Atenção, vamos contar o fim. O fim depois do fim: Parque Mayer termina e no ecrã lê-se a dedicatória a todos os que, naquela espécie de feira popular cheia de teatros de revista, lutaram pela liberdade. Com interpretações de Miguel Guilherme, Francisco Froes, Diogo Morgado, Alexandra Lencastre e a protagonista-revelação Daniela Melchior, o novo filme de António-Pedro Vasconcelos situa-nos no momento, em 1933, em que o Estado Novo apresenta uma nova Constituição aos portugueses. A trama, bem urdida, revela hipocrisias mas também solidariedade, censura e liberdade. É cinema popular, daquele – para todos – que tanto comove e inquieta como consegue fazer-nos rir.
Nasceu em Leiria, em 1939, mas chegou a Lisboa ainda adolescente. Que memórias pessoais tem do Parque Mayer? Via-o como um lugar do Estado Novo ou de liberdade?
Não o associava a uma cumplicidade com o Estado Novo… Essa ligação era mais sentida nos primeiros tempos, na época em que o meu filme se passa, quando Salazar consolida o seu poder e estabelece os princípios do Estado Novo com a nova Constituição. Mas, mesmo aí, o regime tinha um mínimo de condescendência, porque o Parque Mayer servia, um pouco, para desopilar e era uma coisa muito localizada, apesar de virem excursões da província. Em 1933, ainda sem televisão nem rádio generalizada, aquele era o único núcleo de divertimento. Eu recordo-me bem da segunda vaga de atores: José Viana, Raul Solnado, Ivone Silva… Eram muito populares, nós convivíamos com eles e sabíamos que não estavam feitos com o regime. Nos anos 60, o Parque Mayer era para nós um ponto de encontro, onde íamos almoçar em restaurantes fantásticos, como o Chico Carreira ou a Gina. Havia matraquilhos… À noite, íamos menos ao teatro dito sério e preferíamos a revista. Encontravam-se atores espetaculares e números com imensa graça. Quando era mais jovem, não ia muito lá, mas quando voltei de Paris, em 1966 ou 1967, e até ao 25 de Abril, frequentava bastante o Parque Mayer.
Mas havia, então, o sentimento de que havia ali focos de resistência e de rebeldia contra o Estado Novo?
Não só os atores como os autores, e muitos dos que frequentavam o Parque tinham um lado boémio, rebelde e nada convencional. Podiam ser mais ativos nem tanto, mas eram claramente, na grande maioria, pessoas que não alinhavam com o regime. E isso sabia-se.
Optou por situar o seu filme em 1933, e não na época em que conheceu bem o ambiente do Parque Mayer…
Uma das ideias que eu tinha para desenvolver, quando acabei o último filme [Amor Impossível, de 2015], passava por explorar o meio do fado durante a Segunda Guerra Mundial. Há muitas histórias interessantes para contar dessa época. Não queria recordar Amália ou Marceneiro, mas inventar uma figura secundária, um guitarrista e letrista talentoso, que fosse também um homossexual escondido e claramente da oposição. O Tino Navarro [produtor da MGN Filmes] é que teve a ideia de situar o filme no Parque Mayer e naquela época em que surgem os fascismos europeus, nomeadamente a ascensão dos nazis na Alemanha.
Há um claro lado político no filme. Relaciona-o, diretamente, com os tempos que estamos a viver?
Sim, claro. Queria mostrar esse lado do fascismo que as pessoas, hoje, não conhecem. As novas gerações, que já cresceram com liberdade, paz e democracia, entendem-nas como um dado adquirido, que está sempre aí, e isso não é bem assim. Quando o Tino falou em 1933, eu não hesitei.
O argumento é todo do Tiago R., Santos, precisamente dessa geração que nasceu já depois do 25 de Abril…
Sim, tem a idade do meu filho mais novo. Foi-me apresentado, já há uns anos, quando veio dos EUA, onde estudou guionismo e escrita criativa. Já escrevi muitos filmes sozinho, mas gosto de trabalhar com outra pessoa. E, quando fiz o Call Girl [2007], procurei isso mesmo com o Tiago. Gosto da discussão de ideias, mesmo que, depois, a escrita seja responsabilidade só de um. Cada vez dou mais importância ao guião; no final dos filmes, tenho sempre umas dez versões… Fui fazendo vários filmes com o Tiago e admirando o seu talento. Gosto muito de trabalhar com ele. Tem, por exemplo, muito jeito para diálogos.
