019) nada indicava que esta autora de canções melancólicas de recorte clássico, com uma voz grave carismática, iria ser uma estrela pop para adolescentes. Mas não há dúvida de que isso aconteceu, olhando para o palco e, sobretudo, para a plateia, que entoava todas as letras com o volume no máximo, na noite de sexta-feira. Os duetos, em disco e ao vivo, com Taylor Swift e Billie Eilish contribuíram, certamente, para essa popularidade. Mas se a superstar Taylor Swift passa a ideia de que, depois dos concertos, vai habitar uma espécie de vila da Barbie, onde tudo é perfeito, até as lágrimas pelo fim das relações, Lana, com 38 anos, mostra-se poderosa e frágil ao mesmo tempo, vulnerável, e podemos acreditar que no fim do concerto pode tropeçar numa sarjeta e afundar-se nos seus abismos, acompanhada por álcool e barbitúricos… No País da fatalidade e do fado, a tristeza de verão de Summertime Sadness ou o verso “we were born to die” [“nascemos para morrer”] parecem ser cantados com um empenho particular por adolescentes lacrimejantes. Antes, no mesmo palco, as The Last Dinner Party pareciam genuinamente surpreendidas com a multidão à sua frente, mas assumindo que se sentiam entertainers “até chegar a Lana.” Elas são um dos nomes com mais hype no novo pop rock indie britânico. A estreia em Portugal até foi auspiciosa, mas ainda parece que lhes faltam canções diferenciadoras para nos convencerem totalmente (uma versão de Wicked Game, de Chris Isaak foi, aliás, o momento alto do concerto).
Também SZA (lê-se “Siza”, nome que em Matosinhos não passa despercebido), na noite anterior, pareceu prometer mais do que deu (exceto para as fãs indefectíveis, claro, e são muitas), num espetáculo com grande produção, e bons momentos, mas que facilmente se perde numa mediania musical sem história. Antes dela, P.J. Harvey mostrou, num concerto irrepreensível (apesar de ter pedido desculpa por alguns problemas técnicos, que prolongaram pausas entre canções), o que é levar elegância e coolness para cima do palco. Com John Parish ao comando de uma banda de excelentes músicos grisalhos, começou por tocar algum do material mais recente, e introspectivo, mas acabou por recuar a canções mais antigas e enérgicas como Dress, To Bring You My Love ou Down By the Water.
Mas, para muitos, este vai ser o Primavera dos Pulp. A banda de Jarvis Cocker, 60 anos completados em setembro do ano passado, que recordou que esteve no Porto pela primeira vez no festival Imperial ao Vivo, em 1998, fez a vontade a todos os admiradores percorrendo as suas mais célebres canções (trazendo-as “de volta à vida com a ajuda do público”, como o músico descreveu) em mais de hora e meia de espetáculo, terminando com o hit intemporal Common People, cantado por todos como se não fizesse qualquer diferença estarmos em 1995 ou em 2024.
Somos, afinal, todos pessoas comuns e únicas ao mesmo tempo. E isso vê-se bem nos festivais de verão, do lado de cá e de lá dos palcos.
Num ano de guerras e eleições importantes, a política irrompeu, inevitavelmente, por algumas atuações dentro. Paulo Furtado, que deu um concerto ao seu melhor nível no palco maior do Primavera, apelou, a propósito das eleições europeias deste domingo, 9, a um “voto na empatia.” Uma bandeira palestiniana acompanhou todo o concerto dos bascos Lisabö, a australiana Amyl Taylor, dos irrequietos rockers Amyl & the Sniffers, trouxe o tema para um discurso em apoio à causa palestininana e Matt Berninger, dos The National, na sua enésima presença em palcos nacionais, também apelou a um cessar-fogo no Médio Oriente, criticou Trump e puxou por Joe Biden (quando cantou Mr. November, por exemplo).
Se ainda houver mundo, para o ano há mais. E já há datas: de 12 a 14 de junho de 2025, no sítio do costume.