Ainda estamos no transfer que nos levou do aeroporto de Bolonha até Florença, numa viagem que nem chega a uma hora, depois de um voo madrugador, quando Manuela Costa, a assessora de comunicação de Joana Vasconcelos, faz questão de mostrar uma fotografia que acabara de receber no seu telemóvel.
O banner a anunciar a presença da obra da artista portuguesa nas Gallerie degli Uffizi (Galerias dos Ofícios) já estava pendurado, a dois dias da exposição, e bem visível a quem passa num dos corredores de acesso ao museu florentino, que regista cinco milhões de visitantes ao ano, sendo o Natal uma das épocas mais fortes.
Sentimos, logo ali a importância do momento. É a primeira exposição de Joana Vasconcelos em Florença, cidade que a fascina, a primeira portuguesa a mostrar o seu trabalho nas Uffizi e ainda uma das poucas mulheres escultoras que conseguiu lá entrar. Entre o Céu e o Coração está oficialmente aberta, com curadoria de Eike Schmidt e Demetrio Paparoni, exibindo duas esculturas no Palazzo Pitti e uma nas Uffizi. A mostra ficará montada até 14 de janeiro de 2023.
Antes de entrarmos nestes monumentos, num dia em que estão fechados ao público, almoçamos, para retemperar forças, numa das esplanadas da Piazza della Signoria, com vista para a imponente réplica da estátua de David, cinco metros de altura esculpidos pela mão de Michelangelo.
Tudo em Florença transpira arte e Joana nunca se esquece disso. Conhece bem a cidade e arranha bem o italiano, tantas as vezes que já viajou para este país. O namoro para esta exposição começou há anos e implicou várias viagens de avião.
A obra fica-lhe tão bem
Entramos. Sentimo-nos privilegiados por espreitar as enormes salas vazias, que tão bem enquadram as obras de Rubens, Botticielli ou Leonardo Da Vinci. Quando Joana Vasconcelos vê a sua Royal Valkyrie, já antes exposta em Versalhes (2012), pendurada do teto da sala da Tribuna, assente numa estrutura criada para o efeito, sente que a obra integra o espaço na perfeição, sem lhe tocar sequer. “Tenho de existir, apesar do espaço. As peças têm de se aguentar.”
As cores desta divisão octagonal fazem pendant com as sobreposições de feltros, sedas, crochê e veludos que cobrem a escultura. “Recorro também à passamanaria, uma área da tapeçaria dedicada à decoração, muitas vezes para proteger das correntes de ar, tornando o lugar mais aconchegante.”
As cores desta divisão octagonal fazem pendant com as sobreposições de feltros, sedas, crochê e veludos que cobrem a escultura
Chiara Totti, uma das coordenadoras da Galeria, conta que esta sala é a mais antiga do edifício – data do início da construção, em 1580, sob a batuta dos Medici. “Antes de a restaurarmos, deixávamos entrar os turistas, mas agora não. O chão é de um mármore muito precioso e há que preservá-lo.”
A Tribuna foi toda decorada tendo em conta os quatro elementos da Natureza, que despertavam muita curiosidade na Renascença: fogo, representado pelos vermelhos dos veludos da parede; água, pelas conchas de madrepérola que preenchem a abóboda; o ar circula pela abertura do teto e a terra está no chão, todo em pedra.
As sete estátuas da antiguidade clássica que agora olham, meio incrédulas, para a obra contemporânea, são originais (muitas das que vemos nos corredores, a maioria de arte romana, são cópias perfeitas, mas ainda assim cópias das originais). “É a sala mais importante da Galeria”, conclui Chiara. Joana já o sabia e daí ter insistido para pendurar aqui a sua Valkyria.
Sapatos de salto e família feliz
Daqui, saímos a pé para o Palácio Pitti, residência da família Medici e ocupado até ao início do século XX, que fica a 10 minutos de distância (por dentro, está tudo ligado através dos seus jardins). Está demasiado calor em Florença, apesar de ser outubro, o que obriga a uma paragem técnica para um verdadeiro gelado italiano.
Quando entramos no edifício, passando pelas divisões todas do palácio, decorado ao mais purista estilo barroco, entre vermelhos e dourados, outra vez sem qualquer companhia de turistas, Joana Vasconcelos vibra com o ambiente. “É isto que fizeram os europeus com guito. Olhem-me para este teto!”, exclama, ao mesmo tempo que abre os braços e dá uma volta sobre si mesma, como que a mostrar-nos a magnitude do espaço e de todas as obras aqui expostas.