Mas há coisas neste filme que parecem depender muito de um conhecimento direto do ambiente do Parque Mayer e das revistas.
Sim. As rábulas da revista e as canções, por exemplo, fui eu que as escrevi. Gosto muito de criar versos para canções e de trocadilhos… E o Tiago reconheceu que esta não era bem a sua praia. Mas a ideia geral do filme era trazer a mão forte do regime – com a censura, a polícia política e o medo – para um sítio de alegria e de liberdade, com a tradição da sátira política, de crítica e até de alguma liberalidade de costumes, um lugar muito interclassista. O que era muito característico do regime de Salazar, e muito chocante para mim, era a hipocrisia. Salazar não se importava que houvesse pés-descalços e mendigos, desde que não dessem nas vistas. Ele não queria escândalo. Prostitutas? Sim senhor, desde que seja no bordel, sem andarem a engatar às janelas ou na rua. Homossexuais? Tudo bem, mas casados e com filhos… No Parque Mayer, havia muitos homossexuais e lésbicas, e não havia problema, desde que não dessem escândalo. Fiz questão de, no meu filme, mostrar a Mitra, que foi criada nessa altura, para onde ia toda a “escumalha”, chulos, carteiristas, vagabundos, “panascas”… Não há muitas imagens históricas da Mitra, mas quis fazer aquela cena impressionante dos camiões a chegarem carregados de mendigos, apanhados à pazada nas ruas… Vi uma fotografia disso e chocou-me tanto que fiz questão de o mostrar.
O guião é, então, dos dois?
O Tino teve a ideia inicial: a intriga da miúda que vem de fora, o ator que quer seduzi-la, mas ela está apaixonada por outro… A partir daí, o Tiago escreveu a primeira versão, o que era urgente, porque vivemos em Portugal, neste sistema absurdo em que, para fazermos um filme, temos de concorrer ao ICA [Instituto do Cinema e do Audiovisual] e ficar à espera… Havia um prazo apertado, e o Tiago foi desafiado a escrever um primeiro esboço do guião em menos de um mês. Fez um trabalho incrível. Depois de o projeto ser aprovado, recomeçámos tudo, com mais calma, e fomos trabalhando em dupla, como acontece sempre, seja a ideia inicial dele ou minha. Por melhor que seja o argumento, eu tenho de torná-lo meu. Não vou filmar uma história qualquer só por ser boa. Tenho de ter o meu ponto de vista: porque me interessa esta história? O que quero contar com isto?
E qual é, neste caso, a resposta a essas perguntas? O que significa estrear este filme em 2018? Portugal parece, por agora, imune à onda de populismos e de nostalgias do autoritarismo que tem acontecido por esse mundo fora. Será mesmo assim?
Tanto eu, como o Tino, como o Tiago concordámos, sempre, que este filme é um alerta. Mas eu não quis fazer, porque não é da minha índole, um manifesto, um filme panfletário… Quis que a personagem do Mário [autor de revistas, interpretado por Francisco Froes] fosse descobrindo na pele o que significa a chegada do fascismo. Como se instala uma ditadura? A ideia da perda da liberdade, de as pessoas serem dominadas pelo medo, que é uma coisa atroz… Durante vários anos, e mesmo depois do 25 de Abril, tive muitas vezes a ideia de ir viver para outro país França, por exemplo, onde passei dois anos e meio, na década de 60 (e cheguei a ter um apartamento em Paris, nos anos 80). Pensei muitas vezes nisso. E confesso: se, hoje, tivesse de escolher um país para viver, eu escolheria Portugal. Sem estar a querer branquear nada… Há aqui coisas péssimas, horríveis; nem sempre concordo com o Governo, mas, mesmo assim, com esta solução governativa numa Europa completamente ultraliberal, com o facto de ter sido possível este compromisso, é preciso valorizar Portugal… Além disso, sinto uma grande criatividade hoje, em Portugal, a vários níveis. E passámos a acreditar muito mais em nós próprios. Perdemos o complexo de que somos sempre inferiores e aquele discurso de que tudo o que é mau está em Portugal. Hoje, quando olho à volta, para outros países a França com a Frente Nacional, este novo partido franquista em Espanha, o que se passou em Itália… -, tenho de valorizar Portugal, mesmo com todos os seus problemas.