Chegamos à sala Bianca, contruída em 1770 para receber convidados com recitais de música. Aqui, como o nome indica, é o branco que domina. Do teto, pendem 10 lustres de época e há um piano de cauda ao fundo. No centro, estão dois Marilyn, um par de sapatos de salto alto, composto de tampas de tachos e panelas, uma peça criada em 2011 e já exposta inúmeras vezes por esse mundo fora. “Trabalho muito com os símbolos, criando uma disrupção com olhar contemporâneo.”
Neste caso de Florença, não haverá grande interação dos visitantes com a obra, coisa que não agrada por aí além a Joana Vasconcelos que faz a apologia da aproximação entre as duas realidades.
Não haverá grande interação dos visitantes com a obra, coisa que não agrada por aí além a Joana Vasconcelos que faz a apologia da aproximação entre as duas realidades.
Ao lado, na sala Bona (assim batizada por causa do quadro que se impõe, do pintor maneirista Bernardino Pocetti, figurando uma cena de guerra em Bona), está um presépio idealizado especialmente para esta envolvência em tons de pastel dos frescos que preenchem as paredes do chão ao teto. A Família Feliz é composta por duas figuras, uma masculina e outra feminina, que seguram um bebé entre eles, tudo coberto de crochet, naquilo que já se tornou uma assinatura da artista. Esta peça, ou a encomenda de um presépio desta série, foi o princípio desta aventura florentina.
“Esta série tem por base naquelas esculturas de cimento que existem muito nos jardins. Curiosamente, estas revisitações das esculturas clássicas são produzidas em Itália. Depois, pego nelas, pinto-as e cubro-as de crochet”, explica, mostrando outros exemplos icónicos no seu telemóvel.
Ir para fora cá dentro
De uma forma geral, na arte, a cisão entre o passado e o presente é gigante. Mas Joana Vasconcelos quer voltar a ser uma ponte – e logo nesta cidade, onde existem oito pontes por cima do Arno e uma delas é uma delícia (Ponte Vecchio). “Em Florença, e especialmente neste museu, a arte contemporânea é uma graça. Pode chocar os visitantes, que vêm à procura de outra coisa. Mas a minha obra presta-se a este diálogo com a linguagem do Barroco. Em alguns casos, como a Família Feliz, parece que estiveram cá sempre.”
Nem por isso, Joana se limita a expor apenas em cenários com História e a prova disso é a sua mais recente mostra em Portugal, inaugurada no final de setembro, no MAAT. “Tento fazer um diálogo com a arquitetura. A Árvore da Vida, por exemplo, parece que cresceu lá dentro.”
“Já não há necessidade de um artista emigrar para um sítio em que as coisas estão a acontecer. Agora, ele fica no seu país e anda pelo mundo a expor”, conta. E este ano tem sido emblemático, um ver se te avias no estrangeiro – Joana tem ou teve obras expostas em França, Inglaterra, Ibiza, Itália, China e Brasil.
É caso para perguntar, como se gere a montagem e desmontagem destas exposições, quando a maioria das peças, ainda por cima, é de enorme dimensão?
A empresa Iterartis trabalha com o atelier de Joana Vasconcelos desde sempre e é a peça fundamental neste processo que, coordenada com o pessoal do atelier, tem dado vazão a tanto trabalho. A Florença, Dilton Afonso mais dois colegas chegaram uma semana antes para garantirem que estava tudo pronto e impecável quando a artista chegasse.
Mas ele é apenas um dos elementos das equipas, com formação em trabalho em altura e em cordas, que estão em loop – ora monta em Florença, ora desmonta em Macau para logo voltar a pô-las no lugar no Brasil. Note-se que em ambientes como este das Galerias Uffizi, há que trabalhar com pinças para não se danificar o património.
“Já tive de arranjar uma segunda equipa para garantir que está sempre alguém na oficina, em Lisboa”, revela Joana, enquanto vai recordando vários episódios em que foi o cabo dos trabalhos para enfiar as suas peças nos sítios das exposições, obrigando, por exemplo, a fazê-las passar por janelas, depois de içadas.
Para o ano haverá mais – a agenda da artista já está bem preenchida, com compromissos em Malta, Pequim, Hong Kong, Paris ou Alemanha. E haja criatividade, para continuar a quebrar barreiras e preconceitos.