Mas será que estamos imunes ou, mais uma vez, atrasados?
[Risos.] O importante é sublinhar que a democracia, a liberdade e a paz não são dados adquiridos. É facílimo isto mudar! Este filme foi feito antes das eleições no Brasil. O Bolsonaro conseguiu convencer os brasileiros de que a corrupção começou com o PT! Conseguiu que pessoas a quem vai tirar direitos votassem nele! Isto é assustador. Foi o que aconteceu com Hitler e com Salazar… É preciso percebermos que o salazarismo foi também possível porque tinha um grande apoio popular, da classe média.
O Bolsonaro conseguiu que pessoas a quem vai tirar direitos votassem nele! Isto é assustador. Foi o que aconteceu com Hitler e com Salazar… É preciso percebermos que o salazarismo foi também possível porque tinha um grande apoio popular, da classe média.
Voltando ao Parque Mayer. Foi um grande desafio, ao nível cinematográfico, recriar um mundo que desapareceu…
Olhar hoje para aquilo mete dó. Ainda pensámos em filmar lá e aproveitar algumas das poucas coisas que resistem, mas depois o [Teatro] Variedades entrou em obras. Não dava mesmo. Tivemos de fazer o Parque Mayer de raiz… E aí, tenho de tirar o chapéu ao meu produtor. Nada foi filmado no Parque Mayer, nada. Não podíamos fazer uma coisa miserablista – ou era bem-feito ou não era…
Onde construíram este Parque Mayer falso?
Nos estúdios da Plural, perto de Bucelas. Ocupámos aquele espaço todo durante uns tempos… Depois tivemos de deitar tudo fora, o que até foi uma pena. O teatro que se vê no filme foi filmado em três sítios: os camarins são na antiga Tóbis; o palco e a plateia é no Gil Vicente, em Cascais; e o exterior e a entrada do teatro, em Bucelas. Foi complicadíssimo fazer o raccord! A última cena foi das coisas mais difíceis que fiz na minha vida. Felizmente, trabalhei com o Miguel Raposo como primeiro assistente, que foi incansável e admirável.
O que o faz sair de casa com mais entusiasmo atualmente: a estreia de um novo filme de Jean-Luc Godard ou de Steven Spielberg?
[Risos.] O Godard deixou de fazer cinema… Foi dos tipos que mais me marcou na juventude; aliás marcou toda uma geração. Era uma espécie de farol… Foi uma espécie de anarquista de direita, depois, no Maio de 1968, tornou-se um maoista convicto e passou a fazer cinema militante. Quando ficou órfão do Che Guevara, da guerrilha e das ilusões maoistas, transformou o radicalismo político em radicalismo estético. É uma espécie de suicídio. Como costumo dizer, gostam muito do povo mas não gostam do público… Fui ver o Filme Socialismo [de 2010, realizado por Godard] e não sei se ele enlouqueceu ou se está a gozar connosco. Quanto ao Spielberg, é um gajo talentosíssimo, sem dúvida. O Império do Sol é um grande filme, o Munique também; já não gosto tanto d’A Lista de Schindler, que me parece um bocado o Indiana Jones em Auschwitz…
Em março, completará 80 anos. O que hoje o faz correr?
O que me dá mais prazer na vida é a ideia de contar histórias e fazer filmes – e também consumir histórias. Vou menos ao cinema, mas continuo a ser um leitor compulsivo. E acho que há uma geração de escritores portugueses, agora à volta dos 40 anos, absolutamente notável. Na verdade, o que me faz mover é, sobretudo, a curiosidade. Sou um cético ativo. E agora que se estreou este filme, há uma causa em que me vou empenhar ainda mais: combater este Acordo Ortográfico que é uma aberração, o maior falhanço diplomático da História Portuguesa recente. E aquilo só é uma resolução do Conselho de Ministros, nem sequer é uma lei… Ainda é possível reverter este Acordo